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Processo n.º 128/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – A., Lda, vem reclamar, ao abrigo do disposto artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da decisão sumária
pela qual se decidiu não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade
que havia sido interposto do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA),
de 13 de Novembro de 2007.
2 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“1 – A., Lda., recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na
alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 13
de Novembro de 2007, que negou provimento ao recurso interposto do acórdão do
Tribunal Central Administrativo Sul, o qual, por seu lado, negara também
provimento ao recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal
Administrativo e Fiscal de Loulé que se declarou incompetente, em razão da
matéria, para conhecer do despacho do Director Regional do Algarve da Autoridade
de Segurança Económica e Alimentar (ASAE), de 17 de Novembro de 2006, que
ordenou a cessação imediata da exploração do estabelecimento de bar no Beco do
Repouso, em Faro, por falta de licença e infringir as normas legais no
respeitante a higiene e segurança.
2 – O recurso foi admitido pelo tribunal a quo. Todavia, esta decisão
não vincula o Tribunal Constitucional (art. 76.º, n.º 3, da LTC). E porque se
configura uma situação que se enquadra na hipótese normativa recortada no n.º 1
do art. 78.º-A da LTC, passa a decidir-se imediatamente.
3 – Na parte relevante para a compreensão da questão a decidir, o
acórdão recorrido discreteou pelo seguinte modo:
“[…]
2. Resulta do probatório que a ASAE, tendo verificado que o estabelecimento de
Bar propriedade da Recorrente se encontrava a laborar sem a correspondente
licença e que estava “fortemente indiciada a falta de condições técnicas de
segurança e de higiene, bem como outras condicionantes do exercício da
actividade em questão indiciadoras de que se encontra criado um perigo para a
vida e integridade física quer dos seus trabalhadores quer dos seus clientes”, e
tendo considerado que esta falta de licença consubstanciava “a prática de uma
infracção de natureza contra-ordenacional, de carácter permanente, prevista no
n° 1 do art. 10.º do DL n.º 168/97, de 4/07, … sancionada no n.° 1 e) do artigo
n.º 38° do mesmo Diploma Legal” e que urgia “fazer cessar de imediato essa
situação de ilicitude”, o respectivo Director Regional ordenou “a imediata
suspensão da laboração do estabelecimento supra identificado”.
Ordem esta que a Recorrente pretendeu paralisar através da propositura desta
providência onde requereu a prolação de decisão que suspendesse a sua eficácia.
Mas sem sucesso já que o TAF de Loulé, em decisão confirmada pelo Acórdão
recorrido, considerou que os actos praticados pela Entidade demandada não tinham
a natureza de actos administrativos mas de actos de ordem pública
característicos dos órgãos de polícia criminal, inseridos na sua competência
contra ordenacional, e que, sendo assim, era aos Tribunais comuns que estava
cometida a competência para decretar as medidas relacionadas com o acto aqui
questionado
Ou seja, e dito de outra forma, o Tribunal recorrido decidiu que os Tribunais
Administrativos careciam de competência para decretar a requerida providência.
A Recorrente não aceita este julgamento, por um lado, porque considera que o
acto que ordena a cessação de utilização de um estabelecimento constitui um acto
administrativo, visto ser uma decisão de um órgão da Administração proferido ao
abrigo de normas de direito público destinada a produzir efeitos jurídicos numa
situação individual e concreta, e, por outro, porque considera que “doutrina
sufragada no Acórdão significaria que todos os actos administrativos relativos a
obras ou direito de utilização deixariam ou poderiam deixar de ser da
competência dos tribunais administrativos e de estar sujeitos à lei
administrativa” e “significaria, ainda, que a aplicação do regime
contra-ordenacional ou do regime administrativo, bem como a competência dos
tribunais comuns ou dos tribunais administrativos, ficaria na inteira
disponibilidade de uma das Partes – a entidade administrativa – que qualificaria
um mesmo acto como sendo administrativo ou contra-ordenacional consoante lhe
aprouvesse”.
Ao que acrescia que o entendimento acolhido no Acórdão recorrido era
materialmente inconstitucional por violação dos princípios ínsitos nos art.s
2.°, 13.°, 20.°, 212.°, n.º 3, e 268.°, n.º 4, da Constituição.
Vejamos se litiga com razão.
3. A CRP estabelece que os “tribunais judiciais são os tribunais comuns em
matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a
outras ordens judiciais” (art. 211°/1) e que “compete aos tribunais
administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por
objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas” (art.
212.º/3).
Comentando o conteúdo desta última norma os Prof.s G. Canotilho e V. Moreira
consideram que dela se deve retirar que “a competência dos tribunais
administrativos deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais
judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns. A
letra do preceito constitucional parece não deixar margem para excepções, no
sentido de consentir que estes tribunais possam julgar outras questões, ou que
certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros
tribunais. Nesta conformidade pode dizer-se que os tribunais administrativos
passaram a ser verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa.” (CRP
Anotada, pg. 814, com sublinhado nosso).
E a lei ordinária acolheu os citados princípios constitucionais ao estabelecer
que incumbe aos “tribunais da jurisdição administrativa e fiscal … administrar a
justiça (......), nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas
e fiscais” (art. 1.º do ETAF), muito embora também prescreva que lhes compete a
apreciação de litígios que tenham por objecto “a prevenção, cessação e reparação
de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos em matéria ….
qualidade de vida quando cometidas por entidades públicas e desde que não
constituam ilícito penal ou contra ordenacional” (art. 4.º/1, al.ª l, do mesmo
diploma com sublinhado nosso).
O que quer significar que a jurisdição administrativa está vocacionada para o
conhecimento de todos os litígios emergentes de relações administrativas salvo
se os mesmos envolverem ilícito penal ou contra ordenacional pois que, neste
caso, a apreciação da sua legalidade estará cometida aos Tribunais comuns. O que
não contrariaria o disposto no art. 212.º/3 da CRP já que este, como já se
disse, não impede que os Tribunais comuns possam conhecer e decidir certas
questões relacionadas com o direito administrativo, designadamente as
resultantes da aplicação de medidas de natureza contra ordenacional por
autoridades administrativas.
E, porque assim é, o presente recurso só poderá obter provimento se for de
concluir que o acto cuja eficácia se quer ver suspensa nada tem a ver com o
ilícito contra ordenacional e, por isso, que a apreciação da sua legalidade não
pode estar cometida aos Tribunais comuns ou que, estando com ele relacionado,
não são de aplicar as normas que remetem a referida apreciação para esses
Tribunais por as mesmas serem materialmente inconstitucionais.
3. 1. No tocante à primeira hipótese acabada de equacionar a mesma tem de ser
liminarmente afastada, uma vez que sendo a ordem de encerramento do
estabelecimento da Recorrente uma sanção acessória da infracção que lhe é
imputada e sendo esta punida com uma coima – art.s 10.º/1, 38.º/1/b) e 39.º/1/c)
do DL 168/97 – ter-se-á de concluir que a mesma está intimamente conexionada com
o ilícito contravencional, pelo que o Tribunal competente para o julgamento de
uma terá de ser o competente para o julgamento da outra. E isto porque, atenta a
complementaridade da medida acessória e, por conseguinte, atenta a sua conexão e
dependência com a sanção principal será através das regras de atribuição de
competência para a impugnação e julgamento desta que se apurará a competência do
Tribunal para a impugnação e julgamento da aplicação da medida acessória. O que,
aliás, se encontra de harmonia com o que se estabelece no n.º 1 do art. 96 do
CPC onde se disciplina que o Tribunal competente para a acção é também
competente dos incidentes que nela se levantem e a sanção acessória pode, e
deve, ser vista como de carácter incidental e complementar em relação à sanção
principal.
De resto, seria totalmente incompreensível e quebraria a unidade do sistema que
competisse a um Tribunal a julgar a bondade da decisão de aplicação de uma coima
e competisse a um Tribunal de diferente jurisdição julgar a bondade da aplicação
da medida acessória que lhe correspondia.
Ora, é indiscutível que a aplicação de sanções contra ordenacionais está sediada
nos Tribunais comuns já que o art. 61.º/1 do DL 433/82 prescreve que “é
competente para conhecer do recurso o Tribunal em cuja área territorial se tiver
consumado a infracção”, sendo certo, por outro lado, que aqueles Tribunais
exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais
(art. 211°/1 da CRP). É, aliás, por isso que o art. 73.º/1 daquele diploma
estatui que da sentença se recorre para a Relação o que reforça a convicção de
são os Tribunais comuns os competentes nesta matéria. O que, de resto, a própria
Recorrente reconhece e não sindica.
E que fica dito não é abalado pela alegação da Recorrente de que a aplicação da
medida acessória constitui um acto de natureza administrativa por se tratar da
decisão de um órgão da Administração que ao abrigo de normas de direito público
visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta e, por isso,
se tratar de um verdadeiro acto administrativo praticado num processo contra
ordenacional já que, por um lado, a aplicação da coima também constitui um acto
administrativo ainda que de natureza especial e, por outro, o art. 55.º do DL
433/82 estabelece que a impugnação judicial de todos os actos praticados no
decurso processo contra-ordenacional que afectem os direitos ou interesses do
interessado, entre eles certamente a aplicação das sanções acessórias, se faz
naquele processo e, por conseguinte, perante os Tribunais comuns.
Ou seja, independentemente da ordem proferida pelo Sr. Director Regional da ASEA
constituir um acto administrativo e de a mesma ter precedido a decisão de
aplicação de uma coima e de, por isso, se configurar como uma medida preventiva
e antecipatória certo é que essa realidade não altera as regras de competência
para a apreciação da sua legalidade. E isto porque existe lei expressa a
atribuir essa competência aos Tribunais comuns.».
4 – A recorrente interpôs recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade através de requerimento em que disse pretender a apreciação
da “inconstitucionalidade da seguinte norma: da norma revelada pelos artigos 1.º
e 4.º, n.º 1, alínea l), do ETAF, artigos 10.º, n.º 1, 38.º, n.º 1, alínea b), e
39.º, n.º 1, alínea c), do DL 168/97, artigo 96.º, n.º 1, CPC, artigos 55.º,
61.º, n.º 1, e 73.º, n.º 1, do DL. 433/82, na interpretação dele feita no douto
acórdão do STA – bem como dos artigos 55.º e 61.º, n.º 1, do DL 433/82, e os
arts. 77.º, n.º 1, al. e), 95.º, al. d), da LOFTJ, na interpretação que deles
foi feita no Acórdão do TACS, que mereceu o assentimento do STA, e dos artigos
1.º, n.º 1 (interpretado na douta Sentença a contrario), 4.º, n.º 1, al. d), e
n.º 2, e 7.º do ETAF, 1.º, 20.º, n.º 6, e 112.º e ss., do CPTA, 62.º e 66.º do
CPC, e 17.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 22.º e 102.º, n.º 2, da LOFTJ, na interpretação
que deles foi feita na douta Sentença do TAFL que mereceu o assentimento do TACS
e, por essa via, do STA – por violação dos art.s 2.º, 13.º, 20.º, 212.º, n.º 3,
e 268.º, n.º 4, da Constituição”.
5 – Convidada pelo relator, no Tribunal Constitucional, nos termos do
n.º 5 do art. 75.º-A da LTC, a definir a norma constitucionalmente impugnada, a
recorrente veio dizer que “é a norma, aplicada pelo Tribunal recorrido, segundo
a qual uma ordem (que não constitui a decisão final punitiva) de suspensão de
exploração ou utilização de um estabelecimento por falta de licença constitui,
quando praticado no âmbito de um processo de contra-ordenação – matéria de
natureza contra-ordenacional, que é da competência dos tribunais comuns,
sujeita, consequentemente, ao direito procedimental e processual
contra-ordenacional (e não uma decisão de natureza reguladora administrativa
sujeita às normas de direito administrativo e processual administrativo, da
competência da Jurisdição Administrativa, conforme defendido pela ora
recorrente)”.
6.1 - O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 280º da Constituição
e na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, disposição esta que se limita a
reproduzir o comando constitucional, é a questão de inconstitucionalidade de
norma(s) de que a decisão recorrida faça efectiva aplicação.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade
que é exigido pela natureza instrumental (e incidental) do recurso de
constitucionalidade tal como o mesmo se encontra desenhado no nosso sistema
constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas
pelos vários tribunais, bem como pela natureza da própria função jurisdicional
constitucional (cfr. José Manuel M. Cardoso da Costa, A jurisdição
constitucional em Portugal, 3.ª edição revista, 2007, pp. 31 e ss., e, entre
outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6
de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no mesmo jornal oficial, de 10 de
Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de pensamento, o Acórdão n.º 155/95,
publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando
os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no
mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).
Neste domínio há que acentuar que, nos processos de fiscalização
concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou
reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou
ou devesse ter apreciado.
Por outro lado, cumpre acentuar que, sendo o objecto do recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas
que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se no
recurso de constitucionalidade a decisão judicial em sim mesma quando esta faça
aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais ou o modo como a
mesma determinou o direito infraconstitucional e o aplicou às circunstâncias
concretas do caso.
6.2 – Ora, examinando o requerimento de interposição de recurso de
constitucionalidade apresentado pela recorrente, segundo a expressão que lhe foi
dada no requerimento de resposta ao referido convite efectuado pelo relator –
sendo que a definição do objecto do recurso de constitucionalidade efectuada
pelo recorrente (a definição da concreta norma) constitui um dado que se impõe
ao Tribunal Constitucional, por resultante do princípio da autonomia e
auto-responsabilidade processual das partes –, constata-se que o que a
recorrente nele questiona é o resultado, consubstanciado no critério normativo,
que foi determinado pelo acórdão recorrido na sua actividade de interpretação do
direito infraconstitucional aplicado ao caso e não a validade constitucional
desse mesmo critério normativo.
Na verdade, no que a recorrente se apresenta, aí, a discordar é que o
tipo de acto contenciosamente impugnado constitua, quando praticado no âmbito de
um processo de contra-ordenação, “matéria de natureza contra-ordenacional,
sujeita ao direito procedimental e processual contra-ordenacional” para cujo
conhecimento são competentes os tribunais comuns – sem que se ponha
constitucionalmente em crise a norma legal de atribuição aos tribunais comuns da
competência para conhecer da matéria de natureza contra-ordenacional – e não
que, ao invés, como sustentou, decisão de natureza reguladora administrativa
sujeita às normas de direito administrativo cuja competência está atribuída à
Jurisdição Administrativa.
Na óptica da recorrente, a questão de constitucionalidade traduz-se em
que o tipo de acto contenciosamente impugnado não seja tido como acto
administrativo cuja sindicabilidade contenciosa caiba, como mero acto
administrativo, aos tribunais administrativos, e não em que sendo embora esse
tipo de acto um acto em matéria contra-ordenacional, sujeito ao direito
procedimental e processual contra-ordenacional (critério normativo este seguido
pelo acórdão recorrido), a atribuição da competência aos tribunais comuns para o
conhecimento contencioso de actos dessa natureza viole a reserva constitucional
de competência dos tribunais administrativos (cf. art. 212.º, n.º 3, da CRP).
Como se disse, não cabe na competência do Tribunal Constitucional
sindicar a correcção do juízo interpretativo relativo ao direito
infaconstitucional aplicado e do resultado a que, no mesmo plano, o tribunal a
quo chegou.
Assim sendo, não pode conhecer-se do recurso de constitucionalidade.
7 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do recurso e condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de
justiça em 8 UCs”.
3 – Por seu turno, a reclamação vem ancorada no seguinte discurso
argumentativo:
“(...)
1. O Recurso foi indeferido porque “constata-se que o que a
recorrente nele questiona é o resultado, consubstanciado no critério normativo,
que foi determinado pelo acórdão recorrido na sua actividade de interpretação do
direito infra-constitucional aplicado ao caso e não a validade constitucional
desse mesmo critério normativo”. [1]
2. A Recorrente compreende que existe, justificadamente, uma técnica
específica de elaboração do recurso de constitucionalidade, técnica que o
signatário poderá ter revelado não dominar como seria desejável. Todavia, com o
devido respeito pela decisão do Ex.mo Conselheiro Relator, cremos que a decisão
poderá merecer reapreciação.
3. A Recorrente identificou os preceitos legais que o STA referiu
expressamente estarem na base da norma aplicada, em que se baseia a sua decisão.
O STA aplicou aqueles preceitos legais, dando-lhes uma determinada
interpretação. O Recorrente discorda da interpretação, mas não foi essa
discordância que motivou o recurso para o Tribunal Constitucional. O que motivou
o recurso foi a convicção de que a interpretação adoptada – bem ou mal adoptada
– viola a Constituição.
4. Os preceitos citados no recurso foram objecto de interpretação pelo STA,
como não poderia deixar de ser. A interpretação é, ela mesma, a actividade
definidora da norma.[2]
5. Todavia, enquando o STA identificou os preceitos que aplicou, não
identificou a norma que aplicou. A Recorrente teve de tentar descobrir a norma
aplicada – expressamente referida, mas não identifcada pelo STA – a partir do
problema colocado ao STA e da solução dada pelo STA. Isto é, a Recorrente teve
de tentar descobrir o pensamento dos Ex.mos Conselheiros do STA vertido no
Acórdão.
6. Quando a norma não é explicitada a tarefa do recorrente fica dificultada.
Tal não exime o signatário de um eventual erro que tenha cometido ou de falta de
clareza. O que se supõe é que – apesar do eventual imperfeição de delineação,
pelo signatário, da norma (referida, mas não identificada) usada pelo STA – o
seu requerimento de interposição de recurso, ainda assim, exprimirá a norma
aplicada, como foi sua intenção fazer.
7. Por outras palavras, sem pôr em causa o raciocínio do Ex.mo Juiz
Conselheiro Relator, a Recorrente está em crer que o espírito da LOTC e da
jurisprudência do TC permite uma leitura mais tolerante, digamos assim, do
recurso da Recorrente, encontrando ali uma intenção de definição da norma
efectivamente aplicada e a expressão escrita (ainda que imperfeita) dessa norma.
8. Esta reclamação é, de algum modo, um apelo a uma leitura mais bondosa ou
mais tolerante do requerimento de interposição do recurso, não um desafio ao
despacho reclamado e aos argumentos – claros e fundamentados – nele constantes.
Um apelo que – julgamos – encontra eco na redacção das normas relevantes da LOTC
e na jurisprudência do TC.
Vejamos em concreto a questão que se coloca.
9. Há uma norma que estabelece que as decisões administrativas são reguladas
pelo CPA e CPTA e julgadas pelos Tribunais Administrativos.
Há outra norma que estabelece que os decisões de natureza contra-ordenacional
são reguladas pelo RJCO e julgados pelos Tribunais Comuns.
10. Todavia, há actos que têm natureza administrativa
regulatória (não punitiva) e são (bem ou mal, não interessa) praticados no
âmbito de processos de contra-ordenação. A questão que se colocou ao STA foi a
de saber qual a norma que se aplicaria a esses casos. Tomada num todo, a letra
da lei não é clara.
11. Trata-se de um problema comum. Como escreveu HLA Hart,
‘the open texture of law leaves a vast field for a creative activity which some
call legislative’,[3] pois ‘there is a limit, inherent in the nature of
language, to the guidance which general language can provide’.[4]
12. As normas típicas são compostas por uma previsão e uma
estatuição. Uma vez que o STA não definiu explicitamente a norma que aplicou (só
os preceitos legais) e uma vez que não existe preceito legal que, com um
carácter de literalidade relativa resolva a questão, o que a Recorrente fez foi
reconstruir a norma identificando o problema que o STA abordou e a solução que o
STA deu ao caso.
13. A Recorrente não quis – nem julga que o tenha feito –
questionar a constitucionalidade da decisão. O que quis fazer – e julga ter
feito – foi reconstruir a norma aplicada: a partir do problema identificaria a
previsão, a partir da solução identificaria a estatuição.
14. O douto despacho reclamado – se bem o interpretamos –
entende essencialmente que a falha esteve na identificação da estatuição da
norma, pois a Recorrente “questiona é o resultado”, não o “critério normativo”.
15. O resultado é muitas vezes coincidente com a
estatuição da norma. No caso, o STA considerou que resultava da lei (norma
aplicada) que a uma determinada categoria de casos (previsão da norma) implicava
uma determinada consequência jurídica (estatuição).
16. A consequência jurídica foi a de que aquela categoria
de casos deveria ser regulada por normas do direito contra-ordenacional (e não,
pois, por normas de natureza puramente administrativa) e que os litígios entre
decisor e particular deveriam ser conhecidos pelos Tribunais Comuns (e não,
pois, pelos Tribunais Administrativos).
17. O resultado foi que o STA considerou aplicáveis ao
caso subjudice as normas de direito contra-ordenacional e que a competência para
o litígio é dos tribunais comuns.
18. A estatuição da norma aplicada dita que uma
determinada categoria de actos deve ser regulada pelo direito
contra-ordenacional e que a competência para o litígio (relativamente aos actos
dessa categoria) compete aos tribunais comuns.
19. Assim, compreendendo-se o argumento do douto despacho
reclamado no sentido de que a Recorrente terá identificado um resultado e não
uma norma, certo é que a Recorrente procurou identificar a estatuição da norma,
não uma decisão.
20. O que o signatário pensou quando apresentou a norma
aplicada pode ser ilustrado com o exemplo seguinte. Se um Tribunal tivesse
condenado um cidadão a 41 anos de prisão por homicídio doloso – para além de uma
errada interpretação da lei penal (o que é nesta sede irrelevante) – poderia
colocar-se a questão da inconstitucionalidade da norma aplicada.
21. Ao identificar a norma aplicada, o recorrente iria
alegar que a norma segundo a qual o crime de homicídio pode ser punido com pena
até 41 anos viola uma determinada norma ou princípio constitucional. O
Recorrente estaria (inevitavelmente) a referir um resultado: o arguido foi, de
facto, punido com pena de prisão de 41 anos. Mas estaria, em rigor, a
identificar o critério normativo que determina que o crime de homicídio pode ser
punido com pena de prisão até 40 anos. E, assim, escreveria que vinha colocar
sob apreciação a constitucionalidade da norma aplicada segundo a qual o crime de
homicídio é punível com pena até 41 anos de prisão.
22. Se o Tribunal tivesse dito que o crime de homicídio é
punível com pena de prisão até 45 anos e condenasse o arguido a uma pena de 41
anos, nesse caso o recorrente tinha boa base para identificar a norma cuja
inconstitucionalidade suscitava como sendo a norma segundo a qual o crime de
homicídio é punível com pena de prisão até 45 anos. Mas se o tribunal não
identificar a estatuição da norma, o recorrente só pode presumir que o tribunal
ao aplicar o Artigo “X” do Código Penal (que refere, por ex., 30 anos) o
interpretou – definindo a norma – como estatuindo uma norma segundo a qual o
crime de homicídio é punível com pena até 41 anos. Ou que é punível com pena até
(pelo menos) 41 anos.
23. Foi isso que o signatário – bem ou mal, se calhar mais
mal do que bem – procurou fazer. O STA entendeu que era aplicável ao caso
subjudice uma norma (cuja previsão o caso subjudice integrava) cuja estatuição
determina a aplicação do direito contra-ordenacional e a competência dos
tribunais comuns.
24. O facto de haver uma coincidência entre o resultado ou
decisão do Acórdão e a estatuição da norma não impede – estamos muito
respeitosamente em crer – que estejamos perante a identificação de uma norma, de
um critério normativo.
25. De facto, há muitas normas cuja estatuição constitui
uma consequência concreta e definida, que é, na normalidade dos casos, só
objecto de interpretação linguística (de leitura, digamos assim). Por exemplo, a
norma que o estacionamento em parque para deficientes é punida com coima de “X”
Euros coincidirá necessariamente com o resultado da aplicação da norma:
condenação no pagamento de coima de, precisamente, “X” Euros.
26. Repare-se que o STA não deu qualquer outra indicação
sobre como redigir a sua norma, mas percebe-se do texto do Acórdão e – julgamos
nós – percebe-se do texto do recurso que (com base na interpretação dos
preceitos legais citados no Acórdão) o STA aplicou a norma segundo a qual aquela
categoria de casos é regulada pelo direito contra-ordenacional e os litígios são
da competência dos tribunais comuns.
27. O que a Recorrente julga é que tal norma é
inconstitucional. A Recorrente entende que regular aquela categoria de actos por
normas (processuais) contra-ordenacionais viola a Constituição, designadamente
porque o regime processual contra-ordenacional não oferece as garantias de
defesa contra actos administrativos que a Constituição impõe.[5]
28. A previsão da norma também não é identificada pelo
STA. Mas sabemos que se trata de uma norma que se aplica a uma categoria de
actos em que o acto recorrido se inclui. O que é que sabemos do acto recorrido?
29. Sabemos que o acto recorrido é um acto que determina o
encerramento ou suspensão de utilização de um estabelecimento de restauração por
(alegada) falta de licença.
O que é que sabemos mais?
30. Sabemos que se trata do primeiro acto do processo. Ou
seja, sabemos que não se trata de uma decisão tomada no final do processo, após
a instrução, direito de defesa, etc.. Por outras palavras, sabemos que não se
trata de uma decisão condenatória. É uma medida preventiva (se se aplicar o CPA)
ou uma medida de coacção (se se aplicar o CPP, por eventual remisão do RJCO).
31. O STA entendeu que dos preceitos legais expressamente
citados no Acórdão resultava a norma (não explicitada) segundo a qual esta
categoria de actos é regulada pelo direito (processual) contra-ordenacional e da
competência dos Tribunais Comuns.
32. A Recorrente entende que a norma aplicada, segundo a
qual esta categoria de actos – actos (praticados antes da instrução e da defesa,
e que não constituem ainda decisão condenatória) que determinam o encerramento
ou suspensão de utilização de estabelecimentos de restauração por falta de
licença – é regulada pelo direito (processual) contra-ordenacional é
inconstitucional por violar garantias de defesa dos administrados que resultam
de normas constitucionais.
33. Que existe uma norma que foi aplicada não resultam
dúvidas: o Acórdão do STA di-lo expressamente, citando os preceitos legais que
são fonte da norma (os preceitos legais não poderiam ser fonte da decisão)
Depois, aplicou a norma ao caso de onde resultou a implementação, no caso
concreto, da estatuição jurídica da norma aplicada.
34. É da inconstitucionalidade dessa norma que a
Recorrente recorreu para esse Alto Tribunal. Da inconstitucionalidade da norma,
aplicada pelo STA, com base nos preceitos legais municiosamente analisados no
Acórdão recorrido.
35. Além do mais, a Recorrente – tal como o STA – julga
que a questão é de relevância fundamental para a ordem jurídica.[6]
Assim, com todo o – sincero – respeito que nos merece o douto despacho
reclamado, vimos solicitar a reapreciação da decisão reclamada, defendendo que o
recurso, não só identifica, como procura identificar a norma aplicada pelo STA
que constituiu o critério normativo cuja valoração esteve na base da decisão do
Acórdão. É desta norma e deste critério normativo que se recorre.
Para o efeito, apela-se à atenção desse Alto Tribunal que a técnica necessária
para o recurso de constitucionalidade é (justificadamente) exigente e que o STA
não identificou a norma aplicada (identificou os preceitos legais, aludiu à
norma, mas não a identificou), factos que poderão justificar uma leitura menos
literal do recurso e, digamos assim, mais tolerante para com as suas
imperfeições.
Cumpre agora decidir.
B – Fundamentação
4 – Como é consabido, não são, entre nós, admissíveis os recursos de
constitucionalidade que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso
de amparo espanhol, se traduzam na sindicância de momentos decisórios traduzidos
na concreta aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais.
Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do
julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo, havendo que distinguir,
para efeitos de definição do objecto do recurso de constitucionalidade, as
situações em que se controverte a concreta decisão, considerada como resultado
de um momento de aplicação dos preceitos legais – a isso se reconduzindo as
situações em que “embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade
de certo preceito legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida – o que
realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo
julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso sub judicio (…);
[designadamente] a adequação e correcção do juízo de valoração das provas e
fixação da matéria de facto provada na sentença (...) ou a estrita qualificação
jurídica dos factos relevantes para a aplicação do direito […];” (cf. CARLOS
LOPES DO REGO, «O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de
constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, 3, p. 8) –, daquelas em que
está essencialmente em causa o momento normativo da concreta realização do
direito, traçado pela determinação do critério jurídico à luz do qual deve ser
valorado o problema, escapando ao controlo do Tribunal a qualificação e a
valoração da matéria de facto que com aquele momento converge no juízo
decisório.
Nestes termos, considerar se está em causa a constitucionalidade de um critério
normativo ou a correcção do juízo decisório na qualificação fáctico-jurídica que
o possibilitou não será, de certo, um problema que se resolva pela estrita
consideração da semântica que o enuncia, outrossim, e principaliter, pelo tipo
de controlo que o Tribunal Constitucional é chamado a realizar, conhecendo das
questões que contendam, num plano intensivo-vertical, com a validade do critério
normativo aplicado, e, por falta de legitimidade, não tomando conhecimento das
que se refiram, num plano extensivo-horizontal, à correcção do juízo aplicativo
na recondução de uma questão de facto à norma tida por aplicável em face da
determinada relevância jurídica do caso.
Ora, no caso dos autos, isolando o referido momento normativo, constata-se que o
critério normativo que presidiu ao confronto com a relevância jurídica do caso,
redundou na atribuição de competência aos tribunais comuns para o conhecimento
da matéria de natureza contra-ordenacional.
Contudo, como se disse, a recorrente não se encontra a sindicar esse critério,
mas antes o juízo de valoração do tribunal que, por consideração da realidade
judicanda, a qualificou incluída sob alçada dessa norma.
Por outras palavras, indo ao encontro da terminologia expositiva constante da
reclamação, pode dizer-se que no caso dos autos não está em causa a delimitação
da hipótese normativa ou sequer estatuição que o legislador lhe fez corresponder
(“a competência para o conhecimento de matéria de natureza contra-ordenacional é
dos tribunais comuns”), mas o concreto juízo que qualificou e valorou o pedaço
de realidade em causa subordinando-o a esse regime normativo, não podendo
imputar-se ao julgado recorrido qualquer omissão ao nível da explicitação da
norma que constituiu a sua ratio decidendi.
C – Decisão
5 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.
Lisboa, 13 de Maio de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Note-se que o douto despacho refere que a Recorrente entende haver violação
do art. 212.º, n.º 3, da Constituição. Não é esse o argumento da Recorrente: a
Recorrente entende haver violação dos artigos. 2.º, 13.º, 20.º, 212.º, n.º 3, e
268.º, n.º 4, da Constituição, ou seja, entende, no essencial, que a norma
aplicada viola as garantias de defesa e de tutela jurisdicional efectiva
garantidas pela Constituição para administrados. Não se trata tanto de uma
questão de repartição de competência, mas de garantias processuais (fosse qual
fosse o tribunal competente). Esta questão seria mais fundamentadamente
explicitada nas alegações de recurso.
[2] Que tem como fonte os preceitos citados no Acórdão, o sistema jurídico,
decisões judiciais, princípios e tradições de interpretação da lei, etc.
[3] HLA Hart, The Concept of Law, 1994, OUP, Oxford, Second Edition, p. 204.
[4] HLA Hart, The Concept of Law, p. 126.
[5] Garantias essas que, por sinal, as normas de direito processual e
procedimental administrativo oferecem. Foi esse o motivo por que, na batalha
pré-constitucional, a Recorrente se bateu pela aplicabilidade do CPA e do CPTA:
porque estes ofereciam as garantias de defesa e de tutela jurisdicional efectiva
que a Constituição pretende garantir aos administrados, designadamente (mas não
só) a existência de um processo urgente com a estrutura das providências
cautelares. Uma vez aplicada a norma aqui recorrida, a Recorrente direccionou
exclusivamente a sua discordância para o plano constitucional: a norma aplicada
– defende-se – desrespeita a Constituição (independentemente do facto de haver
um outro regime legal que não violaria a Constituição).
[6] Na verdade, a Recorrente está em crer que na base do erro do STA está o
facto de este Alto Tribunal não ter notado que, enquando a regulação das
situações jurídico-criminais são exaustivamente reguladas no Código Processo
Penal, o mesmo não sucede com as situações administrativo-contra-ordenacionais.
Para estas últimas existe todo um “ramo” de direito, o direito administrativo,
que regula as situações jurídicas administrativas, reduzindo o processo
contra-ordenacional a um direito essencialmente punitivo. O Direito Penal e
Processual Penal é punitivo, é preventivo e regula as relações das pessoas.
Isto, contudo, não releva directamente para este recurso.