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Processo n.º 159/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da
decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer do recurso de
constitucionalidade interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
2 – Fundamentando a reclamação, a reclamante argumenta do seguinte
jeito:
«I – INTRODUÇÃO
1. A Requerida, ora Reclamantes, interpôs recurso para este Tribunal da
decisão final proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito dos autos de
recurso nº 4850/07, que correu os seus termos na 3ª Secção.
2. No dia 4 de Março de 2008 foi proferida decisão sumária de rejeição
do recurso interposto pelos recorrentes, nos termos e para os efeitos constantes
do no art. 78º-A, nº 1 da L.T.C..
3. Essa decisão sumária entendeu, em suma, o seguinte:
“(...) a recorrente não suscitou durante o processo qualquer questão de
constitucionalidade normativa, tendo apenas controvertido a decisão judicial qua
tale, enquanto momento de aplicação do direito a uma dada factualidade, razão
pela qual não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do
recurso.
(...)
Por isso conclui-se que, contrariamente ao alegado, a recorrente não suscitou
junto do tribunal recorrido qualquer questão de (in)constitucionalidade
normativa, nem podia a recorrente considerar-se dispensada de o fazer à luz das
incidências constantes dos autos que afastam, quanto à matéria em causa, a
possibilidade de se poder configurar o Acórdão recorrido como uma “decisão
surpresa”
Além do exposto, diga-se ainda que os preceitos do direito positivo à luz dos
quais se definiu a questão de “constitucionalidade” acabam inclusivamente por
não tocar na ratio decidendi que esteve subjacente ao juízo posto em crise e que
se colhe da norma que permitiu ao tribunal indeferir um requerimento de produção
de prova na consideração de que a mesma não se afigura útil ou necessária “à
descoberta da e à boa decisão da causa” – cf. Despacho de fls. 253 v. e artigo
340º do Código de Processo Penal.”
4. Atenta a fundamentação da decisão sumária, a qual contra todas as
legítimas expectativas da ora Reclamante, decidiu não conhecer do objecto do
recurso, e por não se conformarem manifestamente com o teor de tal decisão,
apresentam os recorrentes a seguinte reclamação:
II – DA RECLAMAÇÃO
5. A decisão sumária proferida nos presentes autos e ora em apreço, na
parte relevante para a apreciação da presente reclamação, cuja parte decisória
se cinge aos consagrado de fls. 24 a 27, avança, em 1º lugar, que a Recorrente
não suscitaram a questão “durante o processo”.
6. Com todo o respeito, não é correcta tal asserção, porquanto a
Recorrente logo que confrontada com a interpretação que reputa de
inconstitucional arguiu tal vício.
7. Concretamente, fizeram-no logo no recurso interposto para o Supremo
Tribunal de Justiça uma vez que a Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, – Lei do
Mandado de Detenção Europeu – apenas admite recurso da decisão final.
8. E fizeram-no de modo a que o tribunal se pudesse pronunciar sobre a
inconstitucionalidade de tal interpretação, embora a decisão recorrida se tenha
limitado a acolher na íntegra a tese exposta na decisão do Tribunal da Relação
de Lisboa, escusando-se a dilucidar a questão da interpretação normativa que lhe
foi concretamente colocada pela Recorrente.
9. Optando por referir somente que “a prova pretendida (dos factos
integradores da causa de recusa facultativa invocada), como se viu, era de todo
inoperante e irrelevante, atendendo à solução do art. 7º, nº 2 do Código Penal.”
10. Deixando inclusivamente de se pronunciar relativamente uma outra
questão de constitucionalidade que a Recorrente havia levantado no seu
requerimento de interposição de recurso que era a de saber se assistia ou não à
Requerida o direito a ser ouvida após a junção aos autos do original do MDE em
obediência ao nº1 do art. 32º da CRP.
11. Considerou a Recorrente que o Tribunal da Relação de Lisboa havia
levado a cabo uma interpretação inconstitucional das normas constantes nos nºs
1, 2 e 3 do art. 21º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, conjugadas com a alínea h)
do nº 1 do art. 12º da mesma lei não apenas por ter negado a produção de prova
da causa de recusa invocada mas também por ter lhe negado o direito a ser ouvida
pessoalmente após a junção aos autos do original do MDE.
12. Ou seja, a Recorrente colocou perante o Supremo Tribunal de Justiça
duas concretas questões de constitucionalidade normativa, fundamentando a sua
arguição com a violação do art. 32º, nº 1 da Lei Fundamental.
13. Não obstante, confrontada com o acórdão, mais uma vez a Recorrente, em
sede de aclaração, chamaram a atenção do Tribunal recorrido para a
essencialidade de ser proferida uma decisão que cabalmente esclarecesse qual a
interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça adoptava, pretendendo evitar que
o citado Tribunal se escudasse em considerações acerca da matéria de facto
furtando-se a responder às questões de constitucionalidade que concretamente lhe
foram colocadas.
14. Inclusivamente a Recorrente sublinhou a essencialidade de tal
esclarecimento face aos requisitos de recorribilidade impostos pela Lei Orgânica
do Tribunal Constitucional.
15. O Supremo Tribunal de Justiça, apesar de indeferir o requerimento
aclaratório, elaborou resposta que ocupa 8 páginas, mas na qual, novamente, se
furta a concretamente responder à interpelação da Recorrente quanto às arguidas
interpretações inconstitucionais das normas constantes nos nºs 1, 2 e 3 do art.
21º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, conjugadas com a alínea h) do nº 1 do art.
12º da mesma lei.
16. O que é facto é que os Recorrentes criaram todas as condições para que
o Tribunal se pronunciasse sobre a inconstitucionalidade da interpretação que
fez vencimento.
17. E fizeram-no de forma a que o Tribunal pudesse apreciar as questões
que, posteriormente, motivaram a interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional.
18. Ora, suscitar uma inconstitucionalidade “durante o processo” não pode
implicar que as partes que a suscitam tenham de, imediatamente, interpor o
recurso e alegar, com todo o formalismo e desenvolvimento, como se, no Tribunal
Constitucional, o processo já se encontrasse.
19. Não é exigível às partes tal comportamento.
20. Mas tão só colocar a questão à entidade decisória, de forma a prevenir
a inconstitucionalidade na interpretação das normas.
21. No presente caso, os Recorrentes fizeram-no e o Tribunal recorrido,
não só não apreciou tal questão, porque não quis, pois tinha todos os elementos
e fundamentos para não proferir tal decisão, essa sim “contra legem”.
22. Por outro lado, não é verdade que os Recorrentes não invoquem questões
de inconstitucionalidade normativa, e que apenas acusem a decisão de que
recorrem de inconstitucional.
23. É a interpretação (e só a interpretação) das normas que fundamentam a
decisão que está em causa.
24. Pelo que a Recorrente não concorda ainda com a decisão sumária ao
concluir que “a recorrente não suscitou durante o processo qualquer questão de
constitucionalidade normativa, tendo apenas controvertido a decisão judicial qua
tale, enquanto momento de aplicação do direito a uma dada factualidade”
25. Pois o que resulta dos autos é precisamente que a Recorrente suscitou
e enquadrou devidamente a questão de constitucionalidade normativa que pretendia
ver apreciada.
26. Mas que, naturalmente, tinha reflexo directo e necessário na
“aplicação do direito a dada factualidade” pois, de outro modo, sempre seria
inútil a sua arguição.
27. De facto, a Recorrente expressamente deixou consignadas quais as
normas legais que o tribunal interpretava de forma não consentânea com os
ditames constitucionais.
28. Na verdade, o Tribunal recorrido é que se recusou a apreciar as
questões de constitucionalidade que lhe foram colocadas de uma perspectiva
normativa.
29. Pelo que não pode a Recorrente conformar-se com a afirmação de
que “apenas provocou uma sindicância do juízo aplicativo (...) sem questionar o
critério interpretativo, que, a montante desse juízo, o justifica
normativamente.”
30. Na verdade, a Recorrente entende que as interpretações
inconstitucionais por si arguidas foram suscitadas de acordo com a Lei Orgânica
do Tribunal Constitucional e gostaria de ter a oportunidade de explicar em sede
de alegações os princípios constitucionais violados, visto ser esta a sede
própria para o fazer após o recurso ser admitido.
Nestes termos, vem a Recorrente requerer a V. Ex.as seja o teor da presente
reclamação atendido e a decisão sumária proferida revogada, concluindo-se, a
final, pela admissibilidade e consequente conhecimento do recurso interposto.»
3 – Pronunciando-se sobre a reclamação o Procurador-Geral Adjunto,
no Tribunal Constitucional, respondeu dizendo:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Efectivamente, a argumentação da reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, relativamente à inverificação dos pressupostos do recurso
interposto, como decorrência de não ter sido questionado, em termos
processualmente adequados, qualquer critério normativo, extraído dos preceitos
legais arrolados pela recorrente – e por ela claramente enunciado.».
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual (LTC), mediante
requerimento no qual deixa consignadas as seguintes indicações:
“(...)
A Recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade das normas conjugadas
dos nºs 1, 2 e 3 do art. 21º, e da alínea h) do nº 1 do art. 12º da Lei nº
65/2003 de 23 de Agosto, por ir contra o salvaguardado pelo nº 1 do art. 32º da
C.R.P. — nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do
Tribunal Constitucional —, na interpretação que lhes é dada pelo Tribunal a quo.
No caso em apreço, admitiu o Acórdão final proferido pelo STJ, que
se procedesse à entrega da ora requerente às autoridades alemãs sem que lhe
fosse admitida a requerida possibilidade de ser ouvida quanto aos factos
constantes do original do MDE, que não se encontrava junto aos autos à data da
sua detenção e audição nos termos e para os efeitos do art.18° da Lei nº
65/2003, de 23 de Agosto, e sem que fosse admitida a produção de prova requerida
e apresentada em audiência pela requerida nos termos do disposto nos nºs 1, 2 e
3 do art. 21º da mesma Lei.
Durante o processo, especificamente, nas motivações de recurso do
acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e, posteriormente, por via
do requerimento de aclaração da decisão perante o STJ, a recorrente suscitou a
supra mencionada interpretação inconstitucional.
De facto, a requerida opôs-se à sua entrega com base na causa de
recusa facultativa constante da alínea h) do nº1 do art.12º da aludida lei.
Nesta sequência a defesa requereu, tendo-lhe sido concedido, prazo
para a apresentar prova dos factos integradores da causa de recusa invocada —
prática no todo ou em parte dos factos imputados no território português.
Reaberta a audiência a defesa apresentou a prova que reputou
essencial à prova da verificação de uma causa recusa de facultativa de entrega e
explicitou que concretos factos integradores dessa mesma causa de recusa
facultativa se pretendiam provar por via da prova apresentada.
Estranhamente o Tribunal da Relação de Lisboa, ao arrepio da sua
posição inicial, nos termos da qual reconheceu a pertinência de tal prova, negou
a produção de prova por parte da requerida, por a considerar irrelevante.
Proferindo acórdão que determinava a entrega da requerida às
autoridades alemãs.
Desse acórdão a requerida interpôs recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça tendo-lhe sido concedido provimento e, consequentemente,
determinando-se que fosse junto aos autos o original do MDE por a inserção no
SIS que deles unicamente constava não obedecer aos requisitos prescritos pela
alínea e) do nº 1 do art. 3º da supra citada lei.
Tendo sido finalmente junto aos autos o original do MDE donde
constavam “a descrição das circunstâncias em que a infracção foi cometida,
incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infracção da pessoa
procurada” (alínea e) do nº 1 do art.3º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto) a
recorrente requereu, face aos novos e importantes elementos carreados aos autos
relativamente aos quais ainda não tinha sido ouvida, que fosse designada data
para sua inquirição.
Na verdade, apenas após a junção do original do MDE é que ficou
delimitado o objecto dos autos, como expressamente decorre do acórdão do STJ que
considerou insuficiente a inserção SIS, pelo que se impunha que à Recorrente
fosse conferido o direito de audição e defesa face aos novos factos plasmados no
processo (cfr. arts.18º e 21º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto).
Pois se numa primeira fase, a recorrente foi ouvida e confrontada
com os factos constantes do relatório do SIS — sobejamente imprecisos,
insuficientes e até não coincidentes com a informação do MDE, face à junção aos
autos do original do MDE a Recorrente detinha o mais elementar direito de se
pronunciar relativamente aos esses novos e decisivos elementos.
Por via do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a
recorrente viu liminarmente recusada a sua audição, sem apelo nem agravo, por se
considerar que “ (...) qualquer declaração da arguida nesta matéria no âmbito
deste processo seria repisar do mesmo e pura perda de tempo.” (!)
Tendo ainda sido negada a produção de prova requerida afirmando-se
que não cabe ao Tribunal Português “qualquer processo de averiguação formal
nessa parte”.
A Recorrente invocou perante o STJ a inconstitucionalidade de tal
entendimento por considerar que a decisão recorrida havia violado as normas
constantes dos nºs 1, 2 e 3 do art.°21° da Lei 65/2003, de 23 de Agosto,
conjugadas com a alínea h) do n°1 do art. 12° da mesma lei na medida em que
estas estabelecem o direito do arguido ser ouvido relativamente aos factos pelos
quais é solicitada a sua entrega e de apresentar prova da verificação da causa
de recusa de execução do MDE que invocou.
E ao ter sido negado à arguida o exercício desse direito, resultante
das disposições conjugadas dos nºs 1, 2 e 3 do art.°21° da Lei 65/2003, de 23 de
Agosto, o Tribunal coarctou intoleravelmente o seu direito à defesa
constitucionalmente consagrado no nº 1 do art. 32° da CRP.
Procedendo a uma interpretação inconstitucional das normas
conjugadas dos nºs 1,2 e 3 do art. 21° e da alínea h) do nº 1 do art. 12° da Lei
65/2003, de 23 de Agosto.
Apreciando a invocada inconstitucionalidade da interpretação dos
preceitos aludidos o Tribunal “a quo” defendeu que a constitucionalidade da
interpretação levada a cabo pelo Tribunal da Relação de Lisboa alegando que “a
prova pretendida (dos factos integradores da causa de recusa facultativa
invocada), como se viu, era de todo inoperante e irrelevante, atendendo à
solução do art. 7º, nº 2 do Código Penal.”
Ora, considera a Recorrente que tal interpretação das normas
constantes dos nºs 1, 2 e 3 do art. 21° da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, violam
o direito basilar de que ao arguido são asseguradas “todas as garantias de
defesa” — art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Pelo que tais normativos, quando interpretados no sentido acolhido no Acórdão
recorrido violam o disposto no art. 32º, nº 1 da Constituição da República
Portuguesa, donde resulta a inconstitucionalidade de tal interpretação.
(...)”.
2 – Tal como se relatou no Supremo Tribunal de Justiça, o caso sub
judicio apresenta os seguintes contornos:
“A cidadã A., viúva, nascida em 29-12-1946, filha de B. e de C.,
natural de Dachau, Alemanha, com dupla nacionalidade - alemã e portuguesa – esta
desde que casou, em 1965, portadora do BI nº ……, emitido em Lisboa, em ..-..-…,
residente na Rua …, Vivenda …, G…, S. João do Estoril, Cascais, foi detida em
13-10-2006, por contra ela existir um Mandado de Detenção Europeu, inserido no
Sistema Schengen, com o nº DP061880016115, proveniente das autoridades judiciais
alemãs (Tribunal Local de Berlim - processo nº 349 GS 1798/06), por cometimento
de fraude, na forma tentada, no valor de 304.218, 68 euros.
Procedeu-se à audição da detida no mesmo dia, na presença de Mandatário e de
Intérprete, tendo-se a mesma oposto à execução do mandado e declarado não
renunciar ao princípio da especialidade, invocando como fundamento de oposição o
motivo de recusa facultativa previsto no artigo 12º, nº 1, alínea h) da Lei
65/03, alegando que parte dos factos poderiam ter sido praticados em território
português, que a dívida remontaria a 1992, estando em causa uma declaração que
poderia ter sido emitida e assinada em Portugal, requerendo a concessão de um
prazo de 10 dias para dedução de oposição e apresentação de provas.
Foi proferido despacho a deferir o pedido de apresentação de provas até dia 20
seguinte.
No que respeita a medida de coacção foi determinado que a procurada aguardasse a
decisão sobre a execução do MDE em liberdade provisória, com sujeição à
obrigação de apresentação diária à entidade policial na área da sua residência e
à proibição de se ausentar sem autorização do Tribunal para fora da área do
distrito de residência e do local de trabalho, bem como da proibição de se
ausentar para o estrangeiro, devendo prestar TIR nos termos do artigo 196º do
CPP.
Mais se determinou a requisição ao Tribunal Alemão, com muita urgência, de
informação mais pormenorizada sobre o tipo de factos imputados, o território da
sua prática, se havia indicação provável da sua comissão no todo ou em parte no
território português e qual a medida de coacção efectivamente determinada para a
arguida segundo a lei alemã. Sendo possível deveria também esclarecer se a
fraude englobava ou não a prática de falsificação de documentos.
Sendo o pedido formulado em 17 a resposta foi junta em 20 seguinte – fls. 22 a
24 – dela se retirando no essencial que o Exmo. Procurador de Berlim respondia
que os crimes foram cometidos em território alemão, existindo fortes indícios no
que respeitava ao crime de burla, mas não no que dizia respeito ao crime de
falsificação. E que de acordo com a lei germânica uma prisão preventiva devia
ser ordenada e que a pena prevista era de dois anos de prisão.
Na audiência de 24-11-2006, destinada a alegações orais, a arguida apresentou
prova testemunhal, indicando os nomes de quatro cidadãos e requereu a junção de
três tipos de documentos.
Sobre o impetrado foi deliberado considerar desnecessária a junção de cópia de
certidão de registo comercial da sociedade da arguida por se mostrar já assente
a sua situação profissional, com base nas declarações iniciais.
Relativamente à prova testemunhal e aos dois outros tipos de documentos – cópia
dos 4 documentos do reconhecimento de dívida em causa nos autos e cópia da
injunção proposta no Tribunal de Berlim contra as 3 queixosas no processo crime
alemão que deu origem ao MDE, o qual vinha acompanhado de cópia de carta de
advogado alemão que propôs a injunção – foi deliberada a sua não admissão.
Para tanto foi considerado que atenta a causa de recusa invocada, pressupondo a
ocorrência, ainda que parcial, dos factos em território português, relacionados
com falsificação de documentos, face à resposta do Mº Pº alemão no sentido de
que a investigação corria apenas por factos ocorridos na Alemanha e tão somente
por crime de burla, era irrelevante a produção de prova para a formação da
decisão do Colectivo, podendo os documentos ser relevantes apenas para a questão
de mérito no processo alemão.
Por acórdão de 31-10-2006 foi determinada a execução definitiva do MDE contra a
procurada, com entrega após o trânsito às autoridades alemãs para prossecução do
procedimento criminal com referência aos §§ 263 (1, 2), 22, 23 do C.P. Alemão,
ficando a decisão de entrega sujeita na sua execução à condição de a autoridade
requerente garantir que a arguida será devolvida a Portugal para aqui cumprir
pena ou medida de segurança privativas de liberdade em que venha a ser condenada
na Alemanha.
Foi ainda ordenado, desde logo e independentemente do trânsito em julgado, se
oficiasse à autoridade emitente para informar se prestava a garantia exigida.
“Sendo prestada, a execução, mesmo que tenha transitado em julgado a decisão, só
se cumprirá depois de considerada válida tal garantia.
Se a garantia não for prestada, a execução não terá lugar e o processo será
arquivado”.
Foi ainda mantida a medida de coacção fixada.
A arguida interpôs recurso da decisão – fls. 79 – apresentando a motivação de
fls. 80 a 106.
Em 15-11-2006 foi dada informação de que as autoridades alemãs se comprometiam a
que a procurada cumprisse pena em Portugal desde que o requeresse.
Por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30-11-2006 – fls.132 a 163 –
foi anulado o acórdão da Relação, por não enumerar a base factual imputada à
arguida, exigida pelo artigo 3º, alínea e), da Lei 65/03, considerando tratar-se
“de matéria absolutamente essencial à decisão da causa e ao exercício dos
direitos de defesa da arguida”, devendo ser solicitado o MDE, e “na nova
decisão, a Relação de Lisboa enumerar a matéria de facto imputada à arguida, e,
eventualmente, outros elementos complementares que entenda necessários,
nomeadamente quanto à situação processual e incriminação jurídico-penal, a
colher junto da Entidade competente”.
Na Relação é proferido despacho a fls. 167, no sentido de serem satisfeitas as
pretensões expostas no acórdão do STJ.
O Mº Pº de Berlim, em 02-02-2007, responde ao pedido formulado, acrescentando
informações com referência aos factos imputados à “prescrutada”, conforme fls.
177/8.
Por não se mostrarem satisfeitos cabalmente os pedidos, nova insistência é feita
por despacho de fls. 180, pedindo-se ainda outros esclarecimentos, insistindo-se
a fls. 182 e 197.
Por despacho de fls. 234 foi ordenada a notificação à arguida da junção dos
documentos.
A arguida exerceu o contraditório conforme fls. 243 a 249, aproveitando o ensejo
para invocar condições pessoais, como adiantada idade e estado de saúde
debilitado, requerendo a final a sua audição relativamente a matérias constantes
do MDE e de esclarecimentos prestados pela Promotora Pública de Berlim.
Ø Por despacho de fls. 253 v º foi considerado não se afigurar útil e
necessária a audição requerida.
O Tribunal da Relação de Lisboa, em 06-11-2007, procedeu à elaboração de novo
acórdão, de fls. 255 a 293, em cumprimento do decidido pelo STJ, em que em
substância é repetida a decisão, acrescendo a inserção da matéria de facto
assacada à arguida, referindo que a questão de saúde da arguida será apenas, se
verdadeira for, motivo de suspensão temporária da entrega.
Irresignada, a procurada interpôs recurso, apresentando a motivação de fls. 304
a 329, que remata com as seguintes CONCLUSÕES:
1. Os presentes autos tiveram início com a detenção da arguida na sequência da
emissão pelas autoridades alemãs de um Mandado de Detenção Europeu para
prossecução de procedimento criminal contra a Recorrente.
2. De acordo com o MDE finalmente junto aos autos a Recorrente intentou uma
intimação para pagamento num Tribunal Alemão contra os herdeiros de D. com base
em declarações de dívida assinadas pela falecida D..
3. Afirma-se ainda que a requerida, quando foi intentada a intimação para
pagamento, sabia que as assinaturas constantes das declarações de dívida não
tinham sido efectuadas pela D..
4. A requerida confirmou a propositura da acção mas esclareceu que estava (e
está) convencida de que as assinaturas apostas nos documentos efectivamente
pertenciam a D., convicção que saía reforçada pelo facto de das aludidas
declarações constar igualmente a assinatura de uma testemunha, sendo que a
própria requerida não havia presenciado a assinatura do documento.
5.De acordo com informação de uma Promotora Pública (fls. 177 e 178 dos autos)
'as investigações revelaram que os títulos de dívida com quase certeza absoluta
não foram assinados pela emitente D.'.
6. Esclareceu-se que não se sabe se há ou não falsificação da assinatura ao
contrário do que consta do MDE.
7. Acresce ainda que, tal como a Recorrente sempre afirmou e aceitando-se por
mera cautela de patrocínio que os factos descritos no MDE são verdadeiros, os
factos integrantes do tipo de burla na forma tentada sempre teriam sido
praticados pela requerida em território nacional.
8.A requerida contactou, em Portugal, o seu advogado alemão (Dr. E.) pedindo-lhe
que este tomasse as providências necessárias para reclamar o pagamento da dívida
a que se achava ter direito.
9. A requerida nunca se deslocou para esse efeito ao território alemão tendo
dado todas as instruções ao seu advogado a partir de Portugal, onde reside há
mais de 40 anos.
10. A requerida não instruiu expressamente o advogado acerca de qual o concreto
procedimento a adoptar pois além de não possuir formação em Direito desconhece
por completo a lei alemã por residir no nosso país há mais de quarenta anos.
11. Foi o seu advogado que decidiu qual o melhor meio de obter o pagamento da
dívida e apresentou o requerimento no Tribunal competente para obter uma
intimação de pagamento. 12. A responsabilidade criminal é pessoal pelo que há
que averiguar onde é que a requerida terá praticado os factos típicos que
determinam a sua eventual responsabilidade nesta questão.
13. Hipótese que é até aceite pela Promotora Pública de Berlim: 'não sabemos se
a ré, cujo endereço em Portugal encontra-se (sic) no requerimento de remissão de
intimação de pagamento, deu ao seu advogado as instruções referentes ao
requerimento a partir de Portugal, ou pessoalmente no escritório do advogado.'
14. Indubitavelmente o facto típico do ilícito in casu, e no concerne à
requerida, consiste em ter dado instruções ao Advogado alemão para reclamar o
pagamento de uma dívida que, segundo a 'acusação', a requerida bem sabia não
existir por se fundar em título falso.
15. E isto porque não existiu consumação do crime que a existir teria sido, esta
sim, em território alemão.
16. O Tribunal 'a quo' aceitou até que os factos ocorreram como ora se descrevem
mas, ainda assim, concluiu que 'o facto de a arguida dar ordem ao seu advogado a
partir de Portugal não preenche senão um dos vários e subsequentes actos
preparatórios e de execução da infracção, concretizar praticamente, na sua
grande maioria, em território alemão. '
17. Porém, não é a emissão da ordem de propositura da acção no Tribunal alemão,
ao contrário do que sustenta o Tribunal 'a quo', um mero acto preparatório ou de
execução mas sim o único acto praticado pela requerida e o acto eventualmente
gerador da sua responsabilidade criminal.
18. No caso em apreço, tendo a Recorrente transmitido as instruções ao seu
advogado a partir de sua casa, em Portugal, impõe-se concluir que a totalidade
dos factos foi praticada em território nacional, no que à intervenção da
requerida concerne.
19. Pelo que se encontra preenchida a causa de recusa prevista na alínea h) do
n.º 1 do art.12° da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, devendo ter sido, em
conformidade, recusada a execução do mandado de detenção europeu.
20. E tal modo é forte a ligação dos factos em apreço ao território nacional que
se impõe a recusa da entrega da Recorrente às autoridades alemãs.
21. Em poucos casos se verificará uma ligação tão forte ao território nacional
como no caso em apreço, em que a totalidade dos factos praticados pela Requerida
ocorreu em território nacional.
22. Sopesando os conflituantes interesses em apreço, deveria ter sido dada clara
prevalência aos interesses do Estado português e não aos do Estado Requisitante
por ser a ligação dos factos ao território nacional demasiado forte para poder
ser relegada para plano secundário.
23. Pelo que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que
declare verificar-se a causa de recusa facultativa prevista na alínea h) do
art.12° da lei 65/2003, de 23 de Agosto, e, em consequência, recuse o pedido de
entrega da Requerida às autoridades alemãs nos termos melhor supra expostos.
24. Acresce ainda que requerida tem 76 anos e viveu em Portugal a esmagadora
maioria da sua vida, tendo adquirido a nacionalidade portuguesa há mais de 40
anos, em 1965.
25. Desde há mais de 40 anos que a requerida vive em Portugal, onde actualmente
gere um Hotel, e onde residem igualmente todos os seus filhos e netos.
26. O estado de saúde da requerida é debilitado e reclama cuidados médicos
permanentes.
27. A requerida padece de reumatismo extenso e particularmente doloroso estando
ainda a ser seguida e submetida a tratamentos relativos a doença do foro
ginecológico.
28. A requerida requereu que fosse admitida prova de que todos os factos
penalmente relevantes teriam ocorrido em Portugal.
29. Tendo apresentado não só a cópia dos reconhecimentos de dívida que se alegam
ter aposta assinatura falsificada como ainda a cópia da acção judicial cuja
propositura motiva a acusação de burla que impende sobre requerida e cópia de
correspondência trocada com o advogado alemão que intentou a referida acção, da
qual decorre indubitavelmente que a requerida deu instruções ao mesmo em
Portugal e não na Alemanha.
30. Estranhamente o Tribunal recorrido, ao arrepio da sua posição inicial, nos
termos da qual reconheceu a pertinência de tal prova, negou a produção de prova
por parte da requerida, por a considerar irrelevante.
31. Apresentou ainda a arguida perante o Tribunal recorrido quatro testemunhas
cuja audição requereu.
32. Três dessas testemunhas (F., G. e H.) intervieram na elaboração dos
documentos de reconhecimento de dívida que cuja junção aos autos se requereu e
que fundam não só a imputação da alegada falsificação mas também a da alegada
burla.
33. A quarta testemunha, I, que se deslocou expressamente da Alemanha para
perante o Tribunal recorrido atestar que a arguida deu no nosso país as
instruções que consubstanciam, no entender das autoridades alemãs, a prática de
um crime de burla.
34. Toda a prova apresentada (documental e testemunhal) foi considerada
irrelevante para a decisão de mérito a proferir.
35. Por via da decisão recorrida negou-se ainda o direito de a Recorrente
prestar declarações acerca dos novos e decisivos elementos juntos aos autos
concretamente, pasme-se, os factos constantes do original do MDE que finalmente
fora junto aos autos.
36. A Recorrente, quando foi ouvida, foi confrontada com os factos constantes da
inserção do SIS que, como já sobejamente se encontra demonstrado, são
imprecisos, insuficientes e até não coincidentes com a informação constante do
MDE, estando, portanto, errados.
37. Por isso mesmo requereu, após a junção aos autos do original do MDE, que lhe
fossem colhidas declarações quanto aos novos factos trazidos aos autos,
concretamente os constantes do original do MDE, estes sim delimitadores do
âmbito dos presentes autos.
38. A decisão recorrida considerou não se afigurar necessário ouvir a Recorrente
pois tal audição 'seria repisar do mesmo e pura perda de tempo.'
39. Ao decidir deste modo a decisão recorrida violou as normas constantes dos
nºs 1, 2 e 3 do art. 21° da lei 65/2003, de 23 de Agosto, conjugadas com a
alínea h) do n.º1 do art.12° da mesma lei na medida em que estas estabelecem o
direito do arguido a apresentar prova da verificação da causa de recusa de
execução do MDE que invocou.
40. Recusando o Tribunal recorrido a exercer aquela que é a sua única função,
enquanto entidade requisitada, em sede de execução de mandado de detenção
europeu: averiguar se se verifica, em concreto, a causa de recusa de execução
que a requerida invocou em sua defesa.
41. E ao ter negado à arguida o exercício desse direito, resultante das
disposições conjugadas dos nºs 1, 2 e 3 do art.o21° da Lei 65/2003, de 23 de
Agosto, o Tribunal recorrido coarctou intoleravelmente o seu direito à defesa
constitucionalmente consagrado no n.º1 do art.32° da CRP.
42. Procedendo a uma interpretação inconstitucional das normas conjugadas dos
nºs 1, 2 e 3 do art.21° e da alínea h) do n.º1 do art.12° da Lei 65/2003, de 23
de Agosto segundo a qual, apesar de a arguida ter invocado a causa de recusa
constante da alínea h) do n.º1 do art.12, 'qualquer declaração da arguida nesta
matéria no âmbito deste processo de mde seria repisar do mesmo e pura perda de
tempo' é inconstitucional por violação da norma constante do n.º1 do art. 32° da
CRP, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
Termos em que:
a) Deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência deve a
decisão recorrida ser revogada, por violação do disposto nos artigos 12°, n.º1,
alínea h) e 21°, nºs 1, 2 e 3 ambos da Lei 65/2003, substituindo-se por outra
que decida ser procedente a causa de recusa facultativa invocada pela
recorrente;
b) Caso assim não se considere deve a decisão recorrida ser revogada e
substituída por outra que conheça da causa de recusa invocada e determine a
realização da prova cuja produção foi ilegalmente indeferida;
c) Em todo o caso deve ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação
efectuada pelo Tribunal recorrido por violação do disposto no n.º1 do art. 32°
da CRP (...)”.
3 – Por Acórdão de 2 de Janeiro de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu
negar provimento ao recurso, louvando-se, para tal, na fundamentação que ora se
transcreve:
«(...)
Do mandado de detenção europeu
Como é sabido, com o advento do Mandado de Detenção Europeu criado pela Decisão
Quadro nº 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, introduzido no direito interno
pela Lei 65/2003, de 23 de Agosto, mudou-se por completo o panorama da
extradição, enquanto instrumento de cooperação entre os Estados Membros.
O mandado de detenção europeu corresponde a uma forma de entrega de cidadãos
condenados ou sujeitos a procedimento criminal, mais eficaz, mais rápida e
flexível, com um processo simplificado, na tentativa, por um lado, de responder
à nova realidade criminológica, internacionalizada e globalizada, e por outro,
como projecção no plano da cooperação judiciária dos avanços no processo de
integração europeia, procurando implementar-se um sistema de livre circulação
das decisões judiciais em matéria penal, com o reconhecimento de que uma decisão
tomada por uma autoridade judiciária competente de um Estado Membro deve ter um
efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União.
Esta nova forma de cooperação internacional e de entrega entre Estados da
Comunidade entronca na Convenção Europeia de Extradição, feita em Paris, em 13
de Dezembro de 1957, a que se seguiu o Primeiro Protocolo Adicional, feito em
Estrasburgo em 15 de Outubro de 1975 e o Segundo Protocolo Adicional, feito em
Estrasburgo em 17 de Março de 1978, os quais vieram a ser aprovados, para
ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 23/89, sendo a
Convenção assinada em 27-04-1977 e os dois Protocolos assinados, igualmente em
Estrasburgo, em 27-04-1977 e em 27-04-1978, tendo sido ratificada a Convenção
pelo Decreto do Presidente da República nº 57/89, ambos publicados no DR-I
Série, de 21-08-1989.
O procedimento extradicional veio a ter outros desenvolvimentos ao nível do
direito convencional comunitário.
Assim acontece, desde logo, com um instrumento relevante para este novo processo
-cfr. artigo 4º da Lei 65/2003 - o Acordo Relativo à Supressão Gradual dos
Controlos nas Fronteiras Comuns, assinado em Schengen a 14 de Junho de 1985 e a
Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 14 de Junho de 1985, assinada em
Schengen em 19 de Junho de 1990, cujos Protocolo e Acordo de Adesão foram
aprovados em 2 de Abril de 2002 pela Resolução da Assembleia da República,
publicada sob o nº 53/93 no DR, nº 276, Série I-A, de 25-11-1993 e ratificados
pelo Decreto do Presidente da República nº 55/93, publicado no mesmo Diário da
República - cfr. Capítulo IV - artigos 55º a 66º.
Os Estados-Membros da Comunidade com o Tratado da União Europeia (TUE), assinado
em 07-02-1992 e entrado em vigor em 01-11-1993 (Tratado de Maastricht),
afirmaram a existência de um domínio de cooperação comum relacionados com a
justiça e assuntos internos, impulsionando a cooperação judicial em matéria
penal, como expressamente foi inscrito no Título VI – “Disposições relativas à
cooperação policial e judiciária em matéria penal”, criando-se então o terceiro
pilar da União Europeia.
Na sequência são firmadas e estabelecidas, com base no então artigo K.3 do
referido TUE, a Convenção relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre
os Estados Membros da União Europeia, assinada em Bruxelas em 10-03-1995,
aprovada em 27-02-1997 para ratificação por Resolução da Assembleia da República
e ratificada por Decreto do Presidente da República, de 22-05-1997, ambos
publicados sob o nº 41/97, in DR, I Série - A, nº 138, de 18-06-1997 e a
Convenção relativa à Extradição entre os Estados–Membros da União Europeia,
assinada em Dublin, em 27-09-1996, aprovada em 28-05 -1998 para ratificação por
Resolução da Assembleia da República e ratificada em 18-08-1998 por Decreto do
Presidente da República, ambos publicados sob o nº 40/98, in DR, I Série - A, nº
205, de 05-09-1998, modificando esta Convenção o regime da Convenção de 1957,
sendo que tais convenções não chegaram a entrar em vigor na totalidade dos
Estados-Membros, uma vez que não foram ratificadas por todos eles.
A construção de um espaço judiciário comum e a cooperação judiciária em matéria
penal ganha nova dimensão a partir do Tratado de Amesterdão, assinado em
02-10-1997, que entrou em vigor em 01-05-1999, ratificado por Decreto do
Presidente da República nº 65/99, in DR, I Série –A, de 19-02-1999, que teve por
ambição suprimir os entraves jurídicos à circulação das decisões judiciais, com
a introdução de novos instrumentos normativos, passando os Estados Membros a
dispor em matéria penal de “decisões” e “decisões-quadro”, com natureza
vinculativa para os Estados Membros, quanto aos fins a alcançar.
Com o Plano de Acção de Viena, aprovado em 03-12-1998, estabeleceu-se a adopção
de medidas tendentes a facilitar os procedimentos de extradição entre os
Estados-Membros, assegurando que as duas convenções de extradição existentes
adoptadas ao abrigo do TUE fossem efectivamente implementadas na prática.
Com o Conselho Europeu de Tampere, realizado em 15 e 16 de Outubro de 1999,
operou-se avanço significativo.
Concluiu-se então que o procedimento formal de extradição deveria ser abolido
entre os Estados-Membros no que dizia respeito às pessoas julgadas à revelia
cuja sentença já tivesse transitado em julgado e substituído por uma simples
transferência de pessoas.
No sentido da construção do tal espaço comum de liberdade, de segurança e de
justiça propugnado em Amesterdão, concluiu-se deverem as sentenças e decisões
serem respeitadas e aplicadas em toda a União, para o que se mostrava necessário
alcançar um mais elevado grau de compatibilidade e de convergência entre os
diferentes sistemas jurídicos.
Lançam-se as bases do princípio da confiança mútua, com a verificação de que os
Estados-Membros “atingiram um tal grau de integração económica e de
solidariedade política que não é insensato partir do postulado de que devem
confiar uns nos outros no domínio judiciário”, devendo os Estados prescindir de
uma parcela da sua soberania penal para reconhecer, também, as pretensões
punitivas estrangeiras, abrindo as fronteiras nacionais às decisões judiciais
estrangeiras, consagrando-se, como pedra angular da cooperação judiciária, o
princípio do reconhecimento mútuo.
O objectivo geral deste princípio é conferir à decisão judicial eficácia total e
directa, em todo o território da União Europeia, criando operacionalidade ao
exercício das acções por parte de cada um dos seus Estados Membros.
O Conselho em Novembro de 2000 adoptou um programa de medidas destinado a dar
execução ao princípio, afirmando-se que “o reconhecimento mútuo assume (…)
formas diversas, devendo ser procurado em todas as fases do processo penal,
antes e depois da sentença”.
Os acontecimentos verificados nos EUA em 11 de Setembro de 2001 precipitaram
esta evolução, sendo o impulso dado no Conselho Europeu extraordinário que se
realizou dez dias depois, assinalando-se o acordo obtido quanto à introdução do
mandado de detenção europeu que permite a entrega de pessoas procuradas
directamente entre autoridades judiciárias, conferindo-se carácter prioritário à
sua implementação
O Conselho da União Europeia adoptou a Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, de 13 de
Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de
entrega entre Estados-Membros.
Este regime inovador substituiu as Convenções até então vigentes sobre
extradição nas relações entre os Estados Membros da União.
Portugal adaptou o seu direito interno à Decisão Quadro através da publicação da
Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.
Previamente, através de revisão constitucional – a 5ª – que aditou o § 5 ao
artigo 33º da CRP, viabilizou a extradição ou a entrega de cidadãos nacionais em
consequência dos compromissos assumidos no domínio da cooperação judiciária
penal no âmbito da União Europeia – Lei Constitucional nº 1/2001, de 12-12.
O MDE constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo e
por força da sua aplicação, a decisão quadro acaba com o processo de extradição
entre os Estados Membros da União.
Como refere Anabela Miranda Rodrigues, O Mandado de Detenção Europeu - na via da
construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto? na Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13, nº 1, p. 23 e ss., a decisão quadro
“substitui as convenções aplicáveis em matéria de extradição nas relações entre
os Estados-Membros, sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre
Estados–Membros e Estados terceiros (art. 31º, nº1) …”
Nas relações entre os Estados da Comunidade, por força do MDE, o elemento chave
do processo de “entrega” passou a ser o próprio “mandado” de detenção emitido
pela autoridade judiciária competente, diversamente do que ocorre nas relações
com o exterior do «território único», em que o elemento chave continua a ser o
”pedido”, o que se justificará por nesses casos não se estar perante os
pressupostos (confiança recíproca entre os Estados Membros, o reconhecimento
mútuo e o postulado do respeito efectivo pelos direitos fundamentais em toda a
União Europeia) que justificam a judiciarização do processo de detenção e de
entrega.
A propósito desta evolução vejam-se, para além do trabalho referido, O princípio
do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu, por Ricardo Jorge
Bragança de Matos, na mesma Revista, ano 14, nº 3, p. 325 a 367, A importância
da cooperação judiciária internacional no combate ao branqueamento de capitais,
por Euclides Dâmaso Simões, na Revista citada, ano 16, nº 3, p. 423 a 473 e O
controlo da dupla incriminação e o mandado de detenção europeu, por Mário Elias
Soltoski Júnior, no mesmo número, p. 475 a 494.
Factos a considerar
O Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência do decidido por este Supremo
Tribunal, de acordo com os elementos disponíveis, quer na inserção SIS, quer no
original do MDE, quer de acordo com os esclarecimentos prestados pela autoridade
de emissão, enunciou a seguinte facticidade que está na base da emissão do
mandado de detenção europeu proveniente dos citados Tribunal e processo alemães:
“Em Dezembro de 2003, a arguida (A.) apresentou ao Tribunal da Comarca de
Weeding/Schöneberg – tribunal central para intimações de pagamento – um
requerimento, que deu entrada no Tribunal em 23 de Dezembro de 2003, para obter
uma intimação de pagamento contra a comunidade de herdeiros formada por J., K. e
L.. Como fundamento, encarregou o Advogado no processo (Dr. E.) de referir no
pedido uma reclamação baseada na existência de 4 títulos de dívida assinados
pela testadora D. para reembolso de uma dívida face à comunidade de herdeiros no
valor total de 304.218,68 euros.
Quando apresentou o pedido, a arguida sabia que as assinaturas que figuravam nos
títulos de dívida não tinham sido efectuadas pela testadora D..
A arguida actuou com a intenção prévia de obter um pedido de reembolso de um
empréstimo que não lhe cabia imputar à herança comum.
No entanto, não chegou a concretizar a emissão da relação de pagamento.
Grau de participação: autora da infracção”.
A emissão do MDE foi accionado pelo Ministério Público de Berlim, junto do
Tribunal de Tiergarten, referindo-se a infracção punível com pena até 5 anos de
prisão, a arguida estar referenciada como autora de crime tentado de burla,
punível segundo os §§ 263, nºs 1 e 2, 22 e 23 do Código Penal Alemão, os factos
reportarem-se a 23 de Dezembro de 2003, tendo ocorrido em Berlim.
Para além daquela matéria de facto o mandado continha as seguintes indicações:
Natureza e qualificação jurídica da (s) infracção/infracções e disposição
legal/código aplicável: Qualificação jurídica da (s) infracção (ões): tentativa
de burla.
Disposições legais aplicáveis: §§ 263 nºs 1 e 2, 22 e 23 do Código penal alemão
(…)”
O prazo de prescrição do procedimento criminal foi interrompido com a emissão do
mandado de captura do Tribunal de Tiergarten de 22 de Maio de 2006.
Segundo informação prestada pelo Mº Pº Alemão a fls. 231, datada de 28-03-2007,
“a Srª A. é suspeita de ter dado instruções ao seu advogado de Bad Aibling
(Baviera) ou pessoalmente ou por telecomunicações, para apresentar uma queixa
cível no Amtsgericht Tiergarten (tribunal local) em Berlim, a 23 de Dezembro de
2003, com base em falsas informações quanto à justificação dada por ela para
cobrar dívidas contraídas pela sua familiar falecida, D. a fim de forçar os
herdeiros/sucessores de D. a pagarem cerca de 300.000 euros à interessada.
Não temos nenhuma indicação sobre a questão de saber se a ordem foi dada a
partir de Portugal ou de outro país, mas o formulário (da queixa? / do
requerimento?) foi assinado na Alemanha e enviado para um tribunal alemão.
Assim, seria aconselhável que o tribunal apresentasse quaisquer outras questões
de um modo mais específico.
A acusação ainda não foi apresentada ao Landgericht (Tribunal Regional) de
Berlim porque, nos termos do código de processo penal alemão, a acusação e o
julgamento terão lugar regularmente quando for assegurada a presença da
interessada”
Esclarece-se que “se a Srª A. for entregue, será formalmente acusada e terá de
ir a julgamento no Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim) se a
acusação for aceite pelo Tribunal. A decisão sobre se a mesma terá de ficar
detida até ao final do julgamento cabe igualmente ao tribunal.
Dado que a Srª A. foi notificada pela polícia da Baviera sobre a queixa
apresentada contra ela, entende-se não ser necessária carta rogatória”.
E relativamente a explicações sobre o Código de Processo Penal Alemão, o Mº Pº,
em 02-07-2007, a fls. 236 a 238, informava:
“1. A Sr.ª A. ainda não foi acusada. Como na Alemanha não existe julgamento na
ausência o arguido deve estar fisicamente presente para ser acusado em tribunal.
2. O mandado de detenção europeu emitido contra a Sr.ª A. baseia-se
essencialmente no mandado de detenção a nível interno, emitido pelo juiz de
instrução em 22 de Maio de 2006. Por conseguinte, logo que a Sr.ª A. chegue à
Alemanha será detida.”
*
O crime assacado à procurada é uma burla na forma tentada.
No início do processo foi colocada a questão de se estar eventualmente perante
também um crime de falsificação de documento.
A questão seria de colocar por estar em causa uma tentativa de cobrança de
alegado crédito titulado por documentos de assunção de dívida por parte da
autora da herança e atendendo-se a que então estaria em causa eventual
falsificação de assinatura da falecida ou “falsas informações quanto à
justificação dada por ela (procurada) para cobrar dívidas contraídas pela sua
familiar falecida”.
A este propósito as dúvidas foram desfeitas e esclarecidas com a informação
prestada em 02-02-2007 pela Promotora Pública de Berlim, a fls. 177/8, traduzida
em fax de 13-02-07, onde se esclarece:
“A ré não é acusada de falsificação de documento. Segundo o direito penal alemão
uma falsificação de documento é caracterizada por elaboração de documento falso,
falsificação de um documento verdadeiro ou emprego de um documento falso ou
falsificado. A apresentação de uma fotocópia reconhecível como tal somente é
considerada falsificação de documento, quando se trata da cópia de um documento,
em contraposição à cópia de partes soltas dispostas umas sobre as outras. As
investigações revelaram que os títulos de dívida com quase certeza absoluta não
foram assinados pela emitente D.. Contudo, não foi possível encontrar os
originais nos quais as cópias se baseiam. Não podemos excluir a possibilidade de
que trata-se tão somente de partes soltas dispostas umas sobre as outras. Além
disso, as fotocópias não chegaram a ser apresentadas ao tribunal.”
1ª Questão
Estar-se-á perante a verificação de uma causa de não execução ou de recusa
facultativa de execução do mandado, mais concretamente, a prevista na alínea h)
do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 65/2003?
A recorrente defende a afirmativa ao longo do que expõe nas conclusões 1ª a 23ª.
Dispõe o citado artigo:
1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:
i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em
território nacional ou a bordo de navios ou de aeronaves portugueses; ou
ii) Tenha sido praticada fora do território do Estado membro de emissão desde
que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando
praticados fora do território nacional.
Sobre aplicação da lei penal no espaço dispõe o artigo 4º do Código Penal, com a
epígrafe “Aplicação no espaço: princípio geral”:
«Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é
aplicável a factos praticados:
Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
A bordo de navios ou aeronaves portugueses».
Estas disposições consagram o princípio da territorialidade na aplicação da lei
penal no espaço, o qual já estava consagrado no artigo 53º, nºs 1 e 2, do Código
Penal de 1886.
Segundo este princípio-regra e basilar, que continua a dominar a aplicação da
lei penal no espaço, a legislação penal do Estado pune todas as infracções
cometidas no seu território (definido no artigo 5º da CRP), cometidas por
qualquer cidadão, entendendo-se território nacional com a extensão conferida
pelo princípio corolário daquele, o chamado princípio da bandeira ou do
pavilhão, sendo recente o caso de alargamento da aplicação no espaço das leis
penal e contra-ordenacional portuguesas a casos de ilícitos cometidos a bordo de
aeronaves civis em voos comerciais, constante do Decreto-Lei nº 254/2003, de
18-10.
O princípio é completado pelos princípios da protecção dos interesses nacionais,
da nacionalidade – da personalidade activa e da personalidade passiva – e da
pluralidade da prática do crime, também designado de princípio da competência ou
da aplicação universal ou princípio do direito mundial – sobre estas distinções,
cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 12ª edição, em anotação aos
artigos 4º e 5º e Manuel António Lopes Rocha, A Aplicação da Lei Criminal no
Tempo e no Espaço, in Jornadas de Direito Criminal, edição do CEJ, 1983, 118 e
ss.
Estes princípios mostram-se consagrados no artigo 5º, prevendo-se os casos em
que ainda é aplicável a lei penal portuguesa a factos cometidos fora do
território nacional, com as restrições previstas no artigo 6º.
A aplicação do princípio da territorialidade pressupõe resolvida a questão da
sede do crime.
A propósito da determinação do lugar da prática da infracção debatem-se as
doutrinas da actividade ou execução e do evento. A aceitação cumulativa das duas
doutrinas, resultante de premências da vida moderna e da facilidade e frequência
de prática de crimes à distância, deu origem à chamada solução plurilateral, já
defendida anteriormente pela doutrina, como Eduardo Correia, Direito Criminal,
1, p. 179 (defendendo ser a solução exigida pelo interesse de que, em virtude de
diferentes critérios usados pelas leis de diferentes países, os criminosos não
fiquem impunes) e a que Hans-Heinrich Jescheck chama teoria da ubiquidade.
No Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, tradução espanhola, edições
Bosch, 1981, de Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde, no capítulo IV da 1ª
Parte, fls. 239 a 241, a propósito do lugar de comissão, expende este autor, a
propósito do artigo 9º do Código Penal da então República Federal da Alemanha:
“O lugar de comissão de um facto é decisivo para a questão de saber se o poder
punitivo de determinado Estado se deve basear no princípio da territorialidade
ou deve buscar-se outro ponto de conexão.
A questão de saber quais são os elementos que servem para determinar o lugar de
comissão foi durante muito tempo objecto de discussão técnica. A teoria da
actividade atende ao lugar em que o autor actuou, ou em caso de omissão, devia
ter actuado. A teoria do resultado atende, pelo contrário, ao lugar onde se
produziu o resultado típico. Actualmente é dominante a teoria da ubiquidade.
Esta teoria considera como lugar de comissão tanto o lugar da acção como o do
resultado típico. Invoca-se para tanto a equivalência da acção e resultado para
o conteúdo criminal do facto e a necessidade de colmatar as lacunas que surgem
com a aplicação do princípio da territorialidade.
No que se refere à acção como ponto de conexão, o lugar da comissão nos crimes
de simples actividade determina-se unicamente pela acção típica, da qual é
necessário que se cometa só uma parte em território nacional e, nos crimes de
resultado, pela acção e pelo resultado.
Os actos preparatórios podem servir de base ao lugar da comissão do facto quando
se apresentam como contributo ao facto de um co-autor”.
E a propósito de tentativa esclarece: “A tentativa entende-se cometida em
território nacional quando o autor tiver actuado no estrangeiro mas o resultado
deveria produzir-se em território nacional e inversamente”.
A teoria da ubiquidade foi defendida entre nós pelo Professor Figueiredo Dias no
estudo La compétence des jurisdictions pénales portugaises pour les infractions
commises à l´ étranger, separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra,
1966, p. 10 e segs.
Cavaleiro Ferreira, segundo Apontamentos das Lições de Direito Penal proferidas
ao 5º ano jurídico, edição da FDL, ano de 1972-1973, Fasc. 15 e 16, p. 180/2,
expendia:
“As posições que têm sido sustentadas acerca da determinação do lugar do delito
são as mesmas que foram apresentadas quanto ao tempo do delito.
Segundo a doutrina da actividade, todo o delito é cometido no lugar em que se
exerce a acção criminosa do delinquente.
Segundo a teoria do evento, o delito deve considerar-se cometido no lugar onde
se verificou o resultado danoso.
Finalmente, a doutrina da ubiquidade afirma que o delito se poderá considerar
cometido tanto num como no outro lugar”.
Adiantava que, no que respeitava à competência internacional da lei portuguesa,
havia sido seguida a doutrina da ubiquidade no artigo 46º e §§ do Código de
Processo Penal. Desde que qualquer elemento do crime fosse praticado em
Portugal, toda a infracção se devia considerar cometida em território português.
E finalizava: “Com a adopção da doutrina da ubiquidade, o direito penal
português é aplicável aos factos que se realizem só parcialmente em território
nacional. Ainda que só a actividade, ou só o evento, ou só uma parte do evento,
se tenha realizado em território nacional, a lei penal será sempre aplicável
porque todo o crime se considera cometido em território nacional”.
O mesmo Professor retoma o tema nas Lições de Direito Penal, Editorial Verbo,
1987, I, p. 26 a 31, dizendo: «O C. Penal de1886 era omisso sobre a determinação
do lugar do delito; a doutrina portuguesa então ponderou largamente a questão;
intervieram no seu estudo e discussão com especial relevo os professores
Henriques da Silva, Pedro Martins e Caeiro da Mata.
A questão foi resolvida pelo Cód. de Proc. Penal com base na opinião dominante e
que foi a dos dois últimos autores citados, ou seja a chamada doutrina da
“ubiquidade”».
E que “a solução legislativa do art. 46º do CPP (de 1929) está fundamentalmente
recolhida pelo art. 7º do (então) novo Cód. Penal”.
Na jurisprudência, no acórdão do STJ, de 21-12-1983, in BMJ 332, 341, dizia-se:
O actual Código Penal no seu artigo 7º consagra a teoria da ubiquidade quanto ao
lugar do delito, em clara consonância com a ideia da plenitude da soberania
portuguesa sobre o território nacional, anotando-se aí que a teoria da
ubiquidade é a mais ampla concepção da sede do delito já que tem em conta o
lugar, o processo de execução, o resultado e o efeito intermédio.
Em anotação a este acórdão do STJ, na Revista de Legislação e Jurisprudência,
ano 118º, p.17, escrevia o Professor Figueiredo Dias: «O art. 7.º do CP consagra
a chamada solução plurilateral ou da ubiquidade, em termos particularmente
amplos e consonantes com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o
território nacional. Basta, por isso, que a infracção tenha com o território
português qualquer dos elementos de conexão mencionados com aquele preceito -
acção, nos crimes respectivos; a acção esperada nos casos de omissão; ou o
resultado típico - para que deva concluir-se ter sido o crime praticado em
Portugal…»
O Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23-09, procurou
resolver a questão no artigo 7º, cujo texto inicial era sob a epígrafe “Lugar da
prática do facto” o seguinte: «O facto considera-se praticado tanto no lugar em
que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente
actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o
resultado típico se tenha produzido».
Redacção praticamente simétrica encontra-se na definição do lugar da prática do
facto no artigo 6º do DL 433/82, de 27/10 - regime geral das contra-ordenações.
O texto teve uma alteração (ligeira) em 1995, substituindo-se apenas o tempo
verbal “tenha produzido” por “tiver produzido”, sendo a seguinte a redacção
actual, introduzida pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro – 4.ª alteração do
Código Penal - entrada em vigor em 07-09-1998 e intocada pela Lei nº 59/2007, de
4 de Setembro:
1 – O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente,
e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de
omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o
resultado não compreendido no tipo de crime se tiverem produzido.
2 – No caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em
que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter
produzido.
Este nº 2 corresponde a inovação introduzida pela citada reforma de 1998, não
tendo correspondente, quer na versão original de 1982, quer na 3ª alteração
operada em 1995 pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15-03.
Estas alterações foram justificadas na exposição de motivos da proposta de lei
nos seguintes termos:
“… Modifica-se a regra de determinação do lugar da prática do facto (artigo 7º),
contemplando-se, por um lado, o lugar em que se produziu o resultado não
compreendido no tipo de crime e, por outro, o lugar em que, no caso de
tentativa, se deveria ter produzido o resultado típico. Na primeira hipótese,
utiliza-se o conceito de consumação material de crime, através de uma linguagem
de que o Código Penal se prevalece no artigo 24º. Assim, nos crimes formais (e,
mais genericamente, nos crimes de perigo), será aplicável a lei penal
portuguesa, apesar de o agente ter actuado no estrangeiro, desde que a lesão do
bem jurídico ocorra em Portugal. Na segunda hipótese – e seguindo a mesma ideia
de reforço da validade da lei penal portuguesa – consagra-se um critério que
atende à representação do agente, para determinar o lugar o lugar em que o crime
se teria consumado se a tentativa fosse bem sucedida”.
Esta inovação respeitante à tentativa corresponde, segundo nos parece, à
recepção dos ensinamentos de Jescheck, não só face ao já referido trecho, mas
também quando, a fls. 706, ao encarar o problema da delimitação entre tentativa
e preparação, discorre que há que partir da «representação do autor do facto»,
isto é, do plano do agente, acolhendo-se um critério subjectivo.
Volvendo ao nosso caso.
È inquestionável que a burla perfectibilizar-se-ia em Berlim.
Tudo começa com um procedimento cível de tentativa de cobrança de alegado
crédito da procurada sobre as forças da herança de uma falecida familiar, D.,
desconhecendo-se onde residiria…os títulos de crédito seriam documentos a
titular mútuos, que teriam sido celebrados entre a procurada, na qualidade de
mutuante e a autora da herança demandada, como mutuária, desconhecendo-se a data
da abertura da herança, sabendo-se que estariam em causa 4 títulos, datados de
17-07-1991, 01-07-1992, 21-10-1992 e 30-09-2003, desconhecendo-se os montantes
constantes de cada título e se face à lei portuguesa, supondo-se ser a
aplicável, tais mútuos seriam nulos por falta de forma ou não.
Pelo que resulta dos elementos trazidos a este procedimento, a adjectivação
desta tentativa de cobrança de crédito sobre a referida herança, ter-se-á
processado em termos que, a nível de processo nacional, estará muito próximo do
recurso ao procedimento de injunção, previsto no Decreto-Lei nº 269/98, de
01-09, republicado pelo DL 107/05, de 01-07 (procedimento destinado a exigir o
cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato), que era
inicialmente de aplicar à cobrança de créditos provenientes de contratos de
baixo valor e que a partir do Decreto-Lei nº 32/03, de 17-02, passou a abranger
a cobrança de créditos de valor muito superior, de tal forma que a adjectivação
deste modo de cobrança passou a ser transversal, abrangendo dívidas de montantes
mais elevados e a poderem ser processadas, caso não funcione a injunção, com a
dedução de oposição ou no caso de frustração de notificação, nas formas de
processo comum – sumária e ordinária.
Ao deduzir o pedido o autor não carece de juntar desde logo documento
comprovativo do crédito, pois, a não haver oposição, é logo conferida força
executiva ao requerimento injuntivo. Daí, não terem sido juntos os títulos de
dívida ao requerimento, como se informa a fls.177.
Tal acção terá sido muito provavelmente suspensa por prejudicialidade, até ser
esclarecida no processo crime competente e de que emergiu este mandado, a
questão da alegada viciação dos títulos de crédito apresentados.
Atendendo a todo este quadro, dúvidas não haverá de que, mesmo que alguns dos
actos tenham sido praticados em Portugal, o resultado deveria produzir-se em
território alemão, pois evidente é que a cobrança da dívida efectivar-se-ia em
Berlim, onde a injunção foi proposta.
Após a propositura da acção das duas uma: ou os herdeiros não deduziam oposição
e era desde logo conferida força executiva ao requerimento injuntivo, ou era
deduzida oposição, e a acção prosseguiria para ser declarado o direito de
crédito.
O que significa que sempre o reembolso dos alegados mútuos, ou o enriquecimento
ilegítimo, teriam lugar em Berlim.
O resultado da acção deveria, pois, produzir-se na Alemanha.
Se o resultado se deveria ter produzido em Berlim, de acordo com o plano e a
representação da procurada, o facto considera-se praticado …em Berlim.
É o que resulta do nº 2 do artigo 7º do Código Penal.
Sendo assim, afastada fica a possibilidade de recusa prevista no artigo 12º, nº
1, alínea h) da Lei nº 65/03.
Ainda relacionada com a recusa, invoca a recorrente, nas conclusões 24ª e 25ª, a
sua idade e vivência em Portugal, alegando ter 76 anos de idade, repetindo o que
dissera no requerimento de fls. 243 a 249, o que só pode ser entendido como
manifesto, e certamente lamentável, lapsus calami, já que não pretenderia a
recorrente alcandorar-se a patamar etário, que só será atingido passados que
sejam três lustres.
Na verdade, tendo nascido em 29-12-1946, conta actualmente (e muito
recentemente, há escassos 4 dias), apenas com 61 anos de idade.
Alega ainda viver no País há 40 anos, ter nacionalidade portuguesa desde 1965,
ano em que casou, tendo aqui 2 filhos e netos, gerindo um hotel em Lisboa, de
que é proprietária, como afirmou nas primeiras declarações e repetira no mesmo
local.
Pese embora toda esta vivência, consta do auto de audiência que “Atento o facto
de a detida não falar e entender a Língua Portuguesa e, por conseguinte, não
prescindir de intérprete, foi, nos termos do disposto no art. 92º do C. P.
Penal, nomeada intérprete a Sra. ...”, a quem no final foram fixados os
competentes honorários.
No que respeita à questão do estado de saúde, invocada nas conclusões 26ª e 27ª,
remete-se para o que consta do acórdão recorrido.
Resolvida a questão da causa de não execução facultativa suscitada pela
procurada, de acordo com a clara solução legal dada pelo nº 2 do artigo 7º do
Código Penal, no sentido já exposto, parece despiciendo tecer outras
considerações relativamente às duas outras questões colocadas em recurso.
Não obstante, não se deixará de abordar as mesmas.
2ª Questão
Nas conclusões 28ª a 39ª a recorrente invoca a violação do disposto no artigo
21º, n.º s 1, 2 e 3 da Lei nº 65/03, insurgindo-se contra o decidido na parte em
que considerou irrelevante a produção de prova por si apresentada.
Em causa está a pretensão da recorrente de que fosse admitida prova de que todos
os factos penalmente relevantes teriam ocorrido em Portugal e o facto de ter
sido considerada irrelevante para a decisão essa prova, bem como a própria
audição, como requerera.
A tese do acórdão recorrido é esta: afastada a análise da questão na perspectiva
da falsificação (o que de resto já havia sido explicitado logo no início do
processo, aquando da audiência de 24-11-2006, como se vê de forma clara de fls.
27), haveria que analisar se face à burla a causa de exclusão seria relevante,
atendendo a que a autoridade emitente considerava o crime como cometido na
Alemanha.
É sobre esta consideração e contra o indeferimento da sua audição que a
recorrente se insurge.
Diz o acórdão recorrido, a fls. 289, que não se verifica a invocada causa
facultativa de exclusão, mesmo em relação à subsistente burla, face à
problemática da territorialidade. E justifica essa sua posição nestes termos: “
Na verdade, todo o iter criminis se terá desenrolado, quase na totalidade,
excepto no respeitante à eventual ordem da arguida ao seu advogado,
eventualmente a partir de Portugal, em território alemão. Qualquer declaração da
arguida sobre esta matéria no âmbito deste processo de mde seria repisar do
mesmo e pura perda de tempo. Por isso foi que se entendeu desnecessário ouvi-la
de novo, já que, mesmo aceitando que tal pudesse ser verdade, não alteraria uma
vírgula o sentido da solução”. (sublinhados nossos)
“Acresce que não há processo criminal pelos mesmos factos em Portugal, nem tão
pouco se manifestou nos autos que tal pudesse vir a acontecer, sequer por
iniciativa do Mº Pº.
A posição da defesa nesta matéria é manifestamente insuficiente para
preenchimento da causa relevante (territorialidade) de exclusão do mde.
O facto de a arguida dar ordem ao seu advogado a partir de Portugal não preenche
senão um dos vários e subsequentes actos preparatórios e de execução da
infracção, a concretizar praticamente, na sua grande maioria, em território
alemão.
Não encontramos pois, por aqui, razão de relevância daquela ordem, mesmo a ter
surgido em território nacional, para afastar aquele pedido de execução de
entrega para procedimento criminal”.
A este respeito há que dizer desde já que o presente procedimento vai longo,
encontrando-se a procurada em liberdade, verificando-se o exercício do
contraditório e o manifesto propósito por parte do tribunal, desde o início, de
esclarecer a situação, como desde logo decorre do pedido inicial de informações
complementares, dos pedidos de esclarecimentos à autoridade emitente e à
notificação de documentos juntos, de modo a que a arguida pudesse apreciá-los, o
que não deixou de fazer.
Na verdade, o original do MDE não trouxe nada de substancialmente diverso do que
já constava dos autos, para mais subsistindo apenas o crime de tentativa de
burla, sendo certo que em boa verdade nunca o emitente colocou a questão do
crime de falsificação de documento, que só aqui foi colocada.
3ª Questão
Directamente conexionada com esta questão, nas conclusões 40ª a 42ª, argui-se a
inconstitucionalidade da interpretação das normas constantes das disposições
conjugadas dos nºs 1, 2 e 3 do art. 21º e da alínea h) do nº 1 do art. 12º da
lei 65/03, por a decisão recorrida ter negado à arguida o exercício do direito
de ver averiguado se se verifica em concreto, a causa de recusa invocada,
coarctando o seu direito à defesa constitucionalmente consagrado no art. 32º, nº
1 da Constituição da República Portuguesa, estando em causa o seguinte segmento:
“qualquer declaração da arguida nesta matéria no âmbito deste processo de mde
seria repisar do mesmo e pura perda de tempo”.
Estabelece este preceito que o processo criminal assegura todas as garantias de
defesa, incluindo o recurso.
A interpretação feita na decisão recorrida mostra-se fundamentada, tendo-se
socorrido de todos os elementos que ao longo do processo foram sendo juntos, os
quais foram apreciados e examinados, sendo correcta a análise efectuada à luz
dos elementos fornecidos pelo Estado emitente, e o que é mais, embora não
fundamentada dessa forma, de harmonia com a clara solução legal apontada para o
caso de tentativa pela consagração da teoria da ubiquidade e do seu último
desenvolvimento com a inovação introduzida em 1998.
A prova pretendida (dos factos integradores da causa de recusa facultativa
invocada), como se viu, era de todo inoperante e irrelevante, atendendo à
solução do artigo 7º, nº 2 do Código Penal.
Efectivamente, segundo a lei portuguesa a infracção, no todo ou em parte, não é
de considerar como tendo sido cometida em território nacional, não se
preenchendo, pois, o pressuposto da causa de recusa invocada.
Conclui-se assim não terem sido preteridas as garantias de defesa da
procurada.».
4 – Na sequência, foi requerida a aclaração desse Acórdão, que o Supremo
indeferiu por Acórdão de 29 de Janeiro de 2008.
5 – Novamente inconformada, a executada interpôs, nos termos supra referidos, o
presente recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, por integrar uma
hipótese abrangida pelo artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, e atento o disposto no
artigo 76.º, n.º 3, do mesmo diploma, passa a ser decidido nos termos seguintes.
6 – Como é consabido, o objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, disposição esta que
se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas se pode traduzir numa
questão de (in)constitucionalidade de normas de que a decisão recorrida, após
ter sido suscitada a questão, tenha efectivamente aplicado em termos de
constituírem o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa,
«A jurisdição constitucional em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I,
1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no
Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no
mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Por outro lado, importa acentuar que, neste domínio da fiscalização
concreta de constitucionalidade, a intervenção do Tribunal Constitucional se
limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o
tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de
poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua
reforma, no caso de o recurso obter provimento.
Tal só é possível quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal
Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida,
ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
Concretizando, ainda, aspectos do seu regime, cumpre acentuar que, sendo o
objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído
por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não
pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim
própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios
constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito
infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no
que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado
às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos
para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de
normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da
Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub
species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais
tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação
(directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este
Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in
concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não
incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a
conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo
ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade
normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II
Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por
exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de
21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos e o Acórdão n.º 269/94,
publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
A este propósito escreve Carlos Lopes do Rego («O objecto idóneo dos
recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações
normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência
Constitucional, 3, p. 8) que “É, aliás, perceptível que, em numerosos casos –
embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito
legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida – o que realmente se pretende
controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e
específicas circunstâncias do caso sub judicio […]; a adequação e correcção do
juízo de valoração das provas e de fixação da matéria de facto provada na
sentença (…) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a
aplicação do direito […]».
Finalmente, deve referir-se que decorre, ainda, dos referidos
preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em
termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, de modo que o
tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional
do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar adequadamente a questão
de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao seu
conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda com
os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se
possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização
da constitucionalidade dos actos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o
tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que
convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional,
que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de
substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de
constitucionalidade, fora da via de recurso.
É por isso que se entende que não constituem já momentos
processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição
de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a
obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento
ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia
ter pronunciado (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário
da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º vol., pp. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499º, pp. 77, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47º vol., pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República
II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492º, pp. 62, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 45º vol., pp.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República
II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º
vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito).
Por outro lado, importa reconhecer que não basta que se indique a
norma que se tem por inconstitucional, sendo, antes, necessário que se
problematize a questão de validade constitucional da norma (dimensão normativa)
através da alegação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e
o(s) parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou
princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta.
Tais exigências têm sido deveras reiteradas pela nossa jurisdição
constitucional.
De forma contínua e sistemática, tem este Tribunal estabelecido que
«“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal
que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de
constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que
(...) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um
segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem
suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte
o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a
norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de
uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao
acto de aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa
decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa
determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cf. Acórdãos nºs
37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série,
de 15-05-1996). [§] É certo que não existem fórmulas sacramentais para
formulação dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão de
constitucionalidade. [§] Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro
que se põe em causa a conformidade à Constituição de uma norma ou de uma sua
interpretação (...) – cf. o referido Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os
quais remete.
7 – Projectando estes criteria no caso sub judicio constata-se que a
recorrente não suscitou durante o processo qualquer questão de
constitucionalidade normativa, tendo apenas controvertido a decisão judicial qua
tale, enquanto momento de aplicação do direito a uma dada factualidade, razão
pela qual não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do
recurso.
Vejamos.
Na parte circunstancialmente relevante, a recorrente delimitou o seu
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça alegando o seguinte:
“(...)
30. Estranhamente o Tribunal recorrido, ao arrepio da sua posição inicial, nos
termos da qual reconheceu a pertinência de tal prova, negou a produção de prova
por parte da requerida, por a considerar irrelevante.
31. Apresentou ainda a arguida perante o Tribunal recorrido quatro testemunhas
cuja audição requereu.
32. Três dessas testemunhas (F., G. e H.) intervieram na elaboração dos
documentos de reconhecimento de dívida que cuja junção aos autos se requereu e
que fundam não só a imputação da alegada falsificação mas também a da alegada
burla.
33. A quarta testemunha, I., que se deslocou expressamente da Alemanha para
perante o Tribunal recorrido atestar que a arguida deu no nosso país as
instruções que consubstanciam, no entender das autoridades alemãs, a prática de
um crime de burla.
34. Toda a prova apresentada (documental e testemunhal) foi considerada
irrelevante para a decisão de mérito a proferir.
35. Por via da decisão recorrida negou-se ainda o direito de a Recorrente
prestar declarações acerca dos novos e decisivos elementos juntos aos autos
concretamente, pasme-se, os factos constantes do original do MDE que finalmente
fôra junto aos autos.
36. A Recorrente, quando foi ouvida, foi confrontada com os factos constantes da
inserção do SIS que, como já sobejamente se encontra demonstrado, são
imprecisos, insuficientes e até não coincidentes com a informação constante do
MDE, estando, portanto, errados.
37. Por isso mesmo requereu, após a junção aos autos do original do MDE, que lhe
fossem colhidas declarações quanto aos novos factos trazidos aos autos,
concretamente os constantes do original do MDE, estes sim delimitadores do
âmbito dos presentes autos.
38. A decisão recorrida considerou não se afigurar necessário ouvir a Recorrente
pois tal audição 'seria repisar do mesmo e pura perda de tempo.'
39. Ao decidir deste modo a decisão recorrida violou as normas constantes dos
nºs 1, 2 e 3 do art. 21° da lei 65/2003, de 23 de Agosto, conjugadas com a
alínea h) do n.º1 do art.12° da mesma lei na medida em que estas estabelecem o
direito do arguido a apresentar prova da verificação da causa de recusa de
execução do MDE que invocou.
40. Recusando o Tribunal recorrido a exercer aquela que é a sua única função,
enquanto entidade requisitada, em sede de execução de mandado de detenção
europeu: averiguar se se verifica, em concreto, a causa de recusa de execução
que a requerida invocou em sua defesa.
41. E ao ter negado à arguida o exercício desse direito, resultante das
disposições conjugadas dos nºs 1, 2 e 3 do art.o21° da Lei 65/2003, de 23 de
Agosto, o Tribunal recorrido coarctou intoleravelmente o seu direito à defesa
constitucionalmente consagrado no n.º1 do art.32° da CRP.
42. Procedendo a uma interpretação inconstitucional das normas conjugadas dos
nºs 1, 2 e 3 do art.21° e da alínea h) do n.º1 do art.12° da Lei 65/2003, de 23
de Agosto segundo a qual, apesar de a arguida ter invocado a causa de recusa
constante da alínea h) do n.º1 do art.12, 'qualquer declaração da arguida nesta
matéria no âmbito deste processo de mde seria repisar do mesmo e pura perda de
tempo' é inconstitucional por violação da norma constante do n.º1 do art. 32° da
CRP, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais.”
Como se extrai do exposto, a recorrente começa por imputar recta via
à decisão então em recurso, considerando que o Tribunal da Relação violou, em
sede de aplicação do direito, as normas da Lei n.º 65/2003 e, com isso
comprometeu do disposto no artigo 32.º da Constituição.
É certo que, na sequência, a recorrente concluiu que o tribunal
recorrido procedeu a uma interpretação inconstitucional “das normas conjugadas
dos nºs 1, 2 e 3 do art.21° e da alínea h) do n.º1 do art.12° da Lei 65/2003, de
23 de Agosto”, contudo, mesmo nessa parte, a recorrente não definiu, em termos
normativos, o critério interpretativo que autorizou a decisão judicativa, tendo
apenas controvertido o resultado da sua aplicação à factualidade judicialmente
valorada, como se constata pelos termos em que a questão foi posta.
De facto, a recorrente ao sustentar que o tribunal procedeu “a uma
interpretação inconstitucional das normas conjugadas dos nºs 1, 2 e 3 do art.21°
e da alínea h) do n.º1 do art.12° da Lei 65/2003, de 23 de Agosto segundo a
qual, apesar de a arguida ter invocado a causa de recusa constante da alínea h)
do n.º1 do art.12, 'qualquer declaração da arguida nesta matéria no âmbito deste
processo de mde seria repisar do mesmo e pura perda de tempo”, apenas provocou
uma sindicância do juízo aplicativo, que na valoração do caso concreto se
projectou na proposição transcrita, concluindo pelo indeferimento, sem
questionar o critério interpretativo, que, a montante desse juízo, o justifica
normativamente.
O que, por seu turno, acabou por determinar do Supremo Tribunal de
Justiça uma ponderação apenas direccionada ao controlo da aplicação do direito
ordinário, em termos de saber se, em concreto, a prova pretendida era, ou não,
“inoperante e irrelevante”.
Ora, este juízo, por relevar de uma sede manifestamente
“subsuntiva”, é irrepetível e insindicável pelo Tribunal Constitucional,
escapando à sua esfera de competência normativa.
Por isso, conclui-se que, contrariamente ao alegado, a recorrente não suscitou
junto do tribunal recorrido qualquer questão de (in)constitucionalidade
normativa, nem podia a recorrente considerar-se dispensada de o fazer à luz das
incidências constantes dos autos que afastam, quanto à matéria em causa, a
possibilidade de se poder configurar o Acórdão recorrido como uma “decisão
surpresa”.
Além do exposto, diga-se ainda que os preceitos do direito positivo
à luz dos quais se definiu a questão de “constitucionalidade” acabam
inclusivamente por não tocar na ratio decidendi que esteve subjacente ao juízo
posto em crise e que se colhe da norma que permitiu ao tribunal indeferir um
requerimento de produção de prova na consideração de que a mesma não se afigura
útil ou necessária “à descoberta da verdade e à boa decisão da causa” – cf.
despacho de fls. 253 v. e o artigo 340.º do Código de Processo Penal.
8 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não
tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 7 (sete)
UCs.».
B – Fundamentação
5 – A argumentação da reclamante não logra abalar a bondade da
fundamentação da decisão sumária que assim se mantém.
Na verdade, como aí se diz, o que a reclamante verdadeiramente
controverte é a decisão judicial no ponto em que esta considerou desnecessário
ouvir novamente a reclamante sobre os factos susceptíveis de integrar os
pressupostos legais da alegada causa de recusa facultativa de execução do
mandado de detenção europeu estabelecidos no art.º 12.º, n.º 1, alínea h), da
Lei n.º 65/2003, por haver considerado que a matéria de facto relevante
criminalmente para a definição do local da prática do crime se achava definida
na imputação feita à arguida pelo procurador alemão constante do mde.
É o juízo feito pelo tribunal quanto a este momento relevante do
processo decisório judicial e do subsequente juízo subsuntivo que a reclamante
põe em causa, apodando-o de inconstitucional.
E fá-lo com referência ao resultado da posição tomada pelo tribunal
em tal matéria, alegando, em primeira linha, que o mesmo viola directamente a
lei ordinária (“as normas constantes dos nºs 1, 2 e 3 do art. 21° da Lei
65/2003, de 23 de Agosto, conjugadas com a alínea h) do n.º1 do art.12° da mesma
lei”) e, depois, a norma constitucional do art.º 32.º, n.º 1, da CRP.
Como bem se vê, o quadro de direito positivo integrante da
verdadeira ratio decidendi é, pois, bem diverso do elegido pela reclamante como
objecto do recurso constitucional, tendo antes a ver com a vinculação do
tribunal a prosseguir a realização de todas as diligências necessárias à
descoberta da verdade material e com o dever de realização de todos os meios de
prova legal e constitucionalmente admissíveis.
A reclamação não merece, pois, deferimento.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas custas, fixando a taxa
de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 30 de Abril de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos