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Processo n.º 261/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A., notificado do Acórdão n.º 442/2008, de 23 de
Setembro de 2008 – que decidiu não conhecer do recurso por ele interposto para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), por as decisões recorridas não
terem aplicado os critérios normativos identificados no requerimento de
interposição de recurso –, vem requerer “o seu esclarecimento ou reforma”, nos
termos e com os fundamentos seguintes:
“1. No acórdão proferido por V. Ex.as, apreciando a questão
suscitada sobre o não conhecimento do recurso por alegada falta de coincidência
entre os critérios normativos efectivamente aplicados, como ratio decidendi, nos
acórdãos recorridos e os critérios normativos cuja conformidade constitucional
o recorrente pretendia ver apreciada, após enunciarem o teor da matéria de facto
dada como provada em 1.ª instância e a respectiva fundamentação e bem assim o
que no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Setembro de 2007, se
consignou quanto ao recurso em matéria de facto, concluem V. Ex.as que «tendo
este acórdão afirmado a correcção dos critérios utilizados na decisão da
matéria de facto em 1.ª instância, do teor desta resulta que nela não foram
seguidos os identificados nos dois primeiros pontos do requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional».
2. Concluindo‑se que não foi atribuída ao artigos 125.º, 126.º, n.º
2, alínea e), 127.º, 133.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, 140.º, n.º 3, e 334.º do
CPP a interpretação indicada pelo recorrente [«no sentido da admissibilidade
como meio de prova bastante para formar a convicção do Tribunal e fundamentar
uma decisão de condenação, das declarações de um co‑arguido contra outro
co‑arguido afectado por essas declarações, quando desacompanhadas de outros
meios de prova, desse modo admitindo que a livre apreciação da prova e formação
da convicção do julgador se possam basear e fundar em meios de prova não
susceptíveis de contraditório por parte dos arguidos, cuja valoração está
proibida ou não é admissível, admitindo‑os e valorando‑os»], pois «resulta da
fundamentação da decisão de facto a ponderação, para além dos depoimentos dos
co‑arguidos, de outra prova testemunhal e documental, ao que acresce que em
parte alguma se admitiu a valoração de meios de prova não susceptíveis de
contraditório, sendo certo que não se pode considerar ‘prova não susceptível de
contraditório’ a produzida em audiência, na presença do arguido e do seu
defensor, que estes tiveram possibilidade de contraditar, nada tendo a ver com
a impossibilidade de contraditório a circunstância de o recorrente ter optado
por não prestar declarações em audiência de julgamento».
Sucede porém que,
3. Da própria fundamentação do acórdão proferido em primeira
instância, transcrita por V. Ex.as no acórdão aclarando, à qual aderiu o
acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, resulta que a convicção
do Tribunal, pelo menos no que se refere aos factos referidos nas alíneas c),
d) e e) dos factos provados, fundou‑se única e exclusivamente nas declarações
conjugadas dos arguidos B., C. e D..
4. É o seguinte o teor da fundamentação do acórdão proferido em 1.ª
instância transcrita por V. Ex.as no acórdão aclarando:
«(…)
Quanto ao facto referido em c), das declarações conjugadas dos
arguidos B. e C.;
Quanto ao facto referido em d), das declarações conjugadas dos
arguidos D., B. e C.;
Quanto ao facto referido em e), das declarações conjugadas dos
arguidos D., B. e C..»
5. Ora, tendo V. Ex.as expressamente feito referência à
fundamentação apresentada em primeira instância, de tal modo que a mesma se
encontra até transcrita no acórdão aclarando – admitindo que relativamente aos
factos dados como assentes nas alíneas c), d) e e) dos factos provados a
convicção do tribunal resultou tão‑só da análise das declarações dos
co‑arguidos – não se compreende como puderam V. Ex.as concluir, ao mesmo tempo,
que «resulta da fundamentação da decisão do facto a ponderação, para além dos
depoimentos dos co‑arguidos, de outra prova testemunhal e documental».
6. Pelo que, salvo o devido respeito, permanece na mente do
recorrente a dúvida insanável sobre se no acórdão aclarando, por mero lapso, não
vieram V. Ex.as a considerar, também relativamente às alíneas supra
identificadas, a alegada ponderação, por parte do Tribunal de 1.ª instância (e
consequentemente do Tribunal da Relação de Lisboa que, no acórdão de 19 de
Setembro de 2007, afirmou a correcção dos critérios utilizados na decisão da
matéria de facto em 1.ª instância), para além dos depoimentos dos co‑arguidos,
de outra prova testemunhal e documental, ponderação essa que aqueles tribunais
expressamente admitiram não existir.
7. Acresce que no acórdão aclarando referem ainda V. Ex.as que «em
parte alguma se admitiu a valoração de meios de prova não susceptíveis de
contraditório, sendo certo que não se pode considerar ‘prova não susceptível de
contraditório’ a produzida em audiência, na presença do arguido e do seu
defensor, que estes tiveram possibilidade de contraditar, nada tendo a ver com a
impossibilidade de contraditório a circunstância de o recorrente ter optado por
não prestar declarações em audiência de julgamento».
8. E que «Também não foi aplicada qualquer interpretação do artigo.
127.º do CPP, ‘no sentido de a livre apreciação da prova e formação da
convicção do julgamento se poder basear e fundamentar em meios de prova
subtraídos ao contraditório dos co‑arguidos por eles afectados’. (…)».
Ora,
9. A questão que se mostra suscitada pelo recorrente relativa à
admissão e valoração de meios de prova não susceptíveis de contraditório nada
tem que ver com o facto de o recorrente, em audiência de julgamento, ter optado
por não prestar declarações, mas antes com o facto de os seus co‑arguidos –
aqueles que prestaram declarações em audiência de julgamento – se terem recusado
a responder a toda e qualquer pergunta formulada pela defesa do arguido A. e,
nessa medida, não terem sido controlados através do necessário contraditório da
defesa dos co‑arguidos atingidos: no caso, o arguido A., o que resulta com
grande clareza da gravação efectuada dos depoimentos prestados em audiência de
julgamento.
10. Com efeito, em audiência de julgamento, todos os co‑arguidos
responderam às questões que lhes forma formuladas pelo Tribunal, pelo
Ministério Público e restantes co‑arguidos, mas não já aos esclarecimentos
solicitados pela defesa do recorrente, tendo informado expressamente o Tribunal
que não iriam responder a qualquer pergunta formulada pela defesa do ora
recorrente, como efectivamente não responderam.
11. Por essa razão, a questão da validade das declarações dos
co‑arguidos que não foram sequer controlados através do necessário
contraditório da defesa dos co‑arguidos atingidos – porque se recusaram a
responder –, e tão‑pouco corroboradas por outros meios de prova, mas com base
nas quais o tribunal a quo considerou como provados os factos levados às alíneas
c), e), a), b), l), m), n), o), p), q), r), t) e v) da matéria de facto provada
e consequente inquinação do acórdão recorrido de nulidade, foi suscitada pelo
recorrente em sede de recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa e bem
assim a inconstitucionalidade da interpretação normativa efectuada pelo tribunal
a quo das normas dos artigos 125.º, 128.º, 127.º, 133.º, n.º 1, alínea a),
344.º, 133.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, e 140.º, n.º 3, não só no sentido da
admissibilidade como meio de prova bastante para formar a convicção do Tribunal
e fundamentar uma decisão de condenação das declarações de um co‑arguido contra
outro co‑arguido afectado por essas declarações, quando desacompanhadas de
outros meios de prova, mas também no sentido de que a livre apreciação da prova
e formação da convicção do julgador se possam basear e fundar em meios da prova
não susceptíveis de contraditório por parte dos arguidos (ou subtraídos ao
contraditório dos co‑arguidos por eles afectados), cuja valoração está proibida
ou não é admissível, admitindo‑os e valorando‑os.
12. Não se compreende assim o sentido e alcance da afirmação
proferida por V. Ex.as no acórdão aclarando no sentido de que «não se pode
considerar ‘prova não susceptível de contraditório’ a produzida em audiência,
na presença do arguido e do seu defensor, que estes tiveram possibilidade de
contraditar».
13. Pelo que, salvo o devido respeito, permanece na mente do
recorrente a dúvida insanável sobre se no acórdão aclarando perfilham V. Ex.as
entendimento no sentido de que a prova produzida em audiência, na presença do
arguido e do seu defensor, designadamente declarações de co‑arguidos que se
recusam a responder a toda e qualquer pergunta formulada pela defesa de outro
co‑arguido, não é insusceptível de contraditório, sendo consequentemente
conforme à Constituição a interpretação efectuada pelo Tribunal a quo aos
referidos dispositivos, e não tendo sido assim aplicada qualquer interpretação
do artigo 127.º do CPP no sentido de a livre apreciação da prova e formação da
convicção do julgador se poder basear e fundamentar em meios de prova
subtraídos ao contraditório dos co‑arguidos por eles afectados.
14. Ou se, pelo contrário, ao referir no acórdão aclarando que «em
parte alguma se admitiu a valoração de meios de prova não susceptíveis de
contraditório», bem como que «não se pode considerar ‘prova não susceptível de
contraditório’ a produzida em audiência, na presença do arguido e do seu
defensor, que estes tiveram possibilidade de contraditar», não ignoraram V.
Ex.as, por mero lapso, a circunstância de os co‑arguidos que depuseram em
audiência de julgamento se terem recusado a responder a toda e qualquer
pergunta formulada pela defesa do arguido A..
15. Face ao supra exposto, vem o recorrente, nos termos e ao abrigo
do disposto nos artigos 666.º, n.º 2, 667.º, n.º 1, e 669.º, n.ºs 1, alínea a),
e 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, requerer o
esclarecimento/aclaração e/ou a sua reforma do Acórdão proferido por V. Ex.as
relativamente aos aspectos supra enunciados.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
apresentou resposta no sentido de que “a presente reclamação carece
manifestamente de fundamento”, já que “o Acórdão reclamado é perfeitamente claro
e insusceptível de dúvida objectiva sobre as razões que conduziram ao não
conhecimento do recurso, por inverificação dos seus pressupostos, pelo que é
processualmente inadmissível a formulação de pedido de aclaração”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2.1. Apesar de invocar o n.º 1 do artigo 667.º do CPC, o
recorrente não aponta ao Acórdão reclamado qualquer “erro material” que devesse
ser rectificado.
2.2. Apesar de invocar a alínea a) do n.º 1 do artigo
669.º do CPC, o recorrente não indica qualquer passagem do Acórdão reclamado que
contenha alguma obscuridade ou ambiguidade, pelo que o pedido de aclaração
carece, em absoluto, de fundamentação. Na verdade, o pedido de aclaração de
decisões judiciais visa o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade
de que a decisão aclaranda padeça (a decisão é obscura quando contém algum
passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se
preste a interpretações diferentes), não podendo ser utilizado para se obter,
por via oblíqua, a modificação do julgado.
2.3. Apesar de invocar a alínea a) do n.º 2 do artigo
669.º do CPC, o recorrente não aponta ao Acórdão reclamado erro, por manifesto
lapso dos juízes, “na determinação da norma aplicável ou na qualificação
jurídica dos factos”.
2.4. O que, na realidade, o recorrente manifesta, no
requerimento em apreço, é a sua discordância do decidido pelo Tribunal, no dito
Acórdão, quanto à não aplicação, pelos acórdãos recorridos, das dimensões
normativas cuja inconstitucionalidade ele pretendia ver apreciada, e que
determinou a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
Porém, a constatação de que as instâncias não aplicaram
o critério normativo (identificado pelo recorrente como integrando o objecto do
presente recurso) segundo o qual, “para formar a convicção do Tribunal e
fundamentar uma decisão de condenação” é admissível considerar meios de prova
bastantes as “declarações de um contra‑arguido contra outro co‑arguido afectado
por essas declarações, quando desacompanhadas de outros meios de prova”, meios
de provas esses (as declarações dos co‑arguidos) “não susceptíveis de
contraditório por parte dos arguidos”, assentou, no Acórdão ora reclamado, na
interpretação que foi feita dos acórdãos recorridos e, por remissão destes, na
fundamentação da decisão da matéria de facto na 1.ª instância, no sentido de que
deles resultavam que, “para fundamentar a decisão de condenação”, a convicção
do tribunal de 1.ª instância se fundou “no conjunto da prova produzida em
julgamento”, que não se limitou às declarações dos arguidos (com excepção do
recorrente, que foi o único que não prestou declarações – cf. parte inicial da
“motivação da decisão quanto à matéria de facto” da 1.ª instância, transcrita a
fls. 27 a 31 do Acórdão ora reclamado), mas também em declarações de 14
testemunhas e em diversos documentos, e, no que concerne ao Tribunal da Relação,
ainda na audição aí feita da prova produzida (cf. fls. 32 do Acórdão reclamado).
Por outro lado, não se pode deixar de considerar
surpreendente a tese – pela primeira vez exposta pelo recorrente na presente
reclamação – de que a alegada inexistência de contraditório tendo por objecto as
declarações dos restantes co‑arguidos resultou de estes se terem recusado a
responder às perguntas formuladas pelo defensor do ora recorrente. Lidas e
relidas as 51 folhas da alegação do recorrente apresentadas neste Tribunal, nem
uma única vez se faz alusão a essa conduta dos co‑arguidos. Nessa peça, o
recorrente limita‑se a referenciar, sem concretizar nem provar, terem sido
valorados pelas instâncias “meios de prova subtraídos ao contraditório do
co‑arguido por el[es] afectado” (fls. 1679, 1690, 1705, 1706, 1722 e 1723) ou
“meios de prova não susceptíveis de contraditório por parte dos arguidos” (fls.
1680, 1681, 1685, 1687, 1688, 1689, 1694, 1701, 1705, 1716, 1717 e 1719) e que
os depoimentos dos co‑arguidos “não foram controlados” (fls. 1704). Quanto a
recusa em prestar declarações, o recorrente, nas citadas alegações, apenas
refere a sua própria recusa, sustentando que a sua opção pelo direito ao
silêncio em nada o pode desfavorecer (cf. fls. 1698‑1699, 1718 e 1720), aduzindo
que ele “no exercício do seu direito ao silêncio, tão‑pouco pôde defender‑se dos
factos que lhe foram imputados pelos restantes arguidos” (fls. 1702). Não tendo
o recorrente explicitado as razões pelas quais entendia não ter sido assegurado
o contraditório relativamente às declarações dos co‑arguidos, deduziu‑se, face
às últimas referências ao seu silêncio e à inadmissibilidade de ser prejudicado
por essa opção, que radicaria aqui a sua tese de desrespeito do princípio do
contraditório. Só agora – na presente reclamação – vem o recorrente imputar
esse desrespeito a uma hipotética recusa de os restantes co‑arguidos responderem
às perguntas do seu defensor, vicissitude esta que não referiu nas alegações do
presente recurso, nem resulta das decisões das instâncias (na motivação da
decisão quanto à matéria de facto da 1.ª instância refere‑se expressamente que o
ora recorrente não prestou declarações quanto aos factos e que “os demais
arguidos prestaram declarações” – cf. fl. 28 do Acórdão reclamado).
Para além da manifesta inidoneidade desse facto (caso
tivesse efectivamente ocorrido e estivesse provado nos autos) para fundamentar
uma conclusão de violação do princípio do contraditório, é patente que os
acórdãos recorridos em parte alguma adoptaram um critério normativo que
admitisse a valoração das declarações dos co‑arguidos não sujeitas ao
contraditório do co‑arguido por elas afectado, e, consequentemente, não ocorre o
fundamento de reforma das decisões judiciais, previsto na alínea b) do n.º 2 do
artigo 669.º do CPC: não ter a decisão reclamada, por lapso manifesto, tomado em
consideração documentos ou quaisquer elementos constantes do processo que, só
por si, implicassem necessariamente decisão diferente da proferida.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir os pedidos
de esclarecimento e de reforma do Acórdão n.º 442/2008, formulados pelo
recorrente.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 29 de Outubro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos