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Processo n.º 121/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. O Exmo. Representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial de
Torres Vedras interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, da
decisão que recusou a aplicação do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal
(na redacção conferida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto), com fundamento na sua
inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 27.º, n.º 2, 29.º, n.ºs
1, 3 e 5 e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
A decisão recorrida decidiu, em suma, que:
“Não designo data para reabertura da audiência por ser meu entendimento que o
disposto no art° 371°-A do Código do Processo Penal viola o disposto nos art°s
27° n° 2, 29° n° 1, 3 e 5 e 32° n° 2 da Constituição da República.
Na verdade, o preceito determina que o Tribunal se debruce sobre uma situação
fáctica que foi objecto de decisão já proferida e transitada em julgado quando a
mesma já se encontra sedimentada no universo jurídico e os factos não foram
objectos de descriminalização.
Trata-se, pois, de uma situação de revisão da pena ao arrepio dos preceitos
constitucionais que dispõem claramente que não podem ser aplicadas penas que não
estejam previstas em leis penais anteriores.
O instituto do caso julgado encontra fundamento num postulado axiológico, qual
seja o da justiça da decisão do caso concreto, para além de outros, com destaque
para a garantia da segurança e da paz jurídicas. Pretender, como se pretende com
o preceito, aplicar uma lei a uma situação fáctica que ocorreu antes da mesma
ter entrado em vigor e quando o processo se encerrou será violador da paz
jurídica e das garantias de segurança que o Estado tem de proporcionar ao seu
cidadão até porque os pressupostos de ambas as leis em presença poderão ser
diferentes.
Ora, é pacificamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência do nosso mais
Alto Tribunal, que a suspensão da execução da pena é uma pena de substituição
(Figueiredo Dias - Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do
Crime, pág. 344) e não uma mera forma de execução da pena.
Ora, se assim é, o que se pede ao Tribunal é que, verificados os pressupostos do
preceito (art° 371°-A do Código do Processo Penal) se julgue outra vez o mesmo
pedaço de vida, se necessário produzindo parte da prova (pelo menos a relativa à
personalidade do arguido) e se decida de novo, em violação da CRP.
Termos em que se recusa a aplicação ao caso concreto do referenciado preceito do
Código do Processo Penal por desconforme à Constituição.”
Notificado para alegar, veio o Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal
concluir o seguinte:
“1. O princípio da aplicação retroactiva do regime penal de conteúdo mais
favorável, no caso de sucessão de leis penais no tempo, consagra valores
constitucionais superiores aos que são garantidos pelo princípio da igualdade do
caso julgado, que deverá ceder perante aquele.
2. Não sendo inconstitucional a norma do artigo 371.º-A do Código de Processo
Penal, cuja aplicação foi recusada, deverá proceder o presente recurso, não se
confirmando o juízo da desconformidade à Lei Fundamental da decisão recorrida.”
O recorrido não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A) Delimitação do objecto do recurso.
Da análise da fundamentação da decisão recorrida resulta que a única questão
normativa que foi apreciada pelo tribunal a quo foi, justamente a que consiste
em verificar a constitucionalidade de norma que determina a reabertura de
audiência para aplicação de um novo regime penal, quando este passa a permitir a
suspensão da execução de pena de prisão no caso de crimes com pena concretamente
aplicada não superior a cinco anos, quando anteriormente apenas era permitida a
suspensão da execução da pena quanto a crimes punidos com pena concretamente
aplicada não superior a três anos.
No caso em apreço nos autos recorridos, apenas foi requerida a reabertura da
audiência de julgamento com o propósito de avaliar a possibilidade de aplicação
do regime da suspensão da execução da pena de prisão aplicada, nos termos do
disposto no artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal e não com qualquer outro
fundamento. Assim, a decisão recorrida só desaplicou efectivamente o artigo
371.º-A do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de permitir a
reabertura da audiência para aplicação de um novo regime de suspensão da
execução da pena privativa de liberdade que abrange não só as penas
concretamente não inferiores a três anos, como ainda, por força da lei nova, as
não inferiores a cinco anos.
Assim, este Tribunal passará apenas a aferir a interpretação normativa acolhida
nos autos, segundo a qual o artigo 371.º-A do Código de Processo Penal seria
inconstitucional, por ofensa à força do caso julgado, quando interpretado no
sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal
que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar para efeitos de
suspensão de execução de pena privativa de liberdade, pois foi esta a
interpretação normativa aplicada ao caso concreto ora em apreço e que constitui
a respectiva ratio decidendi.
B) A questão de constitucionalidade do artigo 371.º-A do Código de Processo
Penal
Em 23 de Setembro de 2005, A., viu ser-lhe aplicada a medida de prisão
preventiva pelo Tribunal Judicial de Torres Vedras.
A 27 de Janeiro de 2004, e por acórdão proferido pelo mesmo Tribunal, tinha sido
condenado, como autor material de dois crimes de roubo previsto e punido pelo
artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal na pena, por cada um, de 20 meses de prisão,
e como co-autor material de um crime de roubo agravado previsto e punido pelo
artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204.º, n.º 2,
alínea f), todos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão. Em cúmulo
jurídico, e nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, foi condenado na pena
única de 4 anos de prisão.
À data da decisão condenatória, vigorava a seguinte redacção do artigo 50.º, do
Código Penal:
Artigo 50º
(Pressupostos e duração)
1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não
superior a 3 anos, se atendendo à personalidade do agente, às condições da sua
vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste,
concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma
adequada as finalidades da punição.
2 – O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades
da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos
artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de
conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 – Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos
cumulativamente.
4 – A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e as
suas condições.
5 – O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em
julgado da decisão. (sublinhado nosso)
Durante a execução da pena privativa de liberdade, entrou em vigor a Lei n.º
59/2007, de 4 de Setembro, que introduziu a seguinte redacção ao referido artigo
50.º:
Artigo 50º
(Pressupostos e duração)
1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não
superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da
sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste,
concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma
mais adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 – (…)
3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 – (…)
5 – O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na
sentença, mas nunca inferior a um ano, contado do trânsito em julgado da
decisão. (com sublinhado nosso)
Por força da mesma Lei n.º 59/2007, foi profundamente alterado o n.º 4 do artigo
2.º, do Código Penal, que passou a determinar que:
Artigo 2º
(Aplicação no tempo)
(…)
4 - Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível
forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o
regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente; se tiver havido
condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos
penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo
da pena prevista na lei posterior
Consequentemente, o legislador viria ainda a aditar um novo artigo 371º-A ao
Código de Processo Penal, através da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que
estabelece o seguinte:
Artigo 371º-A
(Abertura da audiência para aplicação retroactiva
da lei penal mais favorável)
Se, após trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução
da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a
reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.
É, pois, este preceito legal, quando interpretado no sentido de permitir a
reabertura de audiência para que seja aplicado o novo regime de suspensão da
execução de pena, que passou a abranger os condenados a pena privativa de
liberdade não superior a cinco anos de prisão, que foi desaplicado pela decisão
recorrida, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio do
caso julgado penal.
Este Tribunal, no recente Acórdão n.º 164/2008 (publicado no Diário da
República, II Série, de 10 de Abril de 2008) teve já a oportunidade de proceder
a uma ponderação sobre a “génese e fundamento do mecanismo de reabertura de
audiência, previsto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal”, tendo
decidido não ocorrer a inconstitucionalidade suscitada, acórdão esse que já
originou a prolação, no mesmo sentido, da Decisão Sumária n.º 138/2008.
Verifica-se, na situação em apreço, e como se disse aliás na decisão sumária
acabada de identificar, que o despacho recorrido faz decorrer a
inconstitucionalidade “da desconformidade da reabertura da audiência com
preceitos constitucionais diversos daqueles que tinham motivado a recusa de
aplicação da mesma norma no caso examinado no acórdão n.º 164/2008. Todavia, a
convocação dessas outras normas constitucionais (artigos n.º 27.º, n.º 2, 29.º,
n.ºs 1, 3 e 5 e 32.º, n.º 2 da CRP) é manifestamente infundada. Qualquer delas
tem um exclusivo conteúdo de protecção ou garantia do arguido, não podendo
considerar-se violada por uma norma que se destina, precisa e exclusivamente, a
realizar no máximo grau (i.e. sobrepondo-se ao caso julgado) o princípio da
aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido,
consagrado no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição”
III – Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao
recurso, determinando-se a reforma de decisão recorrida, em conformidade com o
presente juízo sobre a questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Maio de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes (com declaração de voto que se anexa)
Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão de conceder provimento ao recurso, entendendo que a norma em
apreciação não viola os artigos 27º, nº 2, 29º, nºs 1, 3 e 5, e 32º, nº 2, da
Constituição da República Portuguesa, sem prejuízo de ulterior ponderação quanto
à conformidade constitucional de tal norma à luz dos parâmetros convocados no
Acórdão nº 164/2008.
Considerando que os artigos 29º, nº 4, parte final, e 282º, nº 3, parte final,
da Constituição ressalvam apenas leis descriminalizadoras (e equiparadas) e
aceitando a protecção constitucional de uma dimensão objectiva do caso julgado
penal (artigos 2º, 111º, nº 1, 205º, nº 2, e 282º, nº 3, primeira parte, da
Constituição), é para mim duvidoso que o artigo 371º-A do Código de Processo
Penal não desrespeite o princípio da proporcionalidade (artigo 2º da
Constituição). Duvido que a restrição ao princípio da salvaguarda do caso
julgado penal seja necessária para dar cumprimento ao princípio
jurídico-constitucional da necessidade da privação da liberdade (artigos 27º, nº
1, e 18º, nº 2, da Constituição), atendendo ao que se dispõe na parte final do
nº 4 do artigo 2º do Código Penal e, fundamentalmente, no caso, à previsão de
incidentes de execução da pena de prisão (artigos 61º e 62º do Código Penal), na
medida em que permitem um juízo actualizado sobre as exigências preventivas a
satisfazer.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto a presente decisão sem prejuízo das dúvidas, que mantenho, sobre a
conformidade constitucional da norma do artigo 371º-A do Código de Processo
Penal, quando entendida no sentido de, em caso de não descriminalização do
facto, a reabertura da audiência visar permitir uma (nova) discussão sobre os
elementos constitutivos da infracção, a sua imputação ao arguido, o grau de
culpa do agente, ou a verificação dos demais pressupostos em que assentou a
anterior decisão condenatória.
Carlos Pamplona de Oliveira