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Processo n.º 212/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 1 do
art.º. 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, da
decisão do relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu não conhecer do
recurso de constitucionalidade interposto de acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça.
2 – Fundamentando a sua reclamação diz a reclamante:
«A ora, reclamante foi julgada e condenada pelo Tribunal da Comarca de Loulé na
pena única de 7 anos de prisão pela prática de 1 crime de tráfico de produto
estupefaciente e 1 crime de detenção ilegal de arma de defesa, pp pelos arts 21,
nº 1 do DL 22/93 de 22 de Janeiro e art. 6° da Lei nº 22/97, de 27 de Junho
respectivamente.
Para a condenação da arguida, ora recorrente, foram considerados provados que a
mesma, com o seu companheiro, o co-arguido nestes autos B., transaccionava
produto estupefaciente e que no dia da busca à sua então residência sita em
Quarteira, Algarve, foi encontrada a arma descrita na acusação, uma pistola de
calibre 6,35 pertencendo a ambos, sem que, para tal possuíssem licença.
A arguida alegou a sua inocência, uma vez que nada teve a ver com os vestígios
de produto estupefaciente, supostamente, encontrados na residência que então
partilhava, com o seu companheiro, nem com a pistola aí encontrada.
Dos depoimentos dos supostos consumidores e/compradores de tais produtos
estupefacientes, não resultaram ter a arguida praticado o crime em causa,
porquanto nenhum deles afirmou ter adquirido droga à arguida A..
Os elementos da Guarda Nacional Republicana, inquiridos em audiência, nada
disseram quanto à prática dos crimes de tráfico de droga e detenção ilegal de
arma de defesa por parte da recorrida.
Com efeito, confirmaram terem realizado busca à casa da recorrente, uma vez que
havia suspeita de que o companheiro desta, o co-arguido B. aí escondia produto
estupefaciente, tendo sido então encontrado vestígios de tais produtos e uma
arma de fogo de calibre 6,35.
Estes depoimentos foram documentados em audiência de julgamento, nos termos do
art. 62° do CPP.
A recorrente que reclama a sua inocência, durante a audiência de julgamento
tentou provar isso mesmo, não tendo porém conseguido, acabando condenada na tão
pesada pena de prisão efectiva, de 7 anos efectiva.
Por essa razão, discordando desta condenação interpôs recurso para o Tribunal de
Relação de Évora, impugnando tanto a matéria de facto, nos termos do preceituado
no art. 412° do CPP, como a de direito.
Recusando a pronunciar-se sobre a matéria de facto impugnada, pela arguida, este
tribunal da segunda instância rejeitou o recurso interposto nesta parte,
confirmando a decisão da primeira instância quanto à matéria de direito,
mantendo a pena aplicada à arguida.
Inconformada com esta decisão interpôs, de novo, recurso para o supremo tribunal
de Justiça, alegando em síntese a violação por parte do tribunal recorrido dos
disposto nos no arts. 417º/3 do CPP e 32° de Constituição da República, ao não
ter sido dado oportunidade à recorrente, para suprir tal deficiência,
aperfeiçoando as conclusões do recurso, mediante convite para o efeito,
limitando-lhe assim, o direito à justiça, à defesa e ao recurso,
constitucionalmente consagrado.
Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ora posto em crise não consta que a
questão de inconstitucionalidade da norma do art. 412°, com a interpretação dada
pela TRE tenha sido apreciado, daí a razão do presente recurso para este
Tribunal Constitucional.
Na verdade o STJ devia ter reenviado o processo para o TRE para que fosse
apreciada a questão da matéria de facto impugnada, pela arguida, nas conclusões
do recurso interposto para aquele Tribunal, em obediência do princípio
constitucional previsto no art. 32° da CRP.
Porquanto só pela apreciação da matéria de facto impugnada permite à arguida que
desde o início invoca a sua inocência, receber uma sentença Justa.
Tanto mais que a mesma só foi presa e constituída arguida nos autos, pouco tempo
antes do início da audiência e julgamento, numa das visitas ao companheiro, o
co-arguido B., no Estabelecimento Prisional de Faro.
Daí a necessidade se apurar se as provas, além do facto de, então, era
companheira deste co-arguido, existentes e produzidas em audiência foram/são
suficientes, para sentenciar a recorrente na tão pesada pena de 7 anos de
prisão, reduzida para 5 anos e 6 meses de prisão efectiva pelo acórdão do STJ.
De facto o Tribunal da Relação de Évora, ao não apreciar a matéria de facto
impugnada, rejeitando o recurso nesta parte, com o fundamento de não ter sido
cumprido o disposto no art. 412° do CPP, violou as normas contidas nos art.
4170/3 e 32°, nºs 1 e 2 CRP.
Com feito, reza o art. 417°/3 que “se a motivação do recurso não contiver
conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as
indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o
recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no
prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não conhecido na parte
afectada”
Aliás, esta posição foi já assumida nos acórdãos (59/98 de 25 de Agosto e 43/99,
417/99 e 43/2000, publicados no DR, II série de 26 de Março de 1999 e 13 de
Março de 2000), sendo declarada com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade, por violação do art. 32°/1 da CRP, da norma constante dos
arts. 412/1 e 420/1 do CPP... .quando interpretados no sentido de a falta de
concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso,
sem que previamente seja frito convite ao recorrente para suprir tal deficiência
(acórdão nº 337/00, proc. 183/200, de 27 de Junho de 2000, Conselheiro Messias
Bento).
Entende a reclamante que a questão inconstitucionais do art. 412° na
interpretação que foi dado pela Relação de Évora, por violação do art. 32° da
CRP foi levantada junto do STJ sem que a mesma tenha sido apreciada.
Daí o modesto entendimento da reclamante de que o presente recurso deve merecer
provimento, o que se espera com a sua apreciação em conferência».
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional respondeu
afirmando que “a presente reclamação é manifestamente improcedente”, dado que
“na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso”.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
de 31 de Janeiro de 2008, que “lhe rejeita o recurso interposto para este STJ”,
dizendo, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional, que o faz “uma vez que foi violado o disposto no art.º 32.º da
Constituição da República Portuguesa”.
2 – Convidada pelo relator, no Tribunal Constitucional, a “dar cabal
cumprimento às exigências enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do art.º 75.º-A, da Lei n.º
28/82 […] e “sob a cominação estatuída no n.º 7 do mesmo artigo”, a recorrente
veio dizer que o “presente recurso é interposto nos termos da alínea b) do n.º 1
do art.º 70.º, com vista a que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade do
art.º 412.º/2 do CPP, na interpretação que lhe foi dada pelo TR de Évora, no
sentido de que a deficiente conclusão do recurso é motivo suficiente para a sua
rejeição, sem que a recorrente tenha sido convidada a aperfeiçoá-lo” e que “a
recorrente considera que a interpretação dada ao art.º 412.º do CPP viola o
princípio constitucional contido no art.º 32.º, n.º 1, da CRP, quanto ao direito
de defesa, questão esta que foi suscitada junto do STJ, na motivação do recurso
interposto junto deste Tribunal”.
3 – O recurso de constitucionalidade foi admitido pelo Supremo
Tribunal de Justiça. Esta decisão não vincula, porém, o Tribunal Constitucional,
como se estabelece no n.º 3 do art.º 76.º da LTC. E porque se configura uma
situação que se enquadra na hipótese recortada no n.º 1 do art.º 78.º-A da LTC
passa a decidir-se imediatamente.
4.1 – Como se disse, o presente recurso vem interposto ao abrigo do
disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
O objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade
aí previsto há-de traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s)
norma(s) previamente suscitada perante o Tribunal a quo e de que a decisão
recorrida haja feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento
normativo do aí decidido.
4.2 – Concretizando ainda aspectos do seu regime, cumpre, acentuar
que, sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade
constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios
constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a
decisão judicial em sim própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de
preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no
plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma
chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente
determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto
(correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos
para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de
normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da
Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub
species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais
tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação
(directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este
Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in
concreto pelo tribunal a quo.
A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a
correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade
constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao
recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade
normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II
Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por
exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de
21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94,
publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
4.3 – Por outro lado, deve referir-se, também, que decorre dos
referidos preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser
suscitada em termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, de
modo que o tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar
adequadamente a questão de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo
ficar obrigado ao seu conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a
norma sindicanda com os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só
assim se possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da
fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o
tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que
convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional,
que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de
substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de
constitucionalidade fora da via de recurso.
5 – Ora, analisando a situação sub judicio constata-se, desde logo,
que a recorrente não controverte norma que tenha constituído fundamento
normativo do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça – a ratio decidendi da
decisão deste tribunal – mas norma “na interpretação que lhe foi dada pelo TR de
Évora”.
No recurso de constitucionalidade apenas poderá controverter-se a
constitucionalidade ou ilegalidade de norma que tenha sido aplicada pelo
tribunal que proferiu a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional e não
norma que haja sido determinada e aplicada pelo outro tribunal de instância do
qual se recorreu para aquele.
Deste modo, não poderá conhecer-se do recurso de
constitucionalidade.
Mas mesmo consentindo que exista sobreposição entre a norma
determinada e aplicada pelo acórdão da Relação de Évora e o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, e que dentro dessa perspectiva poderia irrelevar-se o erro
relativo ao órgão jurisdicional que foi o autor de tal interpretação, ainda
assim não poderá conhecer-se do recurso.
Na verdade, a recorrente pretende ver apreciada a
constitucionalidade da “norma do art.º 412.º/2 do CPP […], no sentido de que a
deficiente conclusão do recurso é motivo suficiente para a sua rejeição, sem que
a recorrente tenha sido convidada a aperfeiçoá-lo”, por violação do “princípio
constitucional contido no art.º 32.º, n.º 1, da CRP”.
Todavia, decorre linearmente do acórdão recorrido que a
insuficiência que foi considerada como insusceptível de aperfeiçoamento não foi
a relativa às conclusões das alegações mas a relativa à falta de indicação dos
fundamentos na parte expositiva da motivação do recurso, tendo a decisão
recorrida constatado que a recorrente “impugnou genericamente a forma como o
tribunal de 1.ª instância apreciou a prova, alegando que determinados factos não
resultariam das provas produzidas, mas sem identificar concretamente os
depoimentos que impunham decisão diversa e sem indicar especificadamente a sua
localização nos suportes técnicos: o recorrente limita-se a aludir, no corpo da
motivação, à cassete n.º 1, lados A e B, referindo-se, nas respectivas
conclusões, apenas à cassete n.º 2, lado B” (cfr. fls. 116 e 117 do acórdão do
STJ, por remissão de fls. 155).
Por outro lado, esse entendimento normativo não foi reportado pelo
STJ ao “art.º 412.º, n.º 2, do CPP”, mas sim ao “art.º 412.º, n.º 3, als. a) e
b), e n.º 4, do CPP” (cfr. fls. 116 do acórdão do STJ), em cuja determinação do
seu sentido seguiu a doutrina constante do Acórdão do Tribunal Constitucional,
n.º 140/2004, publicado no Diário da República II Série, de 17 de Abril de 2004.
De onde resulta que a recorrente questiona constitucionalmente
norma diversa da que constituiu ratio decidendi da decisão recorrida.
Mas, independentemente do que vai dito, constata-se ainda que o
recurso não pode ser conhecido por outra razão.
É que a recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade da
norma cuja constitucionalidade agora pretende ver apreciada nas alegações de
recurso para o STJ, tendo-a antes assacado, nas conclusões das alegações para o
STJ, à actividade do tribunal e à decisão judicial recorrida (da relação) em si
própria, ao dizer aí: «pelo que o tribunal a quo ao não apreciar a matéria de
facto posta em crise pela arguida A. com o fundamento de que se não cumpriu “o
ónus imposto pelo art.º 412.º, n.ºs 3, als. a) e b), e n.º 4 do CPP, violou o
disposto no art.º 32.º da CRP».
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso e condenar a reclamante nas custas,
fixando a taxa de justiça em 7 UCs.».
B – Fundamentação
5 – A reclamante não rebate a correcção dos fundamentos em que se
abonou a decisão ora reclamada e que aqui se reiteram em face da sua bondade.
É de notar, aliás, que a reclamante persiste em convocar questão de
constitucionalidade relativa a preceito diferente daquele que constituiu ratio
decidendi do acórdão recorrido no que se refere à falta de convite de
aperfeiçoamento da motivação por parte do tribunal de recurso.
É que a decisão recorrida não reportou o vício da motivação do
recurso às suas conclusões mas à sua argumentação expositiva, ou seja, à falta
de indicação dos fundamentos do recurso na exposição discursiva das alegações.
A reclamação é, pois, de indeferir.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas custas, fixando a taxa
de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 29 de Maio de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos