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Processo nº 341/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. No Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, A., Ld.ª,
NIPC ……., apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 80.º do Regulamento Geral
das Infracções Tributárias (RGIT), recurso da decisão do Chefe de Finanças de
Olhão que lhe aplicou uma coima no valor de € 275 (duzentos e setenta e cinco
euros), por não ter efectuado o pagamento especial por conta do IRC de Março de
2005.
Por decisão de 12 de Dezembro de 2006, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Loulé julgou o recurso procedente e, em consequência, anulou a decisão
recorrida. Para tal, fundamentou-se, no que ora releva, na seguinte ordem de
considerações:
Dispõe o n.° 1 do art.° 98.° do CIRC (Redacção do Decreto-lei n.° 198/2001- 3 de
Julho) que:
«Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo 96°, os sujeitos
passivos aí mencionados, excepto os abrangidos pelo regime simplificado previsto
no artigo 53°, ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar
durante o mês de Março ou, em duas prestações, durante os meses de Março e
Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação
não coincidente com o ano civil, no 3° mês e no 10° mês do período de tributação
respectivo.»
E do art.° 33º da LGT consta a seguinte comando:
«As entregas pecuniárias antecipadas que sejam efectuadas pelos sujeitos
passivos no período deformação do facto tributário constituem pagamento por
conta do imposto devido a final.»
Por seu turno, o art.° 114.° do RGITT diz-nos o seguinte:
«1. A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período
superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da
prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável
entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o
limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de
negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será
aplicável coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa
ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
5. Para efeitos contra-ordenacionais são puníveis como falta de entrega da
prestação tributária
(...)
f) A falta de pagamento, total ou parcial, da prestação tributária devida a
título de pagamento por conta do imposto devido afinal, incluindo as situações
de pagamento especial por conta.
(...)
E a seu tempo o n.° 5 do art.° 279 da Lei n.° 32-B/2002 de 30 de Dezembro
estatui o que segue:
«O incumprimento do disposto no artigo 98. ° Código do IRC é punido, nos termos
da alínea f) do n.° 5 do artigo 114.º do Regime Geral das Infracções
Tributárias, com coima variável entre 50% e o valor da prestação Tributária em
falta, no caso de negligência, e com coima variável entre o valor e o triplo da
prestação tributária em falta, quando a infracção for cometida dolosamente. »
Também é sabido que no, n.° 4 do art.° 26.° do RGIT estabeleceu-se esta norma:
«Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, os limites estabelecidos nos
números anteriores, os limites mínimo e máximo das coimas previstas nos
diferentes tipos legais de contra-ordenação, são elevados para o dobro sempre
que sejam aplicadas a uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente
constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada.»
Sendo as coisas assim e uma vez que a Arguida deixou de entregar nos cofres do
Estado o pagamento especial por conta a que a citada norma do art.° 98.°, n.° 1
do CIRC refere, naturalmente que a conclusão a retirar dessa situação seria a
que a Administração Fiscal retirou, a saber, o cometimento negligente da
contra-ordenação prevista e punível pelos demais normativos atrás referidos.
Acontece, porém, que o n.° 2 do art.° 104.° da Constituição da República
Portuguesa reza assim:
«A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real»
E ainda relevante se mostra o que, ao tempo, dispunha o n.° 2 do art.° 98.° do
CIRC (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 107-B/2003, de 31 de Dezembro e
que vigorou até à entrada em vigor da Lei n.° 60-A/2005, de 30/12, que lhe deu a
actual redacção):
«O montante do pagamento especial por conta é igual a 1% do volume de negócios
relativo ao exercício anterior, com o limite mínimo de (euro) 1250, e, quando
superior, será 20% da parte excedente, com o limite máximo de (euro) 40000.»
Discorrendo sobre o citado comando constitucional, refere o Prof. Saldanha
Sanches (em Manual de Direito Fiscal, 2. a edição, página 263 e seguinte), que:
«A proclamação constitucional do direito subjectivo do contribuinte a ser
tributado de acordo com o seu lucro real é uma particularidade do ordenamento
jurídico-tributário português. O legislador constitucional optou pela
consagração expressa desse direito.
Pode mesmo fazer-se um contraste entre a liberdade de conformação que tem o
legislador ordinário quanto às escolha do objecto de tributação e a escolha do
nível das taxas com a obtenção da igualdade na distribuição dos encargos
tributários que a Constituição lhe impõe: uma vez legalmente decidida a
tributação das empresas o modo como é distribuída a carga tributária entre elas
tem que respeitar o princípio da igualdade.
E isso conduz-nos às regras de determinação do valor ou da quantificação do
imposto: uma zona onde uma obrigação de resultado, a distribuição justa dos
encargos tributários, incide sobre o legislador ordinário.
E essa especifica concretização do princípio da igualdade vai exigir uma
tributação segundo o rendimento líquido objectivo o que por sua vez se vai
decompor num conjunto de sub-princípios ... »
Daí que as dúvidas que sobre a questão assaltaram o Prof. Casalta Nabais (em
Direito Fiscal, 2. a edição, 3. a reimpressão da edição de 2003, página 263 e
seguinte), as quais abaixo se sintetizam:
«Introduzido em 1998, o pagamento especial por conta foi objecto de profundas
alterações na LOE/2003. Nos termos daquele artigo na redacção dada por esta Lei,
este pagamento é igual à diferença entre o valor correspondente a 1 % dos
respectivos proveitos ou ganhos do ano anterior, com o limite mínimo de € 1.250
e máximo de € 200.000 e o montante dos pagamentos por conta efectuados no ano
anterior, O pagamento especial por conta, diferentemente do que acontece com os
pagamentos por conta normais (que segundo o art.° 96.º dão lugar ao imediato
reembolso caso sejam superiores ao imposto devido), será deduzido, nos termos do
art.° 87.º, ao montante apurado na declaração periódica de rendimentos do
próprio exercício a que respeita ou, se insuficiente, até exercício seguinte.
O que torna o pagamento especial por conta num empréstimo forçado ou mesmo num
imposto (na medida em que não venha a ser deduzido nos quatro exercícios
seguintes) de discutível constitucionalidade. »
Note-se que nessa mesma linha seguiram Leite de Campos, Silva Rodrigues e Lopes
de Sousa, em Lei Geral Tributária - Comentada e Anotada, 3ª edição, página 163
(em anotação ao citado art.° 33.° da LGT) como se pode ver deste passo dali
retirado:
«As entregas em causa são qualificadas de pagamento por conta do imposto; sem se
indicar o seu regime jurídico, do qual tudo depende.
As entregas pecuniárias antecipadas poderão ser entendidas em termos de
pagamentos fraccionados do imposto sujeitos às condições resultantes da
existência e do montante deste.
Contra esta caracterização invocar-se-á, porventura, o princípio da capacidade
contributiva. Antes de ver (ficado (completamente) o facto tributário não se
sabe sequer se há lugar a imposto. É certo que tais prestações assentam em
rendimentos passados que se presume manterem-se. Mas não se pode considerar como
facto tributário algo que não se prende com rendimentos, riqueza ou despesa
actuais.
Tais prestações antecipadas poderão ser configuradas como meros financiamentos
ao Estado. Cria-se uma conta devedora do Estado que será compensada com o
imposto apagar.
Estaríamos, pois, nesta perspectiva perante empréstimos forçados, não se lhes
aplicando as normas dos impostos.
Na tese aposta, dir-se-á que são prestações antecipadas do imposto devido a
final. Assim, aplicar-se-lhes-iam as normas dos impostos.»
Mais definitivo se mostrou João de AvilIez Ogando, no estudo citado pela Arguida
(que vimos no sítio web da Ordem dos Advogados, de onde seguimos o link para a
página http://www. oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe artigo.
aspx?idc=16885&idsc=16886&ida=16888), o qual, inter alia, referiu:
«No que em particular diz respeito à tributação das pessoas colectivas, a
Constituição da República Portuguesa adoptou, como critério aferidor da
capacidade contributiva das empresas, o seu lucro real, ao proclamar que “a
tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real
“(19), o que demonstra claramente que a tributação das empresas deve basear-se
fundamentalmente na sua contabilidade, o que foi aliás adoptado pelo legislador
ordinário ao consagrar que “o lucro tributável (..) é constituído pela soma
algébrica do resultado líquido do exercício e das variações positivas e
negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado,
determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos
deste Código. “(20).
A determinação do lucro com base na contabilidade foi adoptada omo critério de
aferição do rendimento real das empresas por ser a forma mais rigorosa de
determinar a imagem fiel do património, da situação financeira e dos resultados
das empresas, e por essa via, de apurar em atenção à sua capacidade
contributiva, a sua medida de oneração fiscal.
Até à reforma operada pelo Orçamento de Estado para 2003, não existia qualquer
dúvida de que como vimos, o pagamento especial por conta pago, com a
configuração que lhe era dada pela Lei n.° 30-G/ 2000 de 29 de Dezembro,
tinha-se transformado num verdadeiro e próprio imposto mínimo, dada a
impossibilidade de reembolso em caso de insuficiência de colecta, excepto em
situações de cessação de actividade. A verdade é que dada a sua baixa expressão
na contabilidade das empresas, o pagamento especial por conta encontrava-se
integrado no IRC, e era este que conferia legitimidade para a imposição do
pagamento especial por conta e não o contrário, sendo que quando constituía um
tributo não era contestado pela generalidade dos agentes económicos.
Ora, não temos hoje qualquer razão para sustentar entendimento diferente, pelo
que o actual regime do pagamento especial por conta continua a apresentá-lo como
um verdadeiro imposto sobre as vendas, e agora sobre os proveitos e ganhos.
Mais: com a actual configuração do pagamento especial por conta, quer no que diz
respeito à ampliação da sua base de incidência, quer no que diz respeito ao
aumento dos seus limites mínimo e máximo o método de cálculo do IRC passa a
definir-se como um conjunto de normas unicamente dirigidas à Administração
Tributária como segundo critério na cobrança de impostos sobre o rendimento das
pessoas colectivas. A utilidade das regras sobre tributação do lucro esgota-se
na questão de saber se a excepção se verifica, ou seja, se o pagamento especial
por conta foi insuficiente para cobrir uma outra colecta possível. Como segundo
critério na cobrança de impostos, o IRC passou apenas a ser uma forma de
legitimação da nova fórmula de tributação das empresas: a de um imposto
subsidiário sobre os proveitos e ganhos, pago em caso de insuficiência do lucro
tributável.
O pagamento especial por conta viola o princípio da tributação na medida da
capacidade contributiva, na sua função solidarista, ao não ter em linha de
conta—por ser calculado com a medida de uma taxa única sobre os proveitos (23) —
as diferenças económicas entre empresas, designadamente de que diferentes
sectores de actividade apresentam diferentes rácios de rentabilidade, e, por
conseguinte uma diferente capacidade para pagar imposto. Além disso, apresenta o
efeito perverso a que atrás se faz referência, de permitir às empresas que
apresentem volumes anuais de proveitos e ganhos superiores a € 20.000.000,00, de
apresentar inferiores rentabilidades dos proveitos e ganhos antes de impostos. É
do conhecimento geral, não apenas dos estudiosos das matérias económico
financeiras, que as vendas são um indicador que pode ser altamente falacioso
atenta a diversidade de actividades empresariais, uma vez que há negócios pouco
interessantes com elevadas rentabilidades de vendas mas com baixa rotação do
activo, podendo o inverso também ser verdadeiro. Quando ainda se acrescentam
outros proveitos e ganhos, sem distinção, ainda se agrava a sua iniquidade (24).
Viola ainda o princípio da capacidade contributiva na sua função garantística,
por duas vias: pois pagam em termos iguais os que podem e os que não podem
pagar, por não apresentarem rendimentos, sejam quais que não tenham forem os
seus proveitos — pois que sempre os terão ainda que não tenham lucro —, e ainda
por afastar arbitrariamente possibilidade de reembolso às empresas que sejam
susceptíveis de ser abrangidas pelo regime simplificado de tributação (25), o
que é incompreensível.
Finalmente e no âmbito do princípio da igualdade tributária, o pagamento
especial por conta viola outro seu corolário formal que é o princípio da
uniformidade na tributação, uma vez que a sua taxa é proporcional e não
progressiva (26), o que é indutor de maior desigualdade entre os contribuintes.
Como atrás se fez referência, caso se revele a insuficiência da colecta apurada
no ano a que se refere o pagamento especial por conta, o contribuinte pode
proceder à sua dedução até ao quarto exercício seguinte (27). Nesta
circunstância, o pagamento especial por conta perde a sua característica de
pagamento por conta passando a afirmar-se como uma entrega antecipada de imposto
de anos vindouros. Isto decorre aliás do disposto no artigo 33.° da Lei Geral
Tributária (28), que reforça esta ideia ao referir que os pagamentos por conta
do imposto devido a final são “entregas pecuniárias antecipadas que sejam
efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto tributário “.
E isto viola o princípio da capacidade contributiva, pois esta não é levada em
consideração — como aliás não poderia em qualquer caso sê-lo por tratar-se do
pagamento por conta — e na medida em que a capacidade contributiva de anos
vindouros não existe, por ser indeterminada e indeterminável (29).»
Diremos, por fim, que a violação do mencionado princípio constitucional da
capacidade contributiva resulta patente na seguinte circunstância (assinalada
pelo jornal Diário Económico, edição de 2 7-01-2006, a propósito da última
alteração introduzida no pagamento especial por conta, vista no sítio Web
daquele periódico, a saber, http://diarioeconomico.sapo.pt/
edicion/diario_economico/edicion_impresalimpostos/pt/desarrollo/
«Outra alteração importante a esta matéria tem ver com ofacto de, pela primeira
vez desde a criação do pagamento especial por conta em 1998, pelo Decreto-Lei
n.° 44/98, de 3 de Março, o Governo Português ter tomado uma posição em relação
ao pagamento especial por conta devido pelos sujeitos passivos que apenas
aufiram rendimentos isentos de JRC.
(...) com esta alteração fica claro que o pagamento especial por conta, que até
agora era entendido como um adiantamento por conta do imposto devido afinal,
também abrange os sujeitos passivos que tenham apenas rendimentos isentos de JRC
e que, de facto, podem não ter qualquer imposto devido afinal »
Ora, sendo as coisas assim e considerando que, de acordo com o disposto no n.° 3
do art.° 103.° da Constituição da República Portuguesa, «ninguém pode ser
obrigado apagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição,
que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos
termos da lei», impõe-se concluir que a decisão que aplicou a coima à Arguida
violou o nosso texto legislativo fundamental e por isso se não pode manter.
2. A representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e
Fiscal de Loulé interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), “restrito à questão de
inconstitucionalidade decidida na sentença, a qual recusou a aplicação da norma
contida no art.º 98.º n.º 1 do Código do IRC, aprovado pelo DL n.º 442-B/88 de
30/11, com a redacção introduzida pelo DL 198/2001 de 03/07, norma cuja
inconstitucionalidade se pretende que seja apreciada pelo Tribunal
Constitucional.”
Neste Tribunal, o Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo
concluído:
1º
A norma constante do n° 1 do artigo 98° do CIRC, enquanto vincula as empresas ao
pagamento especial por conta, aí previsto, aplicável no âmbito de um processo de
natureza contraordenacional – resultante da qualificação como contraordenação,
sendo sancionada com coima pela Administração Fiscal a omissão de tais
pagamentos, com fundamento nos artigos 114°, n° 2
e 5, alínea f), e 26°, n° 4, do RGIT – não viola qualquer preceito ou princípio
constitucional.
2°
Na verdade, o estabelecimento de uma presunção de estabilidade dos lucros
auferidos em anteriores exercícios – susceptível de oportuna ilisão pelo
contribuinte, quer no momento em que apresenta a respectiva declaração de
rendimentos, quer pela via da imediata formulação de um pedido de limitação dos
pagamentos por conta, quando já se mostre excedido o imposto devido com base na
matéria colectável do exercício – e a exigência de um pagamento parcelar
“antecipado”, durante a formação do facto tributário e com uma função de
garantia da prestação devida a final, não violam o princípio constitucional da
tributação do rendimento real das empresas, expresso no n° 2, do artigo 104° da
Constituição da República Portuguesa.
3°
Termos em que deverá proceder o presente recurso.
A., Ld.ª não apresentou contra-alegações.
Determinada a audição das partes para se pronunciarem sobre a questão da
“eventualidade de o Tribunal não poder tomar conhecimento do objecto do recurso,
com fundamento na inexistência, in casu, de uma decisão judicial que - nos
termos, desde logo, do artigo 280º, nº 1, alínea a) da Constituição - recuse
(nem sequer implicitamente) a aplicação da norma identificada pelo recorrente
como constituindo o objecto do recurso”, o representante do Ministério Público
junto deste Tribunal veio dizer o seguinte:
1º
Embora os termos em que se mostra lavrada a decisão recorrida se configurem como
peculiares quanto à forma de fundamentação (por mera adesão a diversas opiniões
ou artigos doutrinários), considerou-se que dela resultará, em termos bastantes,
uma recusa de aplicação da norma constante do preceito legal especificado pelo
Ministério Público.
2°
Na verdade, tal decisão:
– começa por concordar inteiramente com a interpretação que a Administração
Fiscal fez da norma do artigo 98°, n° 1, do CIRC;
– de seguida, objecta, em contraponto a tal entendimento, com o princípio
constitucional constante do artigo 104°, n° 2, da Constituição da República
Portuguesa, enquanto estabelece que “a tributação das empresas incide
fundamentalmente sobre o seu rendimento real” (p. 127);
– e passa a sustentar em vários opiniões e artigos a tese de que o regime
legal em vigor quanto ao pagamento especial por conta seria “de discutível
constitucionalidade” ou violaria mesmo o referido princípio da capacidade
contributiva (p. 127/131);
– parecendo concluir que o dito regime legal estaria em colisão com “o
disposto no n° 3 do artigo 103° da Constituição da República Portuguesa (p.
132).
3º
Ou seja: uma interpretação adequada dos termos da decisão recorrida, parece
ter‑se entendido que o regime plasmado na norma objecto de recurso violaria os
princípios da legalidade fiscal e da capacidade contributiva, embora se
expresse, na parte final, em termos pouco precisos, ao concluir que a “decisão”
que aplicou a coima teria violado “o nosso texto legislativo fundamental”.
4º
Tratando-se, porém, de recurso fundado na alínea a) do n° 1 do artigo 70°, a
circunstância de o juiz imputar a inconstitucionalidade a uma decisão
administrativa não precludirá o objecto “normativo” do recurso, se do teor da
decisão recorrida, devidamente interpretada, se puder identificar, ainda que em
termos implícitos, qual é a “norma” cuja aplicação é, em termos substanciais,
recusada.
5º
Estas as razões que nos levaram a tomar a posição sobre o mérito da questão, na
alegação apresentada.
Cumpre decidir.
II
Fundamentos
3. Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que
admitiu o recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), nem sendo exacto que, após a
apresentação de alegações, fique precludida a possibilidade de não se conhecer
do objecto do mesmo, verifica-se que o Tribunal Constitucional não pode conhecer
do objecto do presente recurso.
Como se sabe, constitui pressuposto processual de um recurso interposto ao
abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal
Constitucional a existência de recusa, pelo tribunal recorrido, de aplicação de
uma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Ora, analisando a fundamentação da decisão recorrida, não decorre dela, nem
sequer de forma implícita, qualquer recusa de aplicação da norma identificada
pelo recorrente como constituindo o objecto do recurso, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, porquanto dela não decorre um qualquer juízo de
inconstitucionalidade sobre essa norma.
Antes resulta da supra transcrita fundamentação que a sentença
recorrida, assentando num juízo de inconstitucionalidade da própria decisão que
aplicou a coima, face ao disposto no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da
República Portuguesa, imputa a inconstitucionalidade directamente à decisão
administrativa.
Não se verificam, pois, os pressupostos processuais do recurso de
constitucionalidade interposto, não podendo este Tribunal conhecer do respectivo
objecto.
De idêntico modo, decidiu o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173/2008,
tirado em Plenário (disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt), em recurso substancialmente idêntico ao
presente, proveniente do mesmo tribunal.
III
Decisão
Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do presente recurso
de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 30 de Abril de 2008
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão