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Processo n.º 461/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do
Tribunal da Relação do Porto de que resultou a sua condenação, pela prática dos
crimes de abuso de poder e peculato de uso, na pena única de dois anos e três
meses de prisão e na pena acessória de perda do mandato autárquico, com
suspensão de execução por quatro anos, o que deu origem ao processo n.º 759/07
deste Tribunal.
Na pendência desse recurso, o arguido pediu a remessa do processo ao Tribunal da
Relação do Porto, para apreciação da prescrição do procedimento criminal e,
subsidiariamente, para aplicação retroactiva do novo regime de suspensão da
execução da pena instituído pelo n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal,
resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que considerou mais favorável.
Tendo esse pedido sido deferido e o processo baixado a título
devolutivo, por acórdão de 5 de Março de 2008, apreciando o referido
requerimento, o Tribunal da Relação do Porto decidiu:
“(…)
Apreciando e decidindo:
O crime continuado de abuso de poderes, previsto pelo art. 26º, nº 1, da Lei nº
34/87, de 16/7, pelo qual o arguido foi condenado, é punível com a pena
abstracta de 6 meses a três anos ou multa de 50 a 100 dias, se não lhe couber
sanção mais grave por força de outra disposição legal.
Por seu turno, o crime continuado de peculato de uso previsto pelo artigo 21º,
nº 1, da Lei nº 34/87, de 16/7, é punível com pena de prisão até 18 meses ou com
pena de multa de 20 a 50 dias.
O regime prescricional é o previsto no Código Penal (diploma a que se reportam
todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem), sendo
aplicável o disposto no art. 118º, nº 1, al. c) e nº 3, donde resulta um prazo
de prescrição do procedimento criminal de 5 anos.
Este prazo, por força do art. 119.º nº 1, só corre desde o dia em que o facto se
tiver consumado, havendo que considerar como tal, face ao que se teve como
provado (cfr. particularmente o facto nº 29), o dia 30 de Junho de 1997.
Segundo o nº 3 do art. 121º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre
lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver
decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade, o que no caso, sendo
de 5 anos o prazo normal de prescrição, eleva o prazo prescricional para 7 anos
e 6 meses.
Ora, o decurso do prazo de prescrição suspendeu-se na pendência do procedimento
criminal a partir da notificação da acusação, por 3 anos, período máximo de
suspensão admissível por força da causa de suspensão em apreço [art. 120º, nº 1,
al. b) e nº 3], o que prolonga o prazo de prescrição para 10 anos e 6 meses (5
anos + 2 anos e 6 meses + 3 anos), pelo que se outra causa de suspensão não
ocorresse, o procedimento criminal teria prescrito em 30 de Dezembro de 2007.
No entanto, há que considerar autonomamente os períodos de suspensão
correspondentes aos lapsos de tempo em que o processo esteve no Tribunal
Constitucional, que acima se referiram, por força da al.. a) do nº 1 do art.
120º, na parte em que dispõe que “a prescrição do procedimento criminal
suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo
em que:
a) O procedimento criminal não puder (...) continuar por falta (...) de sentença
a proferir por tribunal não penal (...) “.
A remessa dos autos ao Tribunal Constitucional tem de considerar-se abrangida
por esta disposição legal na medida em que a orgânica judiciária não contempla o
Tribunal Constitucional como tribunal penal, sendo certo que a decisão a
proferir sobre a conformidade constitucional de uma norma não pode deixar de
considerar-se como prejudicial relativamente ao objecto do processo.
Ou seja, e em conclusão, no que à primeira questão suscitada concerne, o
procedimento criminal não se encontra prescrito pelo decurso do prazo.
(…).”
2. O Ministério Público interpôs recurso deste acórdão, ao abrigo da
alínea g), do n.º 1 do artigo 70.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 72.º da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que seja apreciada a norma extraída
“do art.120º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1995 (actualmente
com a redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro), ou no artigo 119.º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal, na versão de 1982, na interpretação segundo a qual,
na devolução de questão prejudicial para juízo não penal, aí prevista, se
compreende o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal
Constitucional, em processo crime, para apreciação de uma questão de
inconstitucionalidade nele suscitada”.
3. Recebido o processo e efectuada nova distribuição, restrita ao
novo recurso que versa sobre questão cuja solução é susceptível de prejudicar a
apreciação daquelas que se discutem nos recursos de constitucionalidade
pendentes, foi ordenada a apresentação de alegações.
Apenas o Ministério Público alegou, tendo concluído nos seguintes
termos:
“(…)
1. É inconstitucional, por violação do disposto no artigo 280.º da Constituição
quanto à competência do Tribunal Constitucional, a norma contida no artigo
120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1995 (actualmente com a
redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro), ou no artigo 119.º, n.º 1, alínea
a), do Código Penal, na versão de 1982, na interpretação segundo a qual, na
devolução de questão prejudicial para juízo não penal, aí prevista, se
compreende o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal
Constitucional, em processo crime, para apreciação de uma questão de
inconstitucionalidade nele suscitada.
2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
4. Afigurando-se-lhe plausível que não deva conhecer-se do objecto
do recurso, atendendo a que foi interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC e que pode seriamente duvidar-se da coincidência entre a
norma anteriormente julgada inconstitucional e aquela que o acórdão recorrido
aplicou, o relator proferiu despacho do seguinte teor:
“A alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal parece prever três causas
de suspensão do prazo de prescrição, correspondendo a outros tantos segmentos
normativos autónomos de situações de impossibilidade de instauração ou
paralisação do processo penal:
i) falta de autorização legal;
ii) dependência de sentença a proferir por tribunal não penal;
iii) devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal.
O juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão n.º 596/2003 restringe-se
a este último segmento normativo (na devolução de questão prejudicial para juízo
não penal compreende-se ...). Ora, pelo contrário, o acórdão recorrido parece
fazer ancorar a suspensão no segmento normativo ‘sentença a proferir por
tribunal não penal”. É o que resulta dos termos em que procede à transcrição da
norma (fls. 3229) bem como do argumento, que simplesmente retira da orgânica
judiciária, para classificar o Tribunal Constitucional como não penal.
Assim sendo, não haverá coincidência entre a norma julgada inconstitucional pelo
citado acórdão n.º 596/2003 (invocado para efeitos da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC) e aquela que o acórdão recorrido aplicou.
É certo que o acórdão recorrido acrescenta o argumento de que “a decisão a
proferir sobre a conformidade constitucional de uma norma não pode deixar de
considerar-se como prejudicial relativamente ao objecto do processo”, referência
que pode ser interpretada como tendo enquadrado a situação também na última
parte do preceito. Mas, mesmo que assim se entenda, o conhecimento do recurso
quanto a esse segmento normativo deixaria subsistente ou não apreciado aquele
fundamento da decisão que reside no outro segmento normativo (2ª parte do
preceito) em que o Tribunal não poderia entrar por sobre ele não ter
anteriormente recaído pronúncia do Tribunal que abra a via do recurso
interposto.
Nestes termos, podendo razoavelmente sustentar-se que não deva conhecer-se do
objecto do recurso, notifique o Ministério Público para dizer o que tiver por
conveniente sobre esta questão.”
O recorrente (Ministério Público) nada disse sobre esta questão.
II – Fundamentos
5. O Ministério Público procedeu à indicação do objecto do recurso mediante
sobreposição do enunciado normativo que apresenta (no requerimento de
interposição e nas conclusões da respectiva alegação) com o julgamento de
inconstitucionalidade formulado no precedente judicial que lhe serve de
pressuposto específico para efeito da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Sucede que o acórdão recorrido aplicou simplesmente uma norma
extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal. Não contém
qualquer referência à alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal, na
versão de 1982.
A norma é a mesma, correspondendo o teor dispositivo da alínea a) do
n.º 1 do artigo 119.º da versão inicial do Código Penal ao da alínea a) do n.º 1
do artigo 120.º da versão considerada pelo acórdão recorrido, pelo que será esta
disposição que se identificará como suporte formal da norma que constitui
objecto do presente recurso.
6. Posto isto, cumpre passar à apreciação da questão obstativa
suscitada no despacho do relator acima transcrito (n.º 4, supra).
Sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, é seu pressuposto específico a identidade entre a norma aplicada
pela decisão recorrida e a norma anteriormente julgada inconstitucional (ou, se
for o caso, ilegal) pelo Tribunal Constitucional.
É indubitável que existe identidade substancial das questões de direito
infraconstitucional apreciadas no acórdão recorrido e na decisão de que resultou
o recurso de constitucionalidade que culminou no acórdão n.º 596/2003. Em
qualquer das situações se tratava de saber se o prazo de prescrição do
procedimento criminal se suspende durante o tempo em que o processo está
pendente no Tribunal Constitucional para apreciação de questão de
constitucionalidade nele suscitada. Mas isso, essa substantiva identidade
problemática, não basta para poder ser admitido um recurso ao abrigo da citada
alínea. É necessário que a resposta do tribunal da causa a essa questão assente
na aplicação da mesma norma anteriormente julgada inconstitucional pelo
Tribunal.
Efectivamente, esta abertura de recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, obrigatório para o Ministério Público (cfr. n.º 5 do artigo
280.º da Constituição e n.º 3 do artigo 72.º da LTC), tem por finalidade
garantir a autoridade do Tribunal Constitucional enquanto órgão jurisdicional
que detém a última palavra em matéria de constitucionalidade normativa e
assegurar a harmonia de julgados e a unidade de orientação jurisprudencial neste
domínio (carlos blanco de morais, Justiça Constitucional, Tomo II, pág. 741). O
que só é directamente posto em causa quando a mesma norma que o Tribunal
Constitucional tiver julgado desconforme à Constituição venha a ser
posteriormente aplicada pelos demais tribunais. Embora a situação para que se
procura resposta seja idêntica e ainda que seja a mesma ou comum a estatuição,
não pode dizer-se que a norma seja a mesma quando a hipótese normativa, a
previsão abstracta a que se subsume a concreta realidade, divergem de um para
outro caso. O que se intenta preservar é a uniformidade de decisão quanto à
inconstitucionalidade de determinada norma, não a prevalência da doutrina ou a
coerência valorativa.
7. Ora, como no despacho de fls. 3754 se refere, a alínea a) do n.º 1 do artigo
120.º do Código Penal prevê três causas de suspensão do prazo de prescrição,
correspondendo a outros tantos segmentos normativos autónomos de situações de
impossibilidade de instauração ou paralisação do processo penal:
i) falta de autorização legal;
ii) dependência de sentença a proferir por tribunal não penal;
iii) devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal.
O juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão n.º 596/2003
restringe-se a este último segmento normativo (“na devolução de questão
prejudicial para juízo não penal compreende-se …”). Aliás, essa pronúncia
expressa na decisão está em harmonia com a fundamentação acolhida para o
julgamento de inconstitucionalidade, toda ela construída sobre a conformação
constitucional do meio de acesso ao Tribunal Constitucional em fiscalização
concreta. O que motivou o juízo de inconstitucionalidade constante do precedente
jurisprudencial invocado foi considerar-se que o sistema instituído pelo artigo
280.º da Constituição impõe que as decisões dos demais tribunais sejam revistas
pelo Tribunal Constitucional em matéria de constitucionalidade por via de
recurso e não, como sucede noutras ordens jurídicas, que a questão lhe seja
deferida ou reenviada por via incidental, como se entendeu que o seu tratamento
como “questão prejudicial” implicava.
Foi, portanto, o segmento normativo que respeita à natureza do meio de acesso
(“questão prejudicial não penal”) e não à natureza do tribunal (“sentença a
proferir por tribunal não penal”) que o Tribunal apreciou no acórdão n.º
596/2003 e julgou inconstitucional.
Sucede que, pelo contrário, o acórdão recorrido funda (ou funda a título
principal) o entendimento de que o prazo de prescrição se suspende durante a
pendência do processo no segmento normativo “sentença a proferir por tribunal
não penal”. É o que resulta dos termos cirúrgicos em que procede à transcrição
da norma (fls. 3229) bem como do argumento que simplesmente retira da orgânica
judiciária para classificar o Tribunal Constitucional como não penal. Fundou,
pois, a decisão de que o prazo de prescrição se suspende em segmento normativo
da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal diverso daquele que
anteriormente foi objecto de um juízo de inconstitucionalidade por parte deste
Tribunal.
Assim sendo, não há coincidência entre a norma julgada inconstitucional pelo
citado acórdão n.º 596/2003 (invocado para efeitos da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC) e aquela que o acórdão recorrido aplicou, o que obsta ao
conhecimento do objecto do recurso.
8. Estando pendentes recursos de constitucionalidade cuja apreciação
ficou suspensa por virtude da remessa do processo ao tribunal a quo a fim de
apreciar as questões que deram origem a este outro recurso, o processo deve
agora transitar para a Secção onde pendia.
9. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso;
b) Determinar que, após trânsito em julgado desta decisão, o processo seja
remetido à 2.ª Secção deste Tribunal.
c) Sem custas.
Lisboa, 11 de Novembro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão