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Processo n.º 722/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No presente processo em que é recorrente Estradas de Portugal, EPE e
recorrido A., Lda., o relator proferiu a seguinte decisão:
“1. Por acórdão de 26 de Junho de 2008, no âmbito de um recurso jurisdicional de
uma decisão relativa à determinação da indemnização num processo de expropriação
por utilidade pública, o Tribunal da Relação do Porto, julgando improcedente uma
das questões suscitadas pela agora recorrente (aí apelante), considerou que a
parcela expropriada, apesar de não poder ser classificada como terreno apto para
construção ao abrigo do disposto no artigo 25.º do Código das Expropriações,
aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro de 1999 (CE99) e se encontrar
integrada na Reserva Agrícola Nacional à data da declaração de utilidade
pública, deveria ser avaliada em função “do valor médio das construções
existentes ou que seria possível edificar nas parcelas situadas numa área
envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 metros do limite da parcela
expropriada”, por aplicação analógica do n.º 12, do artigo 26.º do citado CE99.
O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC),
identificando o objecto do recuso nos seguintes termos:
“(…)
O presente recurso tem por base a fiscalização concreta da constitucionalidade
do artigo 26.º, n.º 12, do Código das Expropriações, quando interpretada e
aplicada no sentido de tutelar abstractamente qualquer expropriado para além do
fim visado pelo preceito legal – isto é, protegê-lo contra classificações
dolosas pelas entidades públicas no uso do seu poder discricionário na
realização das opções de plano –, por violação dos art.s 13.º, n.º 1 (princípio
da igualdade), 18.º (enquanto violação do princípio da proporcionalidade em
sentido amplo) e 62.º, n.º 2 (princípio da justa indemnização), todos da CRP.
(…).”
2. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70.º da LTC, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitado durante o processo. O objecto do
recurso é a norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida, norma essa que
cumpre ao recorrente identificar (n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC). O recorrente
tem o ónus de indicar o preciso sentido normativo com que a norma foi aplicada
ao caso concreto e que tem por inconstitucional, sobretudo se questiona apenas
uma certa interpretação do preceito legal.
Ora, não há qualquer coincidência entre o sentido indicado pelo recorrente e
aquele com que o preceito do n.º 12 do artigo 26.º do CE99 foi aplicado pelo
acórdão recorrido.
Efectivamente, o acórdão aplicou analogicamente o n.º 12 do artigo 26.º do CE99
no sentido de permitir que solos integrados na RAN à data da declaração de
utilidade pública, expropriados para implantação de vias de comunicação, possam
ser avaliados em função “do valor médio das construções existentes ou que seja
possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro
exterior se situe a 300 metros do limite da parcela expropriada”. A este
sentido, enunciado de modo simples, directo e claro no acórdão recorrido, é
estranho aquele que o recorrente indica no requerimento de interposição do
recurso. A norma não foi aplicada e interpretada no sentido “ de tutelar
abstractamente qualquer expropriado para além do fim visado pelo preceito legal
– isto é, protegê-lo contra classificações dolosas pelas entidades públicas no
uso do seu poder discricionário na realização das opções do plano”. Não há a
essa problemática da classificação dolosa dos solos qualquer referência na
decisão recorrida, não se vendo como reconduzir esta rebuscada indicação àquela
tão claramente assumida pela decisão recorrida.
Assim, não tendo a norma do n.º 12 do artigo 26.º do CE99 sido aplicada pelo
acórdão recorrido com o sentido cuja fiscalização o recorrente pretende ver
apreciado, o recurso não pode prosseguir.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar
o recorrente nas custas, com 7 (sete) UCs de taxa de justiça.”
2. O recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do
artigo 78.º-A da LTC, nos termos seguintes:
“1. O requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, atempadamente
interposto pelo ora impetrante, baseou-se no seguinte:
a) No processo de apelação 3583/08 -3 foi proferido douto acórdão de 30 de Junho
de 2008, em que foi julgado improcedente o recurso interposto pela entidade
expropriante.
b) A requerente apresentou requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, com base na fiscalização concreta da
constitucionalidade do artigo 26.º, n.º 12 do Código das Expropriações.
c) O Tribunal da Relação do Porto admitiu o recurso interposto pela entidade
expropriante, ora requerente, para o Tribunal Constitucional, em 1 de Setembro
de 2008.
d) Veio agora o Tribunal Constitucional decidir não tomar conhecimento do
objecto do recurso, por considerar que a norma do n.º 12 do artigo 26.º do
Código das expropriações, não foi aplicada pelo Acórdão do Tribunal da Relação
do Porto com o sentido cuja fiscalização a ora requerente pretende ver
apreciado.
2. Sucede que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto considerou que a norma
do artigo 26.º, n.º 12 do Código das Expropriações “não está ferida de
inconstitucionalidade quando entendida no sentido de permitir que uma parcela
integrada na RAN à data da declaração de utilidade pública, possa ser avaliada
em função do valor médio das construções existentes ou que seria possível
edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se
situe a 300m do limite da parcela expropriada”, admitindo a sua aplicação
analógica ao caso concreto.
3. Tendo a requerente em sede de recurso de apelação, nas suas conclusões,
formulado que, a admissibilidade da aplicação do disposto no n.º 12 do artigo
26.º ao caso concreto, significaria uma violação do princípio da igualdade,
princípio da proporcionalidade e princípio da equivalência, porquanto o
resultado interpretativo transposto ao caso-problema consubstanciar-se-ia numa
tutela abstracta, indiferenciada e discriminatória, como se infere da conclusão
e dos fundamentos do recurso interposto.
4. Salvo o devido respeito, não se compreende a fundamentação e sentido da
decisão do Tribunal Constitucional, porquanto o objecto da sindicância deste
Tribunal cinge-se à fiscalização da constitucionalidade de normas e respectivo
resultado interpretativo. Efectivamente, as conclusões da requerente são claras
na definição do objecto da apreciação de inconstitucionalidade: in casu a
aplicação do artigo 26.º, n.º 12 CE, na interpretação que lhe é dada pelo
Tribunal da Relação, significa uma tutela abstracta violadora dos valores
constitucionais, pelo que o que está em causa e deverá ser objecto de
sindicância pelo Tribunal Constitucional é o resultado interpretativo que
decorre da interpretação analógica do artigo 26.º, n.º 12 CE.
5. A simplicidade da fundamentação da não admissão do recurso pelo Tribunal
Constitucional materializa-se num acto de denegação de justiça, porquanto
fica-se por aferir e compreender se o Tribunal efectivamente descortinou qual o
objecto do recurso, isto porque a referência à protecção contra classificações
dolosas diz respeito ao sentido e escopo da norma artigo 26.º, n.º 12 Código das
Expropriações, em contraposição ao sentido e fins pressupostos na interpretação
analógica protagonizada no Acórdão da Relação, objecto do recurso do Tribunal
Constitucional.
6. Ainda que se pudesse suscitar alguma dúvida ou ambiguidade sobre o sentido do
texto inscrito após o hífen, as mesmas seriam cabalmente solucionadas se a
leitura da interposição do recurso fosse contextualizada com as Alegações de
Recurso de Apelação (veja-se as Conclusões n.ºs 16 e 17, em particular a
primeira: “Neste sentido, também não se pode invocar a aplicação do disposto no
artigo 26.º, n.º 12 à parcela, visto não se subsumir a situação da parcela à
ratio e hipótese normativa que fundamentou a sua consagração legal”) e o
Tribunal se colocasse na posição declaratário normal, nos termos artigo 236.º
Código Civil.
7. Concretamente, por isso, perece de qualquer fundamento da decisão do Tribunal
Constitucional, pois resulta de forma expressa que o objecto do recurso se
entranha na interpretação analógica do artigo 26.º, n.º 12 CE, protagonizada
pelo Tribunal da Relação do Porto.
O recorrido pronuncia-se no sentido da improcedência da reclamação.
3. A reclamação é improcedente, parecendo resultar de menor atenção
a um aspecto essencial do regime do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade e que consiste em incumbir ao recorrente o ónus de proceder
à definição primária do objecto do recurso, indicando, de modo preciso, a norma
cuja constitucionalidade pretende ver apreciada (artigo 75.º, n.º 1, da LTC).
Norma essa (ou sentido normativo esse) que tem de corresponder substancialmente
àquela que a decisão recorrida tenha aplicado como ratio decidendi, não podendo
Tribunal Constitucional substituir-se ao interessado em tal tarefa.
Não se questiona que o objecto do recurso de fiscalização concreta
de constitucionalidade é “a norma como interpretada”, que não tem
necessariamente de coincidir com aquele sentido que, de modo abstracto, do
respectivo preceito extrairia um intérprete ideal. Mas, como este Tribunal vem
repetindo, quando se questione uma certa interpretação, torna-se necessário que
o interessado precise o sentido da norma, de modo que, vindo ela a ser
considerada inconstitucional com esse sentido, a decisão que conhece do objecto
do recurso o possa enunciar de forma a que o tribunal recorrido, ao reformar a
decisão, saiba qual o sentido com que a norma não pode ser utilizada por ser
incompatível com a Constituição (cfr., de entre muitos, a título de exemplo, os
acórdãos n.ºs 178/95 e 39/03, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, é exacto que o acórdão recorrido decidiu a questão da avaliação
por aplicação da norma do n.º 12 do artigo 26.º do Código das Expropriações nos
termos referidos no n.º 2 da reclamação. Di-lo também a decisão sumária e é esse
é mesmo o seu ponto de partida. Porém, no requerimento de interposição do
recurso, o recorrente, em vez de submeter simplesmente esse sentido normativo à
fiscalização concreta de constitucionalidade, construiu a definição da norma nos
termos que na decisão sumária se transcreveram, que nada tem a ver com o sentido
considerado pelo acórdão recorrido.
4. Refere o recorrente que “resulta de forma expressa que o objecto
do recurso se entranha numa interpretação analógica do artigo 26.º, n.º 12 CE,
protagonizada pelo Tribunal da Relação do Porto”.
Sucede que não cabe ao Tribunal Constitucional intervir na determinação e
interpretação do direito ordinário tido por relevante – seja qual for a via pela
qual o tribunal da causa chegou à conclusão da aplicação desse conteúdo
normativo à situação concreta –, mas, apenas, verificar a conformidade a normas
e princípios constitucionais do sentido com que esse direito foi aplicado.
Sentido que, repete-se, o recorrente tem o ónus de enunciar no requerimento de
interposição. Ora a descoberta do escopo do regime legal pode interessar à sua
interpretação e à determinação da possibilidade da sua aplicação à situação
concreta. Mas não é o sentido da norma nem dispensa de enunciar o conteúdo
normativo que se pretende submeter ao Tribunal Constitucional.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o
recorrente nas custas, com 20 (vinte) UCs de taxa de justiça.
Lisboa 17 de Novembro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão