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Processo nº 546/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Sindicato Nacional
dos Quadros Técnicos e Bancários, o primeiro interpôs recurso do acórdão do
Tribunal da Relação do Porto, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
LTC, com fundamento na inconstitucionalidade da dimensão interpretativa das
normas do artigo 170°, n° 1, do Código de Processo do Trabalho, e do artigo
288°, nº 3, do Código de Processo Civil, por ele aplicadas em violação do
disposto “no artigo 20°, n.ºs 1 e 4, da Constituição (direito de tutela
efectiva, acesso à justiça e aos tribunais, e mediante processo equitativo)”.
2. Notificado para alegar, o recorrente apresentou as seguintes
conclusões:
“1ª) No acórdão a quo foi interpretado o disposto no art. 170º nº 1 do CPT no
sentido de que o direito de impugnação judicial nele estabelecido só se verifica
— ou a decisão nele referida só é impugnável judicialmente — após ter sido
confirmada por via de recurso, nos termos do art. 47° do Estatutos do Réu. Dito
de outro modo, a interpretação dada ao preceito no sentido de que a decisão nele
referida só pode ser aquela que resulte confirmada se e quando o órgão dito
hierárquico, conforme aquela regra dos Estatutos, assim o entender.
2ª) Tal recurso, contudo, não se configura em si mesmo como obrigatório, não
estabelece efeito suspensivo para a execução da decisão impugnada, não tem prazo
para ser interposto, nem apresenta prazo para ser proferida a respectiva decisão
— o que tudo determina a efectiva possibilidade de estar totalmente cumprida a
decisão disciplinar assim atacada, antes de existir decisão judicialmente
impugnável (no sentido que o acórdão recorrido deu ao art. 170° nº 1 do CPT).
3ª) Na pretensão de tutela jurisdicional do A., negada pela interpretação que a
1ª instância e a Relação expressaram quanto à dimensão restritiva do art. 170°
nº 1 do CPT, estavam em causa, isto é, solicitava-se a defesa judicial para os
direitos fundamentais de ser e manter-se membro de sindicato, e o direito à
segurança social — conforme arts. 55º nºs 1 e 2 al. b), e 63° nºs 1 e 2 da CRP.
4ª) Ora aquela interpretação do art. 170º nº 1 do CPT viola o disposto no art.
20° nºs 1, 4 e 5 da CRP, enquanto preceitos de onde se retira o direito de
acesso à tutela jurisdicional, em procedimento equitativo, sem desproporcionados
entraves ou obstáculos de ordem processual, e de modo temporalmente adequado à
defesa de direitos fundamentais.
5ª) Acresce ainda que, num segundo momento decisório, o acórdão recorrido
interpreta o art. 170° nº 1 do CPT, combinado com o disposto no art. 288° nº 3 e
art. 663° nº 1 (este ex vi arts. 672° nº 1 e 713° nº 2 do CPC), no sentido de
que o direito naquele conferido já não pode ser utilizado, com vista a uma
decisão de mérito, mesmo que se mostre sanado o pressuposto processual dito como
previamente exigível, e verificável a necessidade de tutela jurisdicional (dada
a manutenção da decisão disciplinar, pela “sentença” dada no recurso do art. 47°
dos Estatutos da R.).
6ª) Ou, por outras palavras, deve entender-se que o acórdão recorrido interpreta
os preceitos acabados de referir no sentido de que a falta do requisito não pode
ser sanada na pendência da acção prevista no dito art. 170° nº 1 do CPT.
7ª) Ora, ambos estes sentidos normativos, retirados daqueles preceitos, são
violadores, isto é, são proibidos — face ao disposto em art. 204° da CRP —
perante a constitucionalização do direito de acesso à tutela jurisdicional e a
uma decisão com efectiva prevalência da apreciação do fundo e mérito da causa,
como art. 20° nºs 1, 4 e 5 da CRP consagram, de modo a impedir que sob a capa de
decisão formal se efectue denegação de justiça — como o A. não tem dúvida em
assacar à concepção normativa seguida no acórdão em causa.
3. O recorrido contra-alegou concluindo que “não houve qualquer denegação da
justiça, nem foram postos em causa dos direitos do Recorrente” e que não se
verificou qualquer interpretação inconstitucional das normas aplicadas nos
presentes autos.
4. Durante a fase de exame preliminar à prolação do presente acórdão, a Relatora
detectou fundamentos passíveis de conduzir ao não conhecimento parcial do
objecto do recurso, pelo que proferiu o seguinte despacho, em 16 de Janeiro de
2008:
“Nos termos do artigo 704º CPC, aplicável «ex vi» artigo 69º LTC, notifique-se o
recorrente para, no prazo de dez dias, se pronunciar sobre a possibilidade de
não conhecimento do recurso quanto às interpretações normativas invocadas nos
pontos 6 e 7 do requerimento de recurso (fls. 822), por não terem sido aplicadas
pela decisão recorrida ou por não terem sido invocadas de modo processualmente
adequado.” (fls. 936)
Na sequência deste despacho, o recorrente pronunciou-se nestes
termos:
“1. A resposta colocada pelo despacho a que ora se responde suscita as seguintes
observações prévias:
a) Em primeiro lugar, o Tribunal a quo está sujeito a regras de ofício, cujo
cumprimento lhe é imposto, sem que a sua não expressa invocação de aplicação,
pelo interessado, acarrete qualquer consequência a este - é o que, assim, se
dispõe, p. ex., no art. 664° do CPC, mas também no art. 663° nº 1, no caso,
aplicável ex vi arts. 762° e 713° nº 2 daquela lei procedimental;
b) Em segundo lugar, “colocar uma questão” em sentido inteligente, ou como se
diz, “para bom entendedor”, significa apresentar um facto - nu e cru, digamos —,
e uma pretensão, tal que, a sua relevância jurídica, mesmo não invocada mas
forçosamente apreciada por causa da obrigatoriedade oficiosa acima referida,
determine a interpretação/aplicação, bem ou mal, expressa, ou não, do respectivo
normativo legal pertinente.
2. Posto isto, o ónus procedimental para o presente recurso, sob pena de
violação do direito ao recurso ao TC - quando não existe na nossa Ordem Jurídica
o “recurso de amparo” — não pode ser interpretado em termos tão retoricamente
ritualistas, tal que se exija, quase, ou na prática, a obrigação de uso de um
expresso formulário, ipsis verbis igual na instância e neste TC. Supõe-se.
3. Neste sentido, é certo que a matéria em apreço surge nos autos em três
momentos:
a) Na própria alegação de agravo;
b) Na parte final da resposta ao parecer do M°P°, já no Tribunal da Relação;
c) Ainda no requerimento em que se arguiu a nulidade do acórdão por omissão de
pronúncia.
Com efeito, em todas estas peças se arguiu que a decisão de absolvição do R. se
baseava num sentido do art. 170º nº 1 do Cod. Proc. Trabalho violador do direito
de acesso à Justiça material, de corrente de art. 20° nºs l e 4 da CRP.
4. Ora, uma mais minuciosa explicitação desta matéria - e, no fundo, dos
requisitos de admissibilidade do recurso, em toda a sua amplitude - surge na
própria alegação, nos seus nºs 1 a 8, como que introdutórios da alegação, e
justificantes do recurso, para os quais se remete e aqui dá por integrados.
Assim, como ali se expõe, não se vislumbram razões de forma ou de fundo que,
decisivamente, impeçam a apreciação do mérito do recurso, e em toda a sua
extensão.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Não conhecimento parcial do objecto do recurso
5. A título preliminar, para efeitos de clarificação do objecto do presente
recurso, cumpre notar que o recorrente não pretende ver apreciada apenas uma
interpretação da norma extraída do n.º 1 do artigo 170º do CPT e do n.º 3 do
artigo 288º do CPC, mas antes três interpretações normativas distintas, a saber:
- Da norma extraída do artigo 170º, n.º 1, do CPT, conjugado com o artigo 288º,
n.º 3, do CPC, interpretada “no sentido de que, a decisão disciplinar só é
impugnável judicialmente se e após o Autor esgotar o recurso interno do art. 47º
dos Estatutos do R. Sindicato” (fls. 821);
- Da norma extraída do artigo 170º, n.º 1, do CPT, conjugado com o artigo 288º,
n.º 3, do CPC, interpretada “no sentido e com a dimensão normativa segundo a
qual, o direito de impugnação judicial não existe sem que estejam previamente
esgotadas as vias internas de recurso, mesmo que esteja executada a decisão,
constituindo tal recurso uma excepção dilatória insanável, ainda que ele se
verifique antes da decisão do mérito da causa” (fls. 822);
- Da norma extraída do artigo 170º, n.º 1, do CPT, conjugado com o artigo 288º,
n.º 3, do CPC, interpretada “no sentido de que, o seu teor normativo, decorrente
dos direitos à tutela da justiça a uma decisão efectiva e a processo equitativo,
se bastam com uma mera decisão de forma, ainda que já se mostre esgotado o
recurso «hierárquico» interno e exercitável o direito da sua impugnação” (fls.
822).
5.1. Quanto à segunda interpretação normativa, relativa à impossibilidade de
sanação da excepção dilatória inominada (v.g., a falta de esgotamento de
recursos internos para contestação da sanção disciplinar), é notório que o
tribunal “a quo” não aplicou expressamente a referida interpretação normativa,
nem sequer fez alusão ao n.º 3 do artigo 288º do CPC, no acórdão proferido em 30
de Outubro de 2006. Note-se ainda que o próprio acórdão que conheceu da arguição
de nulidade daqueloutro (fls. 807 e 808) não decidiu qualquer questão relativa à
segunda interpretação normativa que o recorrente apelida de inconstitucional,
pelo que se conclui que a mesma não foi efectivamente aplicada.
Sucede, porém, que ainda que tal constituísse omissão de pronúncia – conforme
defendido pelo recorrente, em sede de arguição de nulidade do acórdão, que foi
rejeitada e que este Tribunal não pode alterar – certo é que o recorrente nunca
suscitou a inconstitucionalidade da segunda interpretação normativa, de modo
processualmente adequado.
É verdade que o recorrente fez uma menção, “ad latere”, ao artigo 288º do CPC,
em sede de alegações (cfr. fls. 682 e § 6º das conclusões, a fls. 686), sem que,
contudo, individualizasse a norma constante do n.º 3 do mesmo preceito legal ou,
muito menos, colocasse qualquer questão de inconstitucionalidade relativa à
mesma. Contudo, em sede de resposta ao parecer do Ministério Público, torna-se
evidente que o recorrente apenas contrariou o referido parecer, alegando que uma
decisão que não permitisse a sanação da excepção dilatória inominada contraria o
disposto no n.º 2 do artigo 265º e no n.º 3 do artigo 288º do CPC, nunca tendo
alegado uma contradição entre uma interpretação concreta destas normas e
qualquer norma ou princípio constitucional. Em suma, em sede de resposta ao
parecer do Ministério Público, o ora recorrente apenas invocou uma situação de
violação de lei processual e não uma violação de qualquer norma ou princípio
vertido na Lei Fundamental.
Perante a ausência de tal suscitação processualmente adequada da questão da
inconstitucionalidade da segunda interpretação normativa, justifica-se que nem a
decisão recorrida (v.g., o acórdão proferido em 30 de Outubro de 2006), nem o
acórdão sobre a arguição de nulidade que a complementou (v.g., o acórdão
proferido em 11 de Dezembro de 2006) tenham dela conhecido, numa perspectiva
estritamente jus-constitucional.
5.2. Por outro lado, através do ataque processual a uma pretensa terceira
interpretação normativa dos artigos 170º, n.º 1, do CPT e 288º, n.º 3, do CPC, o
recorrente visa apenas manifestar a sua discordância sobre o mérito da decisão
recorrida, apelidando-a de “mera decisão de forma”. Contudo, percorrida a
decisão recorrida não se detecta uma só passagem através da qual o tribunal “a
quo” tivesse interpretado aquelas normas no sentido de que fosse bastante a
prolação de uma “mera decisão de forma” (conceito, aliás, não precisado pelo
recorrente, nem acolhido pela lei processual laboral).
Assim, não tendo sido efectivamente aplicada aquela dimensão normativa, não pode
o Tribunal dela conhecer.
Acresce ainda que, tendo sido interposto recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70º da LTC, o recorrente teria que ter suscitado previamente a
inconstitucionalidade daquela precisa interpretação normativa, nos termos do n.º
2 do artigo 72º da LTC. Ora, percorridas as alegações de recurso e a resposta ao
Ministério Público, constata-se que o recorrente nunca colocou em causa a
inconstitucionalidade daquela precisa interpretação normativa.
Com efeito, nada na decisão recorrida aponta no sentido de que a sua ratio
decidendi se tenha fundamentado numa interpretação dos preceitos mencionados no
sentido aqui indicado pelo recorrente. Ora, de acordo com a jurisprudência firme
e consolidada deste Tribunal, não se pode conhecer de recursos sobre uma alegada
inconstitucionalidade de uma norma ou de uma interpretação normativa que não
haja sido alvo de uma aplicação efectiva pela decisão recorrida (a mero título
de exemplo, vejam-se os Acórdãos n.º 168/2007, de 08 de Março de 2007,
disponível in www.tribunalconstitucional.pt e n.º 366/96, de 06 de Março de
1996, disponível in «Diário da República», IIª Série, n.º 109, de 10 de Maio de
1996).
Em conclusão, não é possível conhecer das segunda e terceira interpretações
normativas, quer porque não foram efectivamente aplicadas, quer porque o
recorrente não suscitou tais questões de modo processualmente adequado.
B) A questão de (in)constitucionalidade
6. A questão de constitucionalidade que vai ser tratada é a de saber se uma
interpretação do artigo 170º, n° 1, do Código de Processo de Trabalho e do
artigo 288°, nº 3, do Código de Processo Civil, no sentido de que a decisão
disciplinar só é impugnável judicialmente se, e após, o Autor ter esgotado um
recurso interno previsto num preceito (in casu, o artigo 47°) dos Estatutos de
um Sindicato é constitucionalmente admissível, tendo em conta o direito à
justiça efectiva e de acesso aos tribunais, mediante processo justo e
equitativo, densificados no artigo 20°, n°s 1 e 4, da CRP.
Como questões prévias à boa decisão da causa, deve precisar-se o seguinte:
1º) Apesar de a norma em crise resultar de uma interpretação conjugada do artigo
170º do Código de Processo do Trabalho, aprovado por Decreto-lei, com o artigo
47º dos Estatutos do Sindicato, o objecto da fiscalização da
constitucionalidade, tal como o definiu o recorrente, é apenas a interpretação
das normas do Código de Processo de Trabalho – o artigo 170º, nº 1 – e do Código
de Processo de Civil – o artigo 288º, nº 3 – no sentido acima mencionado e não
qualquer interpretação da norma constante dos Estatutos do Sindicato.
2º) Apesar de uma grande parte das alegações do recorrente (11 páginas)
incidirem sobre o “sentido do Direito Ordinário”, bem como sobre as “erradas
pré-compreensões jurídicas da decisão recorrida” (sic), estas questões
extravasam dos poderes de cognição deste Tribunal, uma vez que ele apenas está
constitucionalmente encarregue da garantia da aplicação do Direito em sentido
conforme às normas e preceitos constitucionais. Em consequência, a aplicação
estrita do Direito infra-constitucional compete aos tribunais comuns e não ao
Tribunal Constitucional.
Assim sendo, não compete a este Tribunal pronunciar-se sobre a questão de saber
se a ausência de recurso interno para o Conselho Geral do Sindicato constitui ou
não uma excepção dilatória insanável, mesmo que ele se verifique antes da
decisão do mérito da causa, mas tão-somente apreciar se a consideração de tal
recurso como uma excepção dilatória insanável é contrária à Constituição,
designadamente, ao direito de acesso à justiça, aos tribunais e ao processo
equitativo.
7. O Tribunal Constitucional já teve ocasião de afirmar que “o direito de acesso
aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção
jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo
abrange nomeadamente: (a) o direito de acção no sentido do direito subjectivo
de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o
direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação
daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se
pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial
sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro
dos prazos pré‑estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei,
dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d)
o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da
sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela
falta de medidas de defesa expeditas” (Ver, por exemplo, Acórdão nº 363/2004, de
19 de Maio, disponível em http://www.tribconstitucional.pt).
Porém, a plenitude do direito de acesso aos tribunais não é necessariamente
posta em causa pela imposição às partes, antes do início de um processo
jurisdicional, de uma tentativa de conciliação extra-judicial (Acórdão nº
491/97, de 2 de Julho, disponível em http://www.tribconstitucional.pt) nem pelo
estabelecimento de prazos legais de caducidade para a propositura da acção, a
menos que estes prazos sejam desadequados ou desproporcionados, inviabilizando
ou dificultando excessivamente a propositura da acção (Acórdão nº 299/95, de 7
de Junho, disponível em http://www.tribconstitucional.pt).
Além disso, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva,
apesar de se encontrar sistematicamente na Parte I referente a direitos e
deveres fundamentais, deve ser entendido como uma norma-princípio estruturante
do Estado de Direito democrático (JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, Coimbra, 2007, p. 409).
Acresce ainda que o direito de acesso ao direito e aos tribunais se deve
configurar como um direito de agir com eficácia imediata, que permite a sua
concretização minimamente adequada a partir da própria Constituição, pelo que
deve ser qualificado como um direito fundamental de natureza análoga a direitos,
liberdades e garantias, aplicando-se-lhe, pois, nos termos do artigo 17º da CRP,
o mesmo regime jurídico (neste sentido, JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p.
144).
Assim sendo, no caso de regimes jurídicos de excepção à plenitude do direito de
acesso aos tribunais, ou, dito de outro modo, no caso de restrições, elas terão
de respeitar os limites constitucionais impostos, designadamente, pelo artigo
18º da CRP. Mas tal pressupõe, naturalmente, a existência de uma restrição.
8. Vejamos então se, no caso em apreço, estamos perante uma restrição ao
conteúdo do direito de acesso à justiça, ou se, pelo contrário, estamos perante
um limite ao exercício do direito que se traduz num mero condicionamento.
A distinção entre a restrição de um direito e as suas figuras afins revela-se
controversa tanto nos seus contornos teóricos como na sua aplicação prática (na
doutrina portuguesa, v., entre outros, JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, Tomo IV, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 328 e segs;
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 2 ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, p. 275 e segs; JORGE REIS
NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas
pela Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 155 e segs).
Parafraseando este último Autor, “entendemos por restrição a acção ou omissão
estatal que afecta desvantajosamente o conteúdo de um direito fundamental, seja
porque se eliminam, reduzem ou dificultam as vias de acesso ao bem nele
protegido e as possibilidades da sua fruição por parte dos titulares reais ou
potenciais do direito fundamental seja porque se enfraquecem os deveres e
obrigações, em sentido lato, que da necessidade da sua garantia e promoção
resultam para o Estado” (in JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos
Fundamentais, cit., p. 157).
Para o mesmo Autor, “(…) A regulamentação do exercício de um direito fundamental
( …) [é] a regulação dos pormenores práticos do exercício de um direito em ordem
a facilitar ou adequar a sua efectivação nas condições complexas das relações da
vida (…). (Ibidem, p. 177).
Na lição de JORGE MIRANDA, enquanto “a restrição tem que ver com o direito em
si, com a sua extensão objectiva; o limite ao exercício de direitos, com a sua
manifestação, com o modo de se exteriorizar através da prática do seu titular (
… )
O limite pode desembocar ou traduzir-se qualitativamente em condicionamento, ou
seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de
algum direito, como a prescrição de um prazo (para o seu exercício) (…)” (in
JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 329)
Este Tribunal tem entendido que a fixação de prazos de caducidade do exercício
de um direito fundamental não constitui, por si só, uma “restrição”, apenas
condicionando o gozo do direito, mediante regulamentação do respectivo
exercício, sem que tal diminua as faculdades que o integram (neste sentido, ver,
entre outros, Acórdãos n.º 247/02, de 4 de Junho, e n.º 467/03, de 14 de Outubro
de 2003, todos disponíveis in
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Assim, no Acórdão n.º 247/02:
“[...] Só as normas restritivas dos direitos fundamentais (normas que encurtam o
seu conteúdo e alcance) e não meramente condicionadoras (as que se limitam a
definir pressupostos ou condições do seu exercício) têm que responder ao
conjunto de exigências e cautelas consignado no artigo 18º, nºs 2 e 3 da Lei
Fundamental (cfr. acórdão n.º 413/89, publicado no Diário da República, II
Série, de 15 de Setembro de 1989).
Mas, não basta que o referido prazo se não apresente prima facie como uma
restrição ao direito, e tão-só como uma sua regulamentação ou condicionamento,
para que daqui se conclua pela não inconstitucionalidade da norma, ao fixar esse
prazo.
Importante é que não redunde efectivamente numa restrição, ou seja, tal prazo
também não se mostre desadequado e desproporcionado, ou, como se referiu no já
aludido acórdão n.º 70/00, torna-se necessário ver as coisas de um ponto de
vista material ou substantivo.
A violação só existirá se o prazo, por desadequado e desproporcionado,
dificultasse gravemente o exercício concreto do direito, uma vez que, em tal
caso, estar-se-ia perante uma restrição a esse direito e não em face de um
simples condicionamento ao exercício do mesmo. [...]”.
9. Partindo deste entendimento, que ora se perfilha e reitera, importa verificar
se a interpretação normativa que vem reputada de inconstitucional, a qual
entendeu que a impugnação, por parte do associado de um sindicato, de decisão
disciplinar perante os tribunais laborais apenas é admissível quando se
encontrem esgotados os recursos internos previstos no estatutos da referida
associação sindical, se afigura como uma verdadeira “restrição” do direito de
acesso à Justiça ou antes como um mero “condicionamento” desse direito.
O n.º 1 do artigo 170º do CPT, inserido no Capítulo III daquele Código,
subordinado à epígrafe “Processo do contencioso das instituições de previdência,
abono de família e associações sindicais”, dispõe o seguinte:
“1 – O arguido em processo disciplinar que pretenda impugnar a respectiva
decisão deve apresentar no tribunal o seu requerimento no prazo de 15 dias,
contados da notificação da decisão.”
Daqui decorre que aquela norma contém – efectiva e incontroversamente – um
verdadeiro condicionamento expresso do direito fundamental de acesso à Justiça.
Ou seja, a fixação de um prazo de 15 dias a contar da decisão que condena o
arguido por acto gerador de responsabilidade disciplinar. Sucede, porém, que a
constitucionalidade de tal condicionamento expresso não veio posta em crise,
tendo antes a decisão recorrida entendido que aquela norma pode ser interpretada
no sentido de admitir um condicionamento implícito que decorra de norma
estatutária – mas não legislativa – de uma associação sindical.
A título meramente informativo, refira-se que o referido artigo 47º (actual
artigo 51º) dos Estatutos do Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos
Bancários, originariamente publicado no «Diário da República», IIIª Série, n.º
11, de 13 de Janeiro de 2004 (e actualmente vigente com a redacção publicada no
«Boletim de Trabalho e Emprego», Iª Série, n.º 24, de 29 de Junho de 2006),
dispõe o seguinte:
“O poder disciplinar é normalmente exercido pela Direcção, sob proposta do
Conselho de Disciplina, cabendo recurso das suas decisões para o Conselho
Geral.”
Como já se disse supra, não se curará nestes autos de apreciar qualquer questão
relativa a eventual inconstitucionalidade de norma estatutária de associação
sindical, e como tal de fonte jurídico-privada.
A circunstância de o referido processo de impugnação correr perante os tribunais
laborais também não deve confundir o intérprete. É que, no caso em apreço nos
presentes autos, o procedimento disciplinar instaurado não opera na pura relação
trabalhador/empregador – antes tendo sido instaurado pelos corpos directivos de
uma associação sindical contra um outro associado desse mesmo sindicato.
Porventura, outros problemas se levantariam se estivesse em causa saber se uma
decisão disciplinar tomada por entidade empregadora contra trabalhador carecia
de ter sido definitivamente decidida por aquela para que fosse admissível a
respectiva impugnação jurisdicional.
Estando em causa procedimento disciplinar movido por órgãos directivos de uma
associação – neste caso, de natureza sindical – contra um dos seus associados,
parece poder estabelecer-se um certo paralelismo com o regime aplicável à
impugnação de sanções disciplinares a associados de partidos políticos. Nesses
casos, é o próprio n.º 3 do artigo 103º-C da LTC, aplicável “ex vi” n.º 3 do
artigo 103º-D da LTC, que condiciona a impugnação de tais sanções disciplinares
perante o Tribunal Constitucional ao prévio esgotamento de “todos os meios
internos previstos nos estatutos”.
E este Tribunal já teve ocasião de não conhecer de tais pedidos de impugnação
“por não terem sido esgotados todos os meios internos de impugnação previstos
nos estatutos para apreciação da validade e regularidade da decisão punitiva,
como exige o artigo 103º-C, aplicável por força do disposto no artigo 103º-D nº
3 da Lei do Tribunal Constitucional.” (Acórdão nº 361/02, de 21/8/02, reiterado
no Acórdão 421/02, de 15/10/2002, ambos disponíveis em
http://www.tribconstitucional.pt).
Ora, se, tal como os partidos políticos, as associações sindicais são
qualificáveis como associações de natureza privada que assumem uma função
constitucional relevante, o paralelismo de situações parece evidente.
10. Além disso, o condicionamento ao exercício do direito de acesso ao direito e
aos tribunais que resulta da interpretação normativa levada a cabo em face do
n.º 1 do artigo 170º do CPT encontra-se perfeitamente justificado do ponto de
vista constitucional, uma vez que se destina a salvaguardar outros direitos
constitucionalmente consagrados ou outros bens jurídicos constitucionalmente
tutelados, como sejam a liberdade sindical (artigo 55º), bem como a resolução
extrajudicial dos conflitos (artigo 202º CRP).
Com efeito, a Constituição reconhece a liberdade sindical aos trabalhadores
(artigo 55º, nº 1), sendo que uma das liberdades que é garantida aos
trabalhadores no exercício da liberdade sindical é precisamente a de organização
e regulamentação interna das associações sindicais [artigo 55º, nº 2, al. c)].
Acresce ainda que a própria Constituição admite que a lei institucionalize
instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (artigo 202º,
nº 4, CRP).
Daqui decorre que a interpretação do artigo 170º, nº 1, do CPT no sentido de que
a decisão disciplinar só é impugnável judicialmente se, e após, o Autor ter
esgotado um recurso interno previsto nos estatutos de uma associação sindical,
embora possa não ser aquela que concede uma maior amplitude ao âmbito de
aplicação ao direito de acesso aos tribunais, uma vez que pode protelar no tempo
o exercício deste direito, respeita outros valores constitucionais, igualmente
importantes num Estado de Direito democrático, quais sejam o da liberdade de
auto-organização das associações sindicais e da resolução extrajudicial dos
conflitos, com o consequente descongestionamento dos tribunais.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 170º, n.º
1, do CPT, conjugado com o artigo 288º, n.º 3, do CPC, quando interpretada no
sentido de que a decisão disciplinar só é impugnável judicialmente se, e após, o
Autor ter esgotado o recurso interno previsto nos Estatutos do Sindicato;
b) não conhecer do objecto do recurso quanto às restantes dimensões
normativas questionadas.
E, em consequência, não conceder provimento ao recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos
termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 30 de Abril de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão