Imprimir acórdão
Processo n.º 324/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa,
A. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da
Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
do despacho daquele Tribunal, de 21.02.2008, que indeferiu o seu requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Para tanto, invoca o seguinte:
«[…] II - Convite à indicação dos elementos em falta.
Inicia, o douto Despacho reclamado, por invocar a omissão de invocação dos casos
previstos nas várias alíneas do art.° 70.°, n°. 1, da LTC “(...) O recorrente
não invoca nenhum dos casos previstos nas várias alíneas desse preceito para que
o recurso seja admissível...” (vd. fls. 238 - verso), olvidando que, a omissão
de algum dos elementos previstos no normativo, não fundamenta automaticamente o
indeferimento da pretensão; bem pelo contrário, a omissão poderá ser suprida,
mediante convite ao Requerente nesse sentido “(...) 5 - Se o requerimento de
interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente
artigo, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de dez
dias” (vd. n.º 5, do art.° 75.º - A, da LTC)
III — Da inopinidade.
A Constituição elegeu como objecto da fiscalização de constitucionalidade (cfr.
artigos 277.° a 282.°) apenas as normas jurídicas e não já as próprias decisões
judiciais.
Ao Tribunal Constitucional cabe sindicar, tão-somente, se determinada norma -
que haja sido aplicada ou desaplicada na decisão sob recurso, em termos de gerar
uma questão de constitucionalidade - beneficia ou não de legitimidade
constitucional.
Como a este respeito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª, Edª, p. 1016, “o recurso de
constitucionalidade não tem por objecto a decisão judicial em si mesma, mas
apenas na parte em que ela não aplicou uma norma por motivo de
inconstitucionalidade ou aplicou uma norma alegadamente inconstitucional.
Consequentemente, não são questões de constitucionalidade, por exemplo, a
apreciação de erros de julgamento ou a errada qualificação de matéria de facto
(cfr Ac. TC n.° 353/86 e 45/88). O objecto do recurso não é própria decisão
judicial, por ela supostamente ser ou não inconstitucional, mas apenas a parte
dela em que considerou inconstitucional (ou não) uma determinada norma aplicável
à causa em apreciação no tribunal”.
E no âmbito de cognição do Tribunal Constitucional, no domínio dos processos de
fiscalização concreta, apenas cabe decidir sobre a eventual
inconstitucionalidade das normas que os outros tribunais apliquem ou cuja
aplicação recusem com fundamento em inconstitucionalidade e não já de quaisquer
outras matérias, substantivas ou processuais, que não revistam a específica
natureza de questões de constitucionalidade.
Como, já se observou, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões
dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo.
Vem, este Tribunal entendendo, em jurisprudência uniforme, que o pressuposto de
admissibilidade deste tipo de recurso relativamente ao exacto significado da
locução “durante o processo” utilizada nas normas pertinentes dos artigos 280.°,
da Constituição, e 70.º da Lei n.º 28/82, deve ser tomado não num sentido
puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à
extinção da instância), mas num sentido funcional, tal que essa invocação haverá
de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da
questão, ou seja, a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de
esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que aquela questão
respeita.
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação
da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional “não
constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna
esta obscura ou ambígua”, há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de
uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio,
meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade (cfr.
sobre este terna, por todos, os Acórdãos n.ºs 62/65 e 94/88, Diário da
República, II série, de, respectivamente, 31 de Maio de 1985 e 22 de Agosto de
1988).
Todavia, a orientação geral, assim definida, não será de aplicar em determinadas
situações excepcionais em que os interessados não dispõem de oportunidade
processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes do
proferimento da decisão, caso em que lhes deverá ser salvaguardado o direito ao
recurso de constitucionalidade.
Na verdade, este Tribunal tem vindo a entender, num plano conformador da sua
jurisprudência, que naqueles casos anómalos em que o recorrente não disponha de
oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade durante
o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal da causa
sobre a matéria a decidir, ainda assim existira o direito ao recurso de
constitucionalidade que poderá ser exercido independentemente daquela suscitação
(cfr. os Acórdãos n.ºs 136/85 e 61/92, Diário da República, II série, de,
respectivamente, 28 de Janeiro de 1986 e 18 de Agosto de 1992, e o Acórdão n.°
479/89, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 389, pp. 222 e ss.).
Na situação sub judice, a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo
127.º, do Código de Processo Penal, só agora pode ser suscitada (no requerimento
de recurso para o Tribunal Constitucional), porquanto, o recorrente, em acto
anterior à notificação da decisão recorrida, jamais havia sido confrontado com a
utilização deste normativo, não podendo assim, em momento anterior, suscitar a
sua inconstitucionalidade, nem lhe sendo, tão pouco, exigível um qualquer juízo
prévio de prognose relativo à sua aplicação, em termos de se antecipar ao
proferimento do acórdão, levantado logo a questão da inconstitucionalidade.
Há-de assim concluir-se, que a falta de oportunidade processual para o
recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 127.º,
do Código de Processo Penal, antes do proferimento da decisão recorrida, bem
como a inexistência de um qualquer ónus de avaliação antecipado - aqui
seguramente inexistente, dado o teor do preceito em causa e a própria natureza
das coisas - conduzem à dispensa daquele pressuposto de admissibilidade do
recurso (suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade), não existindo,
em consequência, obstáculo ao conhecimento do seu objecto.
Nestes termos, deverá ser julgada procedente a presente reclamação e,
consequentemente, ser revogado o despacho reclamado, substituindo-se por outro
que determine a admissibilidade do aludido recurso.»
2. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional emitiu
parecer, nos termos seguintes:
«A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.
Na verdade – tendo omitido no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade todos os elementos que o mesmo deveria conter – cabia ao
reclamante o ónus de, na presente reclamação, proceder à identificação cabal do
objecto do recurso, indicando as normas ou interpretações normativas que
pretendia sindicar.
Tal ónus não se mostra minimamente cumprido, já que o reclamante não identifica,
em termos inteligíveis, qual a dimensão normativa do art.º 127.º do CPP que
considerava aplicada pelo acórdão recorrido e tinha por constitucional – sendo,
por outro lado, desprovido de sentido afirmar que se não podia razoavelmente
contar com aplicação do principio, ali consignado, na apreciação da matéria de
facto pelas instâncias.»
3. Com relevância para a presente decisão resulta dos autos o seguinte:
− Por sentença da 3ª Secção do 4.º Juízo Criminal de Lisboa, A. foi condenado,
pela prática de um crime de roubo, p.p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código
Penal, na pena de um ano de prisão, cuja execução fica suspensa pelo período de
três anos.
− Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por
acórdão de 15.01.2008, rejeitou o recurso.
− Ainda inconformado, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional nos
seguintes termos:
«[…] não se conformando com o douto Acórdão, proferido no dia 15 de Janeiro de
2008, e consubstanciado de fls…(omisso), do mesmo vem, nos termos dos arts.
75.º-A, 75.º, n.º 1, e 72.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, […] interpor,
mediante o presente requerimento, recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do artigo 70.º, da mencionada Lei. […]»
− Por despacho do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.02.2008, o recurso não
foi admitido, com fundamento, em síntese, no facto de o ora reclamante não
invocar nenhum dos casos previstos nas várias alíneas do artigo 70.º, n.º 1, da
LTC, para que o recurso fosse admissível, nem tal situação ocorrer,
nomeadamente, por não verificação do requisito de suscitação da questão de
constitucionalidade no decurso do processo.
− É deste despacho que vem interposta a presente reclamação.
4. Em síntese, o reclamante invoca que sendo o requerimento de interposição do
recurso omisso quanto a alguns dos elementos previstos no n.º 1 do artigo 70.º
da LTC, o tribunal a quo devia tê-lo convidado a aperfeiçoar o requerimento, em
vez de não admitir o recurso. Mais invoca que apenas pôde suscitar a
inconstitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal no próprio
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, por não ter tido
“oportunidade processual” de o fazer antes, uma vez que só com a notificação da
decisão de que pretende recorrer foi confrontado com a aplicação daquele
preceito.
É manifesta a falta de razão do reclamante.
O seu requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não é
apenas omisso quanto à indicação de algum dos elementos previstos no artigo
75.º-A da LTC, por forma a permitir o convite ao aperfeiçoamento previsto no n.º
5 do mesmo preceito; antes se revela totalmente inepto, por se limitar a afirmar
que, através daquele requerimento, se vem interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º da LTC.
Ou seja, o reclamante incumpriu, de forma insuprível, o ónus que lhe cabia de
identificar o objecto do recurso que, aliás, continua a não identificar na
presente reclamação, onde nada esclarece sobre qual a questão de
constitucionalidade que pretende ver apreciada, nem sobre qual o tipo de recurso
que pretende interpor (por referência à respectiva alínea do n.º 1 do artigo
70.º da LTC), o que, além do mais, impossibilita a verificação dos pressupostos
de admissão do recurso.
5. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o
recurso de constitucionalidade.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 30 de Abril de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos