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Processo n.º 253/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é
recorrente A., SA, e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele
Tribunal, de 28.01.2008, para apreciação das seguintes normas:
i) artigo 55.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, por atribuir
competência aos tribunais judiciais para conhecer dos recursos interpostos dos
actos administrativos, no âmbito de processo de contra-ordenação (ambiental),
por violação dos artigos 212.º, n.º 3, e 214.º, n.º 3, da Constituição;
ii) artigo 73.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na interpretação de
que é irrecorrível o despacho interlocutório que, em primeira instância, negue a
realização e produção de meios de prova (no caso, perícia) no âmbito de processo
contra-ordenacional, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, e dos
princípios do acesso ao direito e das garantias de defesa.
2. O presente recurso emerge de impugnação judicial da decisão do Ministério do
Ambiente, Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional proferida, em
processo de contra-ordenação ambiental, contra A., SA.
Neste recurso, a recorrente A. requereu a realização de prova pericial, a
realizar pelo Laboratório de Engenharia Civil, que veio a ser indeferida por
despacho da primeira instância.
Inconformada, a recorrente A. interpôs recurso deste despacho, o qual não foi
admitido.
Ainda inconformada, reclamou da decisão que não admitiu o recurso, tendo esta
reclamação sido indeferida por despacho da Vice-Presidente do Tribunal da
Relação do Porto, de 28.01.2008.
As questões de constitucionalidade foram suscitadas, pela recorrente, no decurso
do processo, tendo o despacho recorrido decidido pela sua improcedência.
3. A recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1.º
A interpretação do art.° 55 n.° 3 do DL 433/82 de 27/10 que permite a atribuição
de competência aos tribunais judiciais para dirimir litígios emergentes de
relações jurídicas administrativas (nomeadamente dos relativos à aplicação de
coimas no âmbito de processo contra-ordenacional ambiental) viola frontalmente o
disposto nos art.°s 212 n.° 3 e 214 n.º 3 da CRP, uma vez que os mesmos
consagram a atribuição à jurisdição administrativa de todos os litígios que
emergem das relações jurídicas de direito público.
2.°
Deve assim ser decidido que o tribunal competente para julgar o presente
processo é o tribunal administrativo e fiscal da área onde alegadamente foi
cometida a infracção.
Por outro lado,
3.º
A interpretação que foi dada ao art.° 73 n.°s 1 e 2 do DL 433/82 de 27/10 que
levou à consideração da irrecorribilidade de decisões interlocutórias que,
nomeadamente, neguem em 1.ª instância a realização e produção de meios de prova
(neste caso, perícia) no âmbito de processo contra-ordenacional (ambiental)
viola frontalmente o disposto nos art.°s 32 n.° 1 e 268 n.° 4 da CRP (e demais
princípios fundamentais vg o princípio do acesso ao direito e das garantias de
defesa, com expressão, nomeadamente, no disposto no art.° 55 n.° 1 do RGCO,
devendo ser admissível a interposição de recurso pelo menos de um grau, por
aplicação subsidiária do regime previsto no C.P.P.
4°
Na interpretação que lhe é dada pelo douto despacho recorrido o art.° 73 n.°s 1
e 2 do R.G.C.O. é inconstitucional.
5°
Tal inconstitucionalidade deriva dos seguintes preceitos constitucionais: -
art.°s 20.º, 29.° e 32.°, 205.° e 208.°.
6°
A violação daqueles três primeiros preceitos constitucionais manifesta-se na
impossibilidade de o recorrente requerer diligência probatória relevante para a
causa.
7°
O desrespeito do art.° 205.° n.° 2 da C. R. P. consubstancia-se na atribuição ao
juiz de um poder discricionário.
8°
Por fim, quanto ao disposto no art.° 208.° n.° 1 da C. R. P., a contradição de
tal interpretação com este preceito seria indirecta: -por não se considerar o
julgador livre de aceitar ou rejeitar diligências probatórias que se reputaram
de essenciais para a descoberta da verdade e para uma boa decisão da causa.
9.º
O douto despacho recorrido violou por erro de interpretação o disposto nos
citados preceitos legais, sendo inconstitucionais as interpretações que fez dos
dois preceitos legais antes aludidos,
10.º
Devendo ser revogado e substituído por outro que julgue no sentido antes
exposto, nomeadamente mandando admitir o recurso interposto, assim se fazendo
J U S T I Ç A.»
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
«1.°
O princípio constitucional da reserva material de jurisdição administrativa não
obsta a que os recursos em matéria contraordenacional sejam apreciados pelos
tribunais judiciais.
2.°
Nenhum princípio constitucional impõe que, em processo contraordenacional,
esteja cometido à Relação o exercício de um duplo grau de jurisdição quanto a
todos os despachos interlocutórios, nomeadamente incidentes sobre a instrução do
pleito, já devida e plenamente reapreciado pelo tribunal de 1.ª instância, na
sequência do recurso da decisão sancionatória com coima.
3.°
Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
5. A primeira questão de constitucionalidade refere-se ao artigo 55.º, n.º 3, do
Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82,
de 27 de Outubro, e alterado pela Lei n.º 4/89, de 3 de Março, pelo Decreto-Lei
n.º 13/95, de 5 de Maio, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, e pela
Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro), que estabelece o seguinte:
«Artigo 55.º
Recurso das medidas das autoridades administrativas
1 − As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades
administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial
por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem.
2 − O disposto no número anterior não se aplica às medidas que se destinem
apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima, não
colidindo com os direitos ou interesses das pessoas.
3 − É competente para decidir do recurso o tribunal previsto no artigo 61.º, que
decidirá em última instância.»
O artigo 61.º, para que remete o citado n.º 3, atribui essa competência ao
«tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção» (n.º 1), ou,
se a infracção não tiver chegado a consumar-se, ao tribunal «em cuja área se
tiver praticado o último acto de execução» ou «o último acto de preparação» (n.º
2).
A recorrente suscita a inconstitucionalidade do artigo 55.º, n.º 3, na parte em
que, remetendo para o artigo 61.º, atribui competência aos tribunais judiciais
para julgar os recursos das “decisões, despachos e demais medidas” tomadas pelas
autoridades administrativas no decurso do processo de contra-ordenação. Em
síntese, a recorrente considera que a norma que atribui competência aos
tribunais judiciais viola o artigo 212.º, n.º 3, da Constituição (artigo 214.º,
n.º 3, antes da revisão constitucional de 1997), por este preceito consagrar a
atribuição à jurisdição administrativa de todos os litígios que emergem das
relações jurídicas de direito público.
Na decisão recorrida conclui-se, a este respeito, que «é de aceitar que o
legislador possa atribuir litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas aos tribunais judiciais, desde que não descaracterize a
exigência de uma jurisdição administrativa, o que não ocorre (como é evidente)
com a atribuição aos tribunais judiciais do julgamento dos recursos das decisões
administrativas que apliquem coimas».
O presente recurso emerge de uma impugnação judicial de uma decisão do
Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional,
tomada contra a recorrente no âmbito de um processo de contra-ordenação
ambiental.
O acto que a recorrente impugnou junto dos tribunais judiciais é, assim, um acto
materialmente administrativo, proferido por uma entidade administrativa, no
exercício do seu poder sancionatório, que foi antecedido por um procedimento
administrativo, destinado a apurar e sancionar uma conduta violadora de normas
de direito do ambiente.
Estamos, portanto, perante uma relação material controvertida de natureza
jurídico-administrativa, que, no entanto, cabe aos tribunais judiciais julgar,
quer no que respeita à impugnação da decisão final da autoridade administrativa
(artigo 61.º do RGCO), quer quanto à impugnação das decisões e demais medidas
tomadas no decurso do processo contra-ordenacional (artigo 55.º, n.º 3, do RGCO)
A questão colocada no presente recurso é a de saber se este regime é compatível
com o artigo 212.º, n.º 3, da Constituição (que, antes da revisão constitucional
de 1997, correspondia ao artigo 214.º, n.º 3, este introduzido na revisão 1989),
segundo o qual compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das
acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Este preceito constitucionalizou uma jurisdição administrativa autónoma,
tornando os tribunais administrativos e fiscais os tribunais comuns para o
julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e
fiscais.
O Tribunal Constitucional já foi várias vezes chamado a pronunciar-se sobre o
alcance desta reserva constitucional de jurisdição administrativa, tendo
reiteradamente sustentado o entendimento, assim resumido no Acórdão n.º 211/07:
«(…) a introdução, pela revisão constitucional de 1989, no então artigo 214.º,
n.º 3, da Constituição, da definição do âmbito material da jurisdição
administrativa, não visou estabelecer uma reserva absoluta, quer no sentido de
exclusiva, quer no sentido de excludente, de atribuição a tal jurisdição da
competência para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais. O preceito constitucional não impôs que todos estes
litígios fossem conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da
possibilidade de atribuição de alguns deles à jurisdição “comum”), nem impôs que
esta jurisdição apenas pudesse conhecer desses litígios (com absoluta proibição
de pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios
emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente
admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e
insusceptíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das
jurisdições.»
Também a doutrina perfilha este entendimento − cfr., entre outros, GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra,
676-677; VIEIRA DA ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., Coimbra,
2006, 112-114.
Dentro desta linha, a jurisprudencial constitucional pronunciou-se no sentido da
não inconstitucionalidade de normas que atribuem competência aos tribunais
judiciais para decidirem, nomeadamente, as seguintes questões:
i) Fixação do valor global da indemnização na expropriação
litigiosa (Acórdão 746/96);
ii) Recursos das deliberações do plenário do Conselho Superior
da Magistratura (Acórdãos n.ºs 347/97 e 421/2000);
iii) Acções referidas no artigo 45.º, n.ºs 1 e 2, da Lei de Bases
do Ambiente (Acórdão n.º 458/99);
iv) Recursos dos despachos que concedam ou recusem patentes,
depósitos ou registos (Acórdão n.º 550/2000);
v) Impugnação dos actos dos conservadores do registo predial
(Acórdão n.º 284/2003);
vi) Litígios em que figure como parte a REFER – Rede Ferroviária
Nacional, E.P., mesmo no caso das acções em que estejam em causa relações
jurídico-administrativas (Acórdão n.º 211/07);
vii) Caducidade da declaração de utilidade pública (Acórdão n.º
302/08).
É evidente o paralelismo entre a situação dos autos e as acabadas de enunciar,
em que também estava em causa a atribuição de competência aos tribunais
judiciais para dirimirem litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas.
Para além disso, não pode dizer-se que a atribuição de competência aos tribunais
judiciais, no caso das contra-ordenações, seja desprovida de justificação. Na
verdade, a opção legislativa, com longa tradição entre nós, de manter o
contencioso das contra-ordenações excluído da jurisdição administrativa foi
assumida na discussão que antecedeu a recente reforma do contencioso
administrativo e a redefinição do respectivo âmbito da jurisdição, de que veio a
resultar o actual artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado, por último, pela
Lei n.º 26/2008, de 27 de Junho). Como justificação para esta opção,
invocaram-se as insuficiências de que padece a rede de tribunais administrativos
(mesmo após a reforma), incapaz de dar a adequada resposta, sem o risco de gerar
disfuncionalidades no sistema (cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL/ MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra, 2002,
24).
Por último, sendo inegável a natureza administrativa (no caso, em matéria
ambiental) do processo de contra-ordenação e das situações jurídicas que lhe
estão subjacentes, a verdade é que o processo contra-ordenacional, pelo menos na
fase judicial, está gizado à imagem do processo penal (cfr. artigos 41.º e 59.º
e s., maxime, 62.º e s., do RGCO, e artigo 52.º Lei n.º 50/2006, de 29 de
Agosto, que estabelece o regime aplicável às contra-ordenações ambientais).
Neste contexto, em que coexistem matérias administrativas com modelos
processuais penalistas, a “remissão” para os tribunais judiciais das impugnações
judiciais no âmbito de processos de contra-ordenação (ambiental) não se afigura
atentatória do figurino típico que a Constituição quis consagrar quanto ao
âmbito material da justiça administrativa.
Pelo exposto, conclui-se pela não inconstitucionalidade do artigo 55.º, n.º 3,
do RGCO, na parte em que atribui aos tribunais judiciais competência para julgar
os recursos das decisões das autoridades administrativas tomadas no âmbito dos
processos de contra-ordenação.
6. A segunda questão de constitucionalidade refere-se ao artigo 73.º do RGCO,
que dispõe o seguinte:
«Artigo 73.º
Decisões judicias que admitem recurso
1 − Pode recorrer-se para a relação da sentença ou do despacho judicial
proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a € 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a
autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a € 249,40 ou em que
tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter
oposto a tal.
2 − Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a
requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença
quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do
direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 − Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a
vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos
arguidos se verificarem os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses
limites.»
Dos elementos dos autos resulta que, por despacho do juiz de primeira instância,
foi indeferido o requerimento de prova pericial (a realizar pelo Laboratório de
Engenharia Civil) que a recorrente havia formulado na impugnação judicial da
decisão do MAOTDR sancionadora de contra-ordenação. O recurso deste despacho não
foi admitido na primeira instância e a reclamação do despacho de não admissão
foi indeferida pela decisão do Tribunal da Relação do Porto, ora recorrida,
invocando-se que o despacho que indeferiu a realização da diligência de prova
«não se enquadra no elenco das decisões exaustivamente previstas no art. 73.º do
Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, sendo desse modo uma decisão
irrecorrível».
A recorrente suscita a inconstitucionalidade do artigo 73.º do RGCO,
interpretado no sentido de que é irrecorrível o despacho interlocutório que, em
primeira instância, negue a realização e produção de meios de prova (no caso,
perícia) no âmbito de processo contra-ordenacional (ambiental), por violação das
garantias de acesso ao direito e de defesa, expressas nos artigos 32.º, n.º 1, e
268.º, n.º 4, da Constituição.
Diga-se, desde já, que a convocação, como parâmetro constitucional, do artigo
268.º, n.º 4, é, aqui, desprovida de sentido, uma vez que está em causa a
recorribilidade de um despacho judicial, proferido no decurso do processo, e não
o direito de impugnação, perante os tribunais, da decisão sancionatória, este
sim assente, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e especificamente para as decisões
administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.
A questão da irrecorribilidade do despacho que indeferiu um meio de prova
convoca a problemática do direito ao recurso, ou seja, ao duplo grau de
jurisdição.
Note-se que o direito ao recurso (a que se refere o n.º 1 do artigo 32.º) é
coisa diferente do direito de audiência e defesa que o n.º 10 do mesmo preceito
garante em processos de contra-ordenação e em quaisquer processos
sancionatórios. Esta última norma significa que é inconstitucional a aplicação
de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal,
laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente
ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (cfr. JORGE
MIRANDA/ RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, Coimbra, 2005,
363).
Das garantias gerais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva,
vertidas, nomeadamente, no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, não decorre um
direito ao recurso, ou seja, à reapreciação das decisões judiciais por um
tribunal superior (neste sentido, cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 589/2005).
Diferentemente, no âmbito específico do processo penal, as garantias de defesa
incluem expressamente o direito ao recurso − n.º 1 do artigo 32.º, na redacção
resultante da revisão constitucional de 1997.
O problema que se coloca é o de saber em que medida este princípio da
«constituição processual penal» (a expressão é de GOMES CANOTILHO/ VITAL
MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra,
2007, 515) é transponível para o processo contra-ordenacional. A esta questão o
Tribunal Constitucional tem recorrentemente respondido com a afirmação da «não
aplicabilidade directa e global aos processos contra-ordenacionais dos
princípios constitucionais próprios do processo criminal», que, no entanto, é
«conciliável com a “necessidade de serem observados determinados princípios
comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de
um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de
processo penal”» (cfr. Acórdão n.º 659/2006 e jurisprudência aí citada).
Nomeadamente, no Acórdão n.º 313/2007, o Tribunal afirmou que «o direito ao
recurso actualmente consagrado no nº 1, do artº 32º, da C.R.P. (introduzido pela
revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões
jurisdicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as
impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação directa ao
processo de contra-ordenação.»
Mas, ainda que se admitisse a aplicação imediata ao processo contra-ordenacional
do direito ao recurso garantido constitucionalmente apenas para o processo
penal, tal não significaria in casu admitir a recorribilidade do despacho que
indeferiu a diligência de prova.
De facto, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, ao dispor que o processo penal
assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, não atribui um
direito ilimitado de impugnação de toda e qualquer decisão judicial proferida em
processo penal.
Como se refere no Acórdão n.º 221/2000, invocando jurisprudência reiterada do
Tribunal, «o direito ao recurso no processo penal garante-o a Constituição
quanto às decisões condenatórias e relativamente àquelas que privem ou
restrinjam a liberdade ou quaisquer direitos fundamentais do arguido.»
Fora destas espécies de decisões, o Tribunal Constitucional tem entendido que o
direito ao recurso se inscreve na liberdade de conformação do legislador e que a
limitação da possibilidade de recurso é compatível com as garantias de defesa.
Como se salienta no Acórdão n.º 216/99 «multiplicar as possibilidades de recurso
ao longo do processo seria comprometer outro imperativo constitucional: o da
celeridade na resolução dos processos-crime (artigo 32º, nº 2, in fine, da
Constituição da República Portuguesa)».
Assim, foram julgadas não inconstitucionais normas que estabelecem a
irrecorribilidade, designadamente, das seguintes decisões interlocutórias
proferidas em processo penal: i) decisão instrutória que pronunciar o arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Publico, determinando a
remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento (Acórdão n.º
265/94); ii) despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais
(Acórdão n.º 216/99); iii) despacho que indefere a realização de diligências
instrutórias (Acórdãos n.ºs 371/2000, 459/2000 e 340/2007, entre outros);
Não estando constitucionalmente consagrado um direito ao recurso de todas as
decisões proferidas em processo penal, por maioria de razão não pode entender-se
que a Constituição imponha tal garantia no processo contra-ordenacional.
Pelas razões expostas, a interpretação do artigo 73.º do RGCO, no sentido de não
permitir recurso do despacho que indeferiu uma diligência de prova requerida
pela arguida no processo de contra-ordenação, não é incompatível com a
Constituição, nomeadamente, com as garantias de defesa que o artigo 32.º, n.º 1,
consagra para o processo penal e que sejam extensíveis ao processo de
contra-ordenação.
Em sentido idêntico já se pronunciou o Tribunal no citado Acórdão n.º 659/2006
(disponível, como todos os demais, em www.tribunalconstitucional.pt), em que
também estava em causa o artigo 73.º do RGCO, mas interpretado no sentido de não
permitir recurso para o Tribunal da Relação de despacho de indeferimento de
arguição de nulidade processual.
Como no mesmo acórdão já se salientou e a decisão aqui recorrida também refere,
o arguido tem outras possibilidades de defesa, neste caso, contra o
indeferimento do requerimento de prova, pois a irrecorribilidade daquele
despacho não significa que a questão não possa ser apreciada no recurso da
decisão final, configurando uma nulidade processual arguível no recurso da
decisão final (artigos 120.º e 410.º, n.º 3, do CPP).
III − Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 55.º, n.º 3, do Regime Geral
das Contra-Ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado, por
último, pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro), na medida em que atribui aos
tribunais judiciais competência para julgar as impugnações judiciais de decisões
das autoridades administrativas, tomadas no âmbito de processo de
contra-ordenação ambiental;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 73.º do Regime Geral das
Contra-Ordenações, interpretada no sentido de que é irrecorrível o despacho
interlocutório que, em primeira instância, negue a realização e produção de meio
de prova, no âmbito de processo de contra-ordenação;
c) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 29 de Outubro de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos