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Processo n.º 144/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 3 de Março de 2008, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, não tomar
conhecimento do recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem a seguinte
fundamentação:
“1. Por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 2 de
Maio de 2006, foi concedido provimento ao recurso jurisdicional deduzido pela
recorrente B. contra a sentença de 8 de Abril de 2005 do Tribunal
Administrativo do Círculo do Porto, que negara provimento ao recurso contencioso
de anulação por ela deduzido contra a deliberação do Conselho de Administração
do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED), de 27 de Setembro
de 2002, que homologara a lista de classificação final dos concorrentes
admitidos ao «Concurso público para instalação de uma farmácia no lugar e
freguesia de Nespereira, concelho de Guimarães, distrito de Braga», cujo aviso
fora publicado com o n.º 7968‑B/2001 (2.ª Série), no Diário da República, II
Série, 1.º Suplemento ao n.º 137, de 15 de Junho de 2001, e, consequentemente,
foi também concedido provimento ao referido recurso contencioso. Na base dessa
decisão esteve essencialmente o entendimento de que, nos termos da Base II da
Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965, só os farmacêuticos podem ser
proprietários de farmácia, mas nenhum deles pode ser dono de mais do que uma,
pelo que deve ser rejeitado, por violação do princípio da hierarquia das fontes
normativas, o artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de
Outubro, interpretado no sentido de que os proprietários de farmácia há mais de
10 anos não estavam impedidos de ser opositores a concursos para instalação de
novas farmácias (interpretação esta em que se alicerçara a revogada sentença da
1.ª instância).
Notificada do aludido acórdão, a recorrida particular A. (que fora
graduada em 1.º lugar no aludido concurso, e que era proprietária de uma
farmácia desde 1989), apresentou requerimento de rectificação de erros materiais
e de aclaração, no âmbito do qual, após sustentar que a única interpretação
correcta da norma da Base II, n.º 3, da Lei n.º 2125 («A nenhum farmacêutico ou
sociedade poderá ser concedido mais de um alvará. Igualmente nenhum farmacêutico
poderá pertencer a mais de uma sociedade ou pertencer a ela e ser proprietário
individual de uma farmácia») é a de que «ninguém (farmacêutico e/ou sociedade
poderá ser titular, ao mesmo tempo, de mais do que um alvará de farmácia»
[sustentando depois que «ter um alvará de farmácia é uma coisa (…); adquirir a
possibilidade, por via de concurso, de instalar, abrir e adquirir uma outra
farmácia é outra completamente diferente»], aduziu:
«37 – Importará, por isso, clarificar e reconhecer que a norma do
n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125 só pode ser susceptível daquela leitura e não
de outra, com as legais consequências, e sob pena de, com o alcance e a leitura
que dela o acórdão pretende retirar, a mesma deve ser considerada ilegal (por
violação do disposto no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil) e até
inconstitucional, por violação e desconformidade com o direito à tutela
jurisdicional efectiva previsto no n.º 5 do artigo 20.º, com o princípio da
igualdade previsto no n.º 1 do artigo 13.º e com o disposto no n.º 5 do artigo
112.º, todos da Constituição da República Portuguesa.»
Por acórdão de 7 de Novembro de 2006, o STA deferiu o pedido de
correcção de erros materiais e indeferiu o pedido de aclaração.
Decidido, por acórdão do Pleno do STA, de 13 de Novembro de 2007,
julgar findo o recurso interposto para essa formação pela entidade recorrida e
pela recorrida particular, por se entender inexistir a invocada oposição de
julgados, veio a mesma recorrida particular interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão de 7 [por lapso, a
recorrente refere 6] de Novembro de 2006, pretendendo «ver apreciada, em
fiscalização concreta, a inconstitucionalidade do n.º 3 da Base II da Lei n.º
2125, de 20 de Março de 1965, e da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Portaria
n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro, mormente da interpretação que delas foi feita no
referido acórdão, por força da qual se concluiu que a interpretação que foi
feita, na sentença recorrida, da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Portaria
n.º 936‑A/99 – a de que ‘quem for proprietário de farmácia há mais de 10 anos
pode, candidatando‑se, ver constituído em seu favor o direito à propriedade e
exploração de uma outra farmácia’ – ‘viola o disposto na Base II da Lei n.º
2125, de 20 de Março de 1965, fonte normativa de hierarquia superior’, e em
consequência do que se entendeu ter de rejeitar‑se, com tal alcance, a
aplicação da regra do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99, de
22 de Outubro». Mais consigna a recorrente, nesse requerimento, que, na sua
perspectiva, tal interpretação «é materialmente inconstitucional, por violação e
desconformidade com o direito à tutela jurisdicional efectiva previsto no n.º 5
do artigo 20.º, com o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º e com o
disposto no n.º 5 do artigo 112.º, todos da Constituição da República
Portuguesa», e que «a questão das inconstitucionalidades que ora se pretende
sejam apreciadas foram suscitadas pela recorrente no pedido de aclaração que
apresentou neste Tribunal do acórdão proferido a 2 de Maio de 2006».
O recurso foi admitido por despacho de 16 de Janeiro de 2008 do
Conselheiro Relator do STA, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal
Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e, de facto, entende‑se que o
presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão
sumária, ao abrigo do artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC.
2. Tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da
LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi,
das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Aquele
primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o
tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera
dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal
específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão
recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o
recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de
constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo
essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de
constitucionalidade.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional
que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de
constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido
proferir a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em
princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido
que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua
aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar
a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma
inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão
judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto» do juiz
quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos
factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem
necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida.
No presente caso, como a recorrente reconhece, não suscitou a
questão de inconstitucionalidade, que pretende ver apreciada, antes de
proferido o acórdão de 2 de Maio de 2006 – que foi a decisão que fez efectiva
aplicação do critério normativo questionado –, apesar de haver disposto de
oportunidade processual para o fazer (designadamente nas contra‑alegações que
apresentou no recurso jurisdicional) e sendo manifesto que a adopção, pelo STA,
desse critério normativo nada tem de insólito, anómalo ou inesperado, já que
correspondia à interpretação sustentada ao longo dos autos pela recorrente
contenciosa.
A suscitação da questão de inconstitucionalidade pela recorrente,
pela primeira vez nos autos, em requerimento de aclaração e de rectificação de
erros materiais do acórdão que aplicou o critério normativo questionado, quando
se encontrava já esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre a questão de
mérito, não constitui modo processualmente adequado de cumprimento do ónus
inicialmente referido. Ao que acresce que nem o subsequente acórdão de 7 de
Novembro de 2006 (que rectificou erros de escrita e indeferiu pedido de
aclaração), que a recorrente elegeu como objecto do presente recurso, fez
aplicação das normas arguidas de inconstitucionais, mas apenas das normas dos
artigos 667.º, n.º 1, e 669.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e
nem mesmo nesse pedido de aclaração (apesar de extemporaneamente) a recorrente
logrou suscitar em termos adequados a questão de inconstitucionalidade, já que
não substanciou os respectivos fundamentos, isto é, não expôs as razões pelas
quais entendia que o dito critério normativo violaria os artigos 20.º, n.º 5
(que prevê, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a criação
de procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade), 13.º,
n.º 1 (que consagra o princípio da igualdade) e 112.º, n.º 5 (que proíbe a
criação, pela lei, de outras categorias de actos legislativos ou a atribuição a
actos de outra natureza do poder de, com eficácia externa, interpretar,
integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos), da
Constituição da República Portuguesa.
Por falta de oportuna e adequada suscitação da questão de
inconstitucionalidade que pretende ver apreciada e por o acórdão recorrido não
ter feito aplicação, como ratio decidendi, do critério normativo questionado, o
presente recurso surge como inadmissível, o que determina o não conhecimento do
seu objecto.”
1.2. A reclamação para a conferência apresentada pela
recorrente desenvolve a seguinte argumentação:
“I – Nota Prévia
1.º – O artigo 20.º da CRP consagra que: «A todos é assegurada o
acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos».
2.º – Estamos perante princípio e direito fundamental em si mesmo,
mas que ganha, entre os demais, uma relevância particular e acrescida, uma vez
que ela é instrumental da protecção e garantia de outros direitos fundamentais,
muitas vezes ameaçados ou postos em causa e, por isso, só asseguráveis pelo
Tribunal, no pleno exercício da «tutela jurisdicional efectiva».
3.º – É pacífico, como adiantam os Professores Gomes Canotilho e
Vital Moreira, que o direito constitucional de acesso aos tribunais inclui o
direito de recurso, designadamente ao referirem: «... o recurso das decisões
judiciais que afectam direitos fundamentais, mesmo fora do âmbito penal,
apresenta‑se como uma garantia imprescindível desses direitos» [Constituição da
República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora].
4.º – Naturalmente que aqui, em sede de recurso das decisões
judiciais, não poderão deixar de assumir especial importância os recursos para o
Tribunal Constitucional, ou seja, os recursos de constitucionalidade.
5.º – Nesta sede e âmbito, e neste particular da admissibilidade dos
recursos para o Tribunal Constitucional, passa a estar, ou pode passar a estar,
como acontece no presente caso, a garantia do direito fundamental de acesso ao
Direito [e] à Justiça e, instrumentalmente, a protecção e segurança dos direitos
fundamentais, ou análogos, que estão em causa na questão de fundo,
designadamente o direito de propriedade (artigo 62.º da CRP) e o direito de
exercício de uma actividade económica (artigo 61.º da CRP).
6.º – É, com o devido respeito e salvo melhor opinião, neste quadro,
e, acima de tudo, com a prevalência ou primazia das preocupações
constitucionais substantivas, sobre as vertentes formais, que se tem de avaliar
e decidir a questão ou questões objecto da presente reclamação.
II – Análise da decisão sumária objecto da reclamação
7.º – Solicitou a recorrente a rectificação/aclaramento do Acórdão
do STA, de 2 de Maio de 2006 (v. fls. 403 a 413), pelo requerimento de fls. 435
a 450, no qual consignou e suscitou o seguinte:
«Esta, contudo, é uma ‘certeza’ (‘inequívoco...’) que resulta de uma
interpretação ilegal da norma do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, porquanto se
desvia demasiado da letra da lei (daquela norma), não tem o mínimo de
correspondência com a letra da lei, o que significa que a sua alegada violação,
sustentada no Acórdão, não se verificará, na medida em que é resultante de uma
sua interpretação sem o mínimo de correspondência com a letra de tal norma, e,
por isso, em clara violação do disposto no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.
Na verdade, a letra da lei (n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125) é a
seguinte: ‘A nenhum farmacêutico ou sociedade poderá ser concedido mais de um
Alvará. Igualmente nenhum farmacêutico poderá pertencer a mais de uma sociedade
ou pertencer a ela e ser proprietário individual de uma farmácia’.
E não permite, de facto, duas leituras, o que eventualmente já
poderia não suceder se a norma se circunscrevesse ao primeiro período da mesma
(‘A nenhuma farmacêutico ou sociedade poderá ser concedido mais de um Alvará’).
A parte que se lhe segue reforça, na verdade, a intenção daquela norma:
– ninguém (farmacêutico e/ou sociedade) poderá ser titular, ao mesmo
tempo, de mais do que um alvará de farmácia.
Importará, por isso, clarificar e reconhecer que a norma do n.º 3 da
Base II da Lei n.º 2125 só pode ser susceptível daquela leitura e não de outra,
com as legais consequências, e sob pena de, com o alcance e a leitura que dela o
Acórdão pretende retirar, a mesma deve ser considerada ilegal (por violação do
disposto no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil) e até inconstitucional, por
violação e desconformidade com o direito à tutela jurisdicional efectiva
previsto no n.º 5 do artigo 20.º, com o princípio da igualdade previsto no n.º
1 do artigo 13.º e com o disposto no n.º 5 do artigo 112.º, todos da CRP.»
8.º – Claro fica da transcrição a que se procedeu que foi suscitada
a inconstitucionalidade da interpretação dada naquele acórdão, de 2 de Maio de
2006, ao n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125 e, conexamente, ao artigo 7.º, n.º 1,
alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro.
9.º – Tal pedido de rectificação/aclaramento foi objecto de
apreciação e decisão, por via do acórdão do STA, de fls. 487 a 489, de 7 de
Novembro de 2006, que deferiu as rectificações requeridas e indeferiu o pedido
de aclaramento.
10.º – A ora recorrente arguiu ainda a nulidade do acórdão de 2 de
Maio de 2006, como se pode ver pelo requerimento de fls. 575 a 581, que veio a
ser indeferida por acórdão do STA, de 24 de Abril de 2007, de fls. 604 a 608.
11.º – Por sua vez, quer o Infarmed, quer a ora recorrente,
interpuseram recurso para o Pleno da Secção, com fundamento em oposição de
julgados, recursos que vieram a ser decididos por acórdão do STA, de 13 de
Novembro de 2007 (fls. 678 a 691), que concluiu pela inexistência de oposição de
julgados.
12.º – Só esgotados os recursos ordinários, pode a ora recorrente
interpor recurso do acórdão do STA, de 2 de Maio de 2006, de fls. 403 e
seguintes, para este Venerando Tribunal Constitucional, nos termos seguintes:
«... não se conformando com o teor do acórdão proferido nos autos,
em 2 de Maio de 2006, complementado pelo acórdão de 6 de Novembro de 2006, pelo
qual se acordou ‘deferir o pedido de correcção de erros materiais e indeferir o
pedido de aclaração’ daquele acórdão,
deste vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo
do disposto no artigo 69.º, na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 70.º, na
alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 72.º e no artigo 75.º‑A, todos da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13‑A/98, de 26 de Dezembro.
A recorrente pretende ver apreciada, em fiscalização concreta, a
inconstitucionalidade do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, de 20 de Março de
1965, e da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de
Outubro, mormente da interpretação que delas foi feita no referido acórdão, por
força da qual se concluiu que a interpretação que foi feita, na sentença
recorrida, da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Portaria n.º 936‑A/99 – a de
que ‘quem for proprietário de farmácia há mais de 10 anos pode,
candidatando‑se, ver constituído em seu favor, o direito à propriedade e
exploração de uma outra farmácia’ – ‘viola o disposto na Base II da Lei n.º
2125, de 20 de Março de 1965, fonte normativa de hierarquia superior’, e em
consequência do que se entendeu ter de rejeitar‑se, com tal alcance, a aplicação
da regra do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de
Outubro.
Na perspectiva da recorrente, a interpretação que se fez das
citadas normas é materialmente inconstitucional, por violação e
desconformidade com o direito à tutela jurisdicional efectiva prevista no n.º 5
do artigo 20.º, com o principio da igualdade previsto no artigo 13.º e com o
disposto no n.º 5 do artigo 112.º, todos da Constituição da República
Portuguesa.
As questões de inconstitucionalidade que ora se pretende sejam
apreciadas foram suscitadas pela recorrente no pedido de aclaração que
apresentou neste Tribunal do acórdão proferido a 2 de Maio de 2006.
O presente recurso sobe nos próprios autos e tem efeito suspensivo
– artigo 78.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que
lhe foi dada pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro.
Nestes termos, por estar em tempo e ter legitimidade para tal,
requer a V.ªs Ex.as que se dignem admitir o presente recurso, devendo o mesmo
prosseguir os seus ulteriores termos legais.»
13.º – Invoca o Ilustre Senhor Juiz Conselheiro Relator, na sua
douta decisão sumária, o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, que dispõe o seguinte:
«Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º só podem ser
interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou
da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
14.º – E mais adiante consigna‑se:
«Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com
a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou
anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para
suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão
recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.»
15.º – Refere‑se ainda naquela douta decisão sumária:
«Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional
que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de
constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido proferir
a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o
seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que,
proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua
aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a
questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma
inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão
judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve ‘lapso manifesto’ do juiz
quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos
factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem
necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida.»
16.º – E consta também da decisão em causa que:
«No presente caso, como a recorrente reconhece, não suscitou a
questão de inconstitucionalidade, que pretende ver apreciada, antes de proferido
o acórdão de 2 de Maio de 2006 – que foi a decisão que fez efectiva aplicação do
critério normativo questionado –, apesar de haver disposto de oportunidade
processual para o fazer (designadamente nas contra‑alegações que apresentou no
recurso jurisdicional) e sendo manifesto que a adopção, pelo STA, desse
critério normativo nada tem de insólito, anómalo ou inesperado, já que
correspondia à interpretação sustentada ao longo dos autos pela recorrente
contenciosa.»
17.º – E mais à frente afirma‑se:
«A suscitação da questão de inconstitucionalidade pela recorrente,
pela primeira vez nos autos, em requerimento de aclaração e de rectificação de
erros materiais do acórdão que aplicou o critério normativo questionado, quando
se encontrava já esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre a questão de
mérito, não constitui modo processualmente adequado de cumprimento do ónus
inicialmente referido. Ao que acresce que nem o subsequente acórdão de 7 de
Novembro de 2006 (que rectificou erros de escrita e indeferiu pedido de
aclaração), que a recorrente elegeu como objecto do presente recurso, fez
aplicação das normas arguidas de inconstitucionais, mas apenas das normas dos
artigos 667.º, n.º 1, e 669.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e
nem mesmo nesse pedido de aclaração (apesar de extemporaneamente) a recorrente
logrou suscitar em termos adequados a questão de inconstitucionalidade, já que
não substanciou os respectivos fundamentos,»
18.º – E conclui-se, na decisão sumária sub judice:
«Por falta de oportuna e adequada suscitação da questão de
inconstitucionalidade que pretende ver apreciada e por o acórdão recorrido não
ter feito aplicação, como ratio decidendi, do critério normativo questionado, o
presente recurso surge como inadmissível, o que determina o não conhecimento do
seu objecto.»
19.º – Ora, com o devido respeito e elevada consideração, que é
muita, torna‑se necessário distinguir o que, da decisão transcrita, corresponde
às posições jurisprudenciais, que vão firmando a posição do Tribunal
Constitucional, das considerações adiantadas em relação ao caso concreto.
20.º – As primeiras estão correctas e retratam tanto o entendimento
doutrinário dominante do Tribunal Constitucional, bem como se identifica bem o
núcleo excepcional em que é legítimo desviarmo‑nos da regra da aplicação literal
e restritiva do artigo 72.º [, n.º 2,] da LTC.
21.º – Onde, porém, a «decisão sumária», com todo o respeito,
procede à incorrecta apreciação da realidade substantiva e processual, e até
lavra em erro, é na análise da situação concreta dos autos, dos termos e
condições em que se suscita a questão da inconstitucionalidade e até na
identificação do próprio acórdão objecto do recurso, e na forma como foi
formulada, por este, a respectiva decisão.
22.º – Aliás, é só por não se ter procedido à correcta apreciação e
avaliação, processual e substantiva, da forma, tempo e lugar em que é suscitada
a inconstitucionalidade em causa, que a decisão sumária veio a concluir pela
inadmissibilidade do recurso, como se demonstrará.
23.º – Em primeiro lugar, os autos mostram ser evidente que, quando
é suscitada a questão da inconstitucionalidade, estávamos longe de ter esgotado
o poder jurisdicional, pois o próprio pedido de rectificação, em especial, e o
próprio pedido de aclaramento podiam levar a alterações relevantes do
decidido.
24.º – Por outro lado, ainda subsequentemente a tal pedido, foi
arguida a nulidade do mesmo acórdão, do que poderia advir também alteração
significativa da decisão.
25.º – Tal revela bem que não é rigoroso afirmar que estava esgotado
o poder jurisdicional.
26.º – Aliás, o raciocínio e a conclusão contidos na decisão sumária
a este respeito advêm de manifesto erro que a «decisão sumária» contém
relativamente à identificação do acórdão do STA objecto do recurso.
27.º – Na verdade, afirma‑se na decisão sumária: «... acresce que
nem o subsequente acórdão de 7 de Novembro de 2006 (que rectificou erros de
escrita e indeferiu pedido de aclaração), que a recorrente elegeu como objecto
do presente recurso, fez aplicação das normas arguidas de inconstitucionais».
28.º – Ora, o recurso foi interposto, como não podia deixar de ser,
do acórdão de 2 de Maio de 2006, como ficou claro no requerimento de fls. 699,
em que se refere expressamente: «... não se conformando com o teor do acórdão
de 2 de Maio de 2006».
29.º – Não se percebe assim, a não ser por erro manifesto, a
afirmação de que a recorrente elegeu como objecto do presente recurso o acórdão
de 7 de Novembro de 2006, pois apenas se referiu, e bem, que, tendo aquele
acórdão deferido o pedido de rectificação do acórdão de 2 de Maio de 2006,
aquele tinha passado a integrar este último ou a complementá‑lo, o que é coisa
diversa.
30.º – Só assim se compreendem, aliás, alguns outros desajustamentos
que a decisão sumária revela, designadamente quando afirma: «não ter o acórdão
recorrido feito aplicação, como ratio decidendi, do critério normativo
questionado ...».
31.º – Ora, isto é verdade em relação ao acórdão de 7 de Novembro de
2006, que recaiu sobre o pedido de aclaramento (que a decisão sumária
identifica, erradamente, como sendo o acórdão recorrido), mas não é verdade em
relação ao acórdão de 2 de Maio de 2006, o único que importa, por constituir a
decisão objecto do recurso.
32.º – Por outro lado, não é correcto afirmar que a recorrente
poderia, de há muito, no decurso do processo, ter suscitado a questão da
inconstitucionalidade levantada, porquanto a posição adoptada relativamente ao
n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965, e da alínea a) do n.º
1 do artigo 7.º da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro, pelo acórdão de 2 de
Maio de 2006, teria sido a mesma que a recorrida, B., vinha sustentando nos
autos.
33.º – Ora, com o devido respeito, isto não é verdade e faz toda a
diferença.
34.º – A recorrida vinha sustentando que a alínea a) do n.º 1 do
artigo 7.º da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro, tinha o alcance de inibir
qualquer farmacêutico que há menos de 10 anos tivesse obtido um alvará de se
apresentar a novos concursos para a atribuição de nova farmácia, mesmo que,
entretanto, tivesse, por qualquer razão, deixado de ser titular do alvará
concedido.
35.º – Por outro lado, e ao contrário da posição que,
inesperadamente, veio a ser adoptada, no acórdão de 2 de Maio de 2006, a ora
recorrida, B., interpretava, isoladamente, o n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125.
36.º – A ora requerente discordou e discorda da interpretação dada
pela ora recorrida, tanto à Portaria n.º 936‑A/99, como ao n.º 3 da Base II da
Lei n.º 2125.
37.º – Porém, no seu entender, a inconstitucionalização do n.º 3 da
Base II da Lei n.º 2125 e conexamente da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da
Portaria n.º 936‑A/99, de 23 de Outubro, advêm da interpretação dada àqueles
normativos pelo acórdão de 2 de Maio de 2006, como se demonstrará.
38.º – A questão cifra‑se fundamentalmente no seguinte:
– O n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125 estabelece o seguinte:
«A nenhum farmacêutico ou sociedade poderá ser concedido mais de um
alvará. Igualmente nenhum farmacêutico poderá pertencer a mais de uma sociedade
ou pertencer a ela e ser proprietário individual de uma farmácia.
Nenhum farmacêutico, quando proprietário de uma farmácia ou gerente
técnico de uma sociedade, pode desempenhar qualquer função incompatível com o
exercício efectivo da actividade farmacêutica.»
39.º – Por sua vez, o artigo 7.º da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de
Outubro, preceitua o seguinte:
«1 – Sem prejuízo de outros casos previstos na lei, não poderão
concorrer:
a) Os candidatos em nome individual ou sociedade que tenham obtido
alvará há menos de 10 anos, por instalação, por transferência ou por trespasse;
b) As sociedades que integrem um ou mais sócios nas condições
previstas na alínea anterior.
2 – Os farmacêuticos em nome individual ou integrados em sociedades
e as sociedades não podem, dentro de 12 meses, ser candidatos a mais de dois
concursos, contando‑se aquele período a partir da data da última candidatura.
3 – Os farmacêuticos que, tendo concorrido e sido autorizados, não
concretizarem a instalação ficam impedidos de concorrer nos cinco anos
imediatos.»
40.º – A interpretação que sempre se sustentou e que era a adoptada,
desde sempre, pelo Infarmed, daquelas disposições, era a seguinte:
– No tocante à Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro, entendia‑se
que só estava impedido de concorrer a novo concurso de atribuição de instalação
de farmácia quem tivesse obtido alvará há menos de 10 anos.
41.º – Ora, não era, nem é, esse o caso da requerente!
42.º – Por sua vez, relativamente ao n.º 3 da Base II da Lei n.º
2115, de 20 de Março de 1965, entendia‑se, e entende‑se, que tal disposição não
tem a ver com o acesso ou apresentação a concurso para atribuição de novas
farmácias (novos alvarás), mas sim com o momento da concessão do alvará,
questão que não se chega, sequer, a colocar em relação a concorrentes que não
tenham sido contemplados com a atribuição do direito a instalar nova farmácia.
43.º – No domínio de todos os princípios, designadamente
constitucionais, continuamos a entender que esta é a interpretação mais
correcta e adequada.
44.º – Acontece que, entretanto, e já depois das decisões
administrativas em causa nos autos, foi publicada a Portaria n.º 168‑A/2004, de
18 de Fevereiro, a qual veio, expressamente, a adoptar uma solução nova, já que
o próprio preâmbulo assume essa solução como inovatória, ao estabelecer que
importa: «determinar a impossibilidade de oposição aos concursos por parte de
farmacêuticos já proprietários de farmácia, individual ou colectivamente».
45.º – Ora, se importa determinar que passe a ser assim, é porque o
não era!
46.º – E se passa a ser, é, naturalmente, por razão dos mais
elementares princípios de aplicação de lei no tempo, para o futuro!
47.º – Nada temos a obstar a que a Portaria em causa se aplique para
o futuro, como, por certo, pretendeu o legislador.
48.º – A questão, porém, é que, embora tentando disfarçar tal opção,
o acórdão de 2 de Maio de 2006 aplicou, retroactivamente, aquela Portaria,
considerando‑a interpretativa do disposto no n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125,
esvaziando, ao mesmo tempo, de qualquer sentido e alcance a Portaria n.º
936‑A/99, impedindo a sua aplicação às situações ocorridas na sua vigência, como
é o caso dos autos, e preterindo o princípio tempus regit actum que invoca, mas
não respeita!
49.º – Cabe, aliás, perguntar, a que título a Portaria n.º
168‑A/2004, de 18 de Fevereiro, é interpretativa do n.º 3 da Base II da Lei n.º
2125 e porque é que a Portaria n.º 936‑A/99 não era interpretativa da mesma
disposição da Lei n.º 2125, para os casos ocorridos na vigência de ambos os
diplomas em causa!?
50.º – Como é óbvio e os factos demonstram, tanto a Portaria n.º
936‑A/99, como a Portaria n.º 168‑A/2004, de 18 de Fevereiro, não são
interpretativas do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, pois, em tal hipótese,
teríamos o contra-senso de o legislador andar a fixar, em cada momento,
orientações interpretativas de sinal contrário ou opostas.
51.º – O que acontece, sim, é que o n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125
tem o seu campo próprio de aplicação, ou seja, a definição das circunstâncias em
que se pode ser, em cada momento, titular de alvará de farmácia, a verificar na
altura da sua efectiva atribuição!
52.º – Por seu lado, as Portarias em causa têm também o seu campo
próprio de aplicação, pois limitam‑se a fixar as condições de acesso a concurso
para instalação de novas farmácias.
53.º – A questão é que o acórdão recorrido vem admitir, numa
primeira abordagem, que a Portaria n.º 936‑A/99 [artigo 7.º, n.º 1, alíneas a) e
b)] permite, efectivamente, que, quem seja proprietário de farmácia, há mais de
dez anos, possa, sem restrições, candidatar‑se a concursos de instalação de
novas farmácias, o que, aliás, corresponde ao entendimento fixado pela sentença
da 1.ª Instância.
54.º – Porém, o acórdão recorrido afasta-se, de seguida, daquela
leitura, que era a correcta, por entender que a Base II da Lei n.º 2125 tinha de
ser interpretada em conformidade com a Portaria n.º 168‑A/2004.
Por isso aquele acórdão conclui e decide que os farmacêuticos que
tenham obtido alvará há mais de 10 anos, desde que sejam proprietários de
farmácia, estão impedidos, não apenas de virem a ser titulares de novo alvará,
como também de se apresentarem a concurso para a instalação de novas farmácias.
55.º – E é baseado em tal entendimento e raciocínio que o Acórdão
recorrido conclui que a Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro, é ilegal, ou
seja, contraria a Base II da Lei n.º 2125, designadamente o seu n.º 3, na
interpretação conforme à nova solução adoptada pela Portaria n.º 168‑A/2004, de
18 de Fevereiro, pelo que, por ilegalidade ou ofensa àquela Lei, o aresto em
causa procede, pura e simplesmente, à desaplicação da Portaria n.º 936‑A/99!
56.º – E para que não haja dúvidas de que é esta a interpretação,
ilegal, porque implica a aplicação retroactiva da Portaria n.º 168‑A/2004, que o
acórdão de 2 de Maio de 2006 fez do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125,
eliminando, ao mesmo tempo, da ordem jurídica, a Portaria n.º 936‑A/99, apesar
de invocar o princípio tempus regit actum, aquele acórdão refere expressamente:
«Este, é, aliás, a nosso ver, o único sentido possível da lei a
seguir à publicação da Portaria n.º 168‑A/2004, de 18 de Fevereiro ...!» (sic).
57.º – Só que é esta aplicação retroactiva da Portaria n.º
168‑A/2004, que conduz à interpretação do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, que
a inconstitucionaliza, a vários títulos, apresenta‑se, nestes moldes, como
verdadeira «decisão surpresa», pelo que a inconstitucionalidade decorrente de
tal opção e entendimento não podia, ao contrário do afirmado na «decisão
sumária», ter sido suscitada ao longo do processo, ou em qualquer momento
anterior à sua prolação.
58.º – Diga-se mesmo que, bem pelo contrário, a questão foi
suscitada logo no primeiro acto processual possível, subsequente àquele acórdão,
ou seja, no imediato pedido de rectificação e aclaramento apresentado, em tempo,
pela ora requerente.
59.º – Assim sendo, como é, e com o devido respeito, não assiste a
menor razão à «decisão sumária», ao sustentar a intempestividade com que se
suscitou a inconstitucionalidade em causa.
60.º – Bem pelo contrário, estamos perante quadro excepcional em
que, tanto a doutrina, como a jurisprudência do Tribunal Constitucional, admitem
e aceitam como adequado e oportuno que se suscite tal questão, após a sentença
final, por ser nesta que surge a aplicação ou interpretação inconstitucional da
lei, como é o caso.
61.º – Quanto às inconstitucionalidades a que a interpretação
adoptada pelo Acórdão de 2 de Maio de 2006, relativamente ao n.º 3 da Base II da
Lei n.º 2125, deu lugar, elas podem ter sido suscitadas de forma sumária, mas a
verdade é que o STA tinha sempre ao seu alcance a possibilidade de ordenar à ora
requerente que melhor explicitasse e desenvolvesse a fundamentação das
inconstitucionalidades em causa.
62.º – Diga‑se, no entanto, que tais inconstitucionalidades são
evidentes, como se demonstrará, importando lembrar que, como referem Gomes
Canotilho e Vital Moreira [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª
edição, Coimbra Editora, p. 1035]:
«O TC não pode ampliar a declaração de inconstitucionalidade a
normas não impugnadas (ressalvadas as normas interpostas). Ao invés, já nada o
impede de declarar a inconstitucionalidade por motivos diferentes dos indicados
pelos requerentes, tendo o Tribunal o dever oficioso de não deixar de declarar
a inconstitucionalidade por violação de qualquer norma ou princípio
constitucional, mesmo que não invocados no requerimento.»
63.º – Antes da publicação da Portaria n.º 168‑A/2004, o
entendimento que foi sempre adoptado – e o caso dos autos ocorre muito antes da
publicação daquela Portaria, ou seja, em plena vigência da Portaria n.º 936‑A/99
– era no sentido de, desde que se tivesse obtido alvará há mais de 10 anos, nada
obstava à apresentação a concurso para a instalação de nova farmácia.
64.º – A interpretação adoptada no acórdão de 2 de Maio de 2006 cria
assim uma desigualdade relativamente ao universo de situações, como a dos autos,
ocorridas na vigência da Lei n.º 2125 e da Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de
Outubro, com manifesta ofensa do princípio da igualdade (n.º 1 do artigo 13.º da
CRP).
65.º – Por outro lado, ofende‑se o n.º 5 do artigo 112.º da CRP
quando, no entendimento do acórdão de 2 de Maio de 2006, se aceita que uma
simples portaria possa fixar, ainda por cima retroactivamente, a interpretação
do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, dando‑lhe um sentido restritivo de direitos
fundamentais – o direito de propriedade e o direito ao exercício de uma
actividade –, violando o disposto no artigo 18.º da CRP.
66.º – Finalmente, como consequência das referidas
inconstitucionalidades, compromete‑se a tutela jurisdicional efectiva, a que a
requerente tem direito, e que o n.º 5 do artigo 20.º da CRP lhe assegura,
disposição que é igualmente violada.
67.º – Não é, porém, este o momento e a sede para desenvolver e
aprofundar as várias vertentes da inconstitucionalidade suscitada, uma vez que
estamos ainda, e preliminarmente, no âmbito da admissibilidade do recurso
interposto para este Venerando Tribunal Constitucional.
68.º – Importa sim, e por agora, chamar à colação alguma da
abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, bem como alguma da mais
relevante doutrina que, particularmente em domínios sensíveis dos direitos
fundamentais, propende a considerar a admissibilidade do recurso, por
inconstitucionalidade, no quadro excepcional em que se insere a questão dos
autos, ou seja, mesmo quando esta é suscitada depois da decisão final, mas na
primeira oportunidade processual possível.
69.º – Assim, entre a jurisprudência referida, vejam-se os seguintes
acórdãos:
Acórdão n.º 61/92, do Tribunal Constitucional, de 11 de Fevereiro de
1992 (Proc. n.º 448/91, da 1.ª Secção), que decidiu:
«3 – Todavia, a orientação geral assim definida não será de aplicar
em determinadas situações de todo excepcionais, em que os interessados não
disponham de oportunidade processual para suscitar a questão de
constitucionalidade antes do proferimento da decisão, caso em que lhes deverá
ser salvaguardado o direito ao recurso de constitucionalidade.
Na verdade, este Tribunal tem vindo a entender, num plano
conformador da sua jurisprudência genérica sobre este tema, que naqueles casos
anómalos em que o recorrente não disponha de oportunidade processual para
suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de
esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir,
ainda assim existirá o direito ao recurso de constitucionalidade (cf. os
Acórdãos n.ºs 136/85 e 479/89, o primeiro, no Diário da República, II Série, de
28 de Janeiro de 1986, e o segundo, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º
389, pp. 222 e seguintes).»
Acórdão n.º 188/93, de 3 de Março de 1993 (Proc. n.º 412/92, da 1.ª
Secção):
«E, como acentua Castro Mendes, ‘o problema da aplicação da lei tem
de resolver‑se através da interpretação da lei nova. Traduz-se em apurar até
onde a lei nova se quer aplicar’, o que implica a interpretação da sua previsão
(Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, policop., 1984, p. 274).
Isto nos basta para concluir, em caso de dúvida, que,
independentemente da formulação verbal utilizada, a recorrente quis impugnar a
interpretação perfilhada na decisão recorrida quanto à norma do artigo 107.º,
n.º 1, alínea b), do RAU, de modo a atribuir‑lhe uma eficácia retroactiva, por
ser o corpo do artigo, alegadamente, uma norma interpretativa do direito
anterior. A recorrente não atacou em primeira linha o acto judicial, visto que
ela se moveu ‘no puro plano da “interpretação” da norma e não também da
valoração de circunstâncias exteriores àquela, mas relevantes na sua aplicação’
(formulação do citado Acórdão n.º 388/87).
Daí que se considere verificado o pressuposto do recurso de
constitucionalidade de suscitação de inconstitucionalidade de uma norma
jurídica, na interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido.»
«Menezes Cordeiro, acima transcrito – especialmente atendível, dado
este civilista ter sido o autor do anteprojecto do RAU – veja‑se António Pais de
Sousa, Anotações do RAU, 2.ª ed., Lisboa, 1991, p. 221: ‘... o prazo em apreço é
de caducidade, como se julga decorrer do disposto no n.º 2 do artigo 293.º do
Código Civil. Ora, nestes casos, em que a verificação de caducidade só depende
de um decurso de um prazo, ela ocorre automaticamente, ope legis. Nesta
conformidade, se o decurso do prazo de 20 anos ocorreu no domínio da Lei n.º
55/79, a caducidade do direito de denúncia daí resultante tem de ser respeitada.
A publicação do RAU não teve a virtualidade da fazer renascer o direito de
denúncia do senhorio, caduco por tal motivo. E o mesmo se diga no caso do RAU
ter entrado em vigor depois de proferida sentença, que julgou válida a limitação
em apreço, estando o processo pendente de recurso.
Ora, numa situação como a descrita, em que nem a recorrente, nem a
recorrida questionaram a resolução do caso pela lei antiga, aquela foi
confrontada com a aplicação pela decisão da segunda instância de uma norma ‘de
todo em todo “insólita” e “impensável”, sobre a qual seria inteiramente
desrazoável’ exigir‑se‑lhe ‘um prévio juízo de prognose relativo à sua
aplicação’, embora sobre ela impendesse o ónus de avaliar ‘as diversas e
possíveis linhas normativas susceptíveis de serem seguidas na resolução do caso
submetido a julgamento’ (formulações do Acórdão n.º 439/91, in Diário da
República, II Série, n.º 96, de 24 de Abril de 1992). Na verdade, sempre há‑de
considerar‑se insólito e impensável aplicar um prazo mais longo de forma
retroactiva, com o entendimento de que o mesmo era interpretativo de um prazo
menor (20 em vez de 30 anos), previsto na lei antiga. Acresce que a doutrina tem
sustentado que, quando a constituição, modificação ou extinção de uma situação
subjectiva apenas jurisdicionalmente se pode verificar, a lei aplicável sempre
deverá ser a vigente no momento da propositura da acção, salvo se a lei nova
tiver efeito retroactivo (cf. Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a Teoria do
Processo Declarativo, Coimbra, 1930, pp. 179‑180, com citações doutrinais e
jurisprudenciais; J. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código
Civil, Coimbra, 1953, pp. 149 e seguintes).»
Acórdão n.º 569/95, de 17 de Outubro de 1995 (Proc. n.º 26/95, da
2.ª Secção):
«Trata‑se aqui tão‑só de determinar, em termos de previsibilidade
normal, se o emprego numa decisão da dimensão interpretativa aqui seguida quanto
aos artigos 412.º e 420.º do CPP constituía uma eventualidade que o reclamante
deveria antever. Ora, da conjugação dos dados expostos não se mostra razoável
exigir‑lhe semelhante previsão. Ocorreu um uso inesperado duma dimensão
interpretativa específica que não pode deixar de abrir a via da suscitação no
próprio requerimento de interposição do recurso da questão de
inconstitucionalidade.»
Acórdão n.º 642/99, de 24 de Novembro de 1999 (Proc. n.º 526/99, da
2.ª Secção):
«Na verdade, apresentada por ele uma reclamação por nulidades, na
base de vícios próprios da decisão, ao abrigo do regime do Código de Processo
Civil, foi surpreendido com o entendimento do acórdão recorrido de que tal
arguição ‘mostra-se legalmente impossível’, fazendo‑se uma interpretação e
aplicação desse regime processual que o reclamante não esperaria, desde logo,
por não corresponder ao entendimento corrente dos tribunais superiores (face ao
disposto no n.º 1 do artigo 716.º e nos artigos 732.º e 749.º, a aplicação do
artigo 670.º sempre foi entendida com a possibilidade de processamento de duas
fases: à rectificação ou aclaração segue‑se o prazo para arguir nulidades ou
pedir a reforma, o que tem de ser conhecido quando há essa arguição ou esse
pedido, nada tendo a ver com a concordância ou discordância da decisão de
fundo). E daí que só no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade podia o reclamante, como fez, arguir a questão de
inconstitucionalidade em causa, localizada na tal ‘interpretação insólita e
inesperada da lei, de que resultou a criação de uma norma que é a de que, como
se viu, o prévio requerimento de aclaração de sentença prejudica uma posterior
reclamação por nulidades, em virtude de o requerimento da aclaração ter o
sentido de concordância com a essência da decisão aclaranda’.»
Acórdão n.º 124/2000, de 23 de Fevereiro de 2000 (Proc. n.º 231/99,
da 2.ª Secção):
«Uma vez que o requerimento de arguição de nulidades não é já, em
princípio, momento idóneo para suscitar a questão de constitucionalidade –
assim, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 164/92, 181/92 e 169/93, sumariados, os
dois primeiros, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 417, a págs. 777 e 783
e seguintes, e publicado no n.º 424, a págs. 212 e seguintes, o último – só se
poderá conhecer do recurso se o poder jurisdicional do tribunal a quo para
conhecer de tal questão se não tiver esgotado com a decisão de 28 de Janeiro de
1988, ou se o recorrente não teve oportunidade processual para levantar a
questão da constitucionalidade antes do momento em que o fez, como se decidiu,
entre outros, nos Acórdãos n.ºs 61/92, 263/92, 291/92 e 1124/96, publicados no
Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992 (o primeiro) e de 6 de
Janeiro de 1997 (o último) e sumariados no Boletim do Ministério da Justiça, n.º
419, págs. 757 e 758 e seguintes (o segundo e o terceiro).
Ora, como se escreveu na última decisão citada, ‘quando a
interpretação dos preceitos acolhidos na decisão recorrida for insólita ou
inesperada, a ponto de não ser razoável que o interessado a previsse’, ‘cessam
os ónus que recaem sobre as partes de considerarem as várias possibilidades
interpretativas das normas susceptíveis de serem aplicadas no processo e, bem
assim, de adoptarem a estratégia processual adequada para prevenirem essa
possibilidade’.»
Acórdão n.º 79/2002, de 26 de Fevereiro de 2002 (Proc. n.º 502/2000,
da 3.ª Secção):
«Só assim não será naqueles casos em que não houve oportunidade
processual para uma oportuna suscitação, de modo a permitir que o tribunal
recorrido conheça da questão e sobre ela se pronuncie, o que sucederá se a
interpretação dos preceitos acolhidos na decisão for surpreendente, de modo a
não se justificar a exigência de um juízo de prognose sobre a matéria. Em casos
como estes, cessam os ónus que recaem sobre os recorrentes de tomarem em
consideração as várias possibilidades interpretativas das normas susceptíveis
de serem aplicadas no processo como rationes decidendi e de adoptarem uma
estratégia processual adequada a prevenir essa possibilidade.
Neste sentido, entre tantos outros, citem‑se os Acórdãos n.ºs
153/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., págs. 667
e seguintes, 61/92, 152/93, 261/94, 370/94, 164/95, 1124/96, 560/98 e 374/2000,
estes publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992, 16
de Março de 1993, 26 de Julho de 1994, 7 de Setembro de 1994, 29 de Dezembro de
1995, 6 de Fevereiro de 1997, 15 de Março de 1999 e 12 de Dezembro de 2000,
respectivamente.
A esta luz, se a questão de constitucionalidade incidir sobre
problemática susceptível de ser conhecida após a ‘decisão final’ ter sido
proferida, nomeadamente quando se trate de normas processuais relativas ao
regime de nulidades da decisão, pode a questão ser suscitada no momento da
respectiva arguição, não sendo de exigir que a prognose chegue ao extremo de
exigir, antes daquela decisão, a suscitação de vício de inconstitucionalidade
decorrente de eventual nulidade de julgamento (assim, o já citado Acórdão n.º
374/2000 ou o Acórdão n.º 366/96, publicado no jornal oficial referido, II
Série, de 10 de Maio de 1996).
No concreto caso, considera‑se tempestiva a suscitação da questão
de constitucionalidade, porquanto só com a arguição da nulidade do acórdão
inicial é que passou a ser exigível suscitar o problema em apreço, o que a
interessada fez, de resto prevenidamente, ao equacioná‑lo como questão prévia
ao conhecimento da nulidade arguida.»
Acórdão n.º 120/2002, de 14 de Março de 2002 (Proc. n.º 599/2000, da
2.ª Secção):
«Todavia, como este Tribunal também tem salientado (assim, por
exemplo, no citado Acórdão n.º 352/94), tal situação sofre restrições ‘em
situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de
oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes
de proferida a decisão final’. É o que acontece também quando, pela natureza
insólita ou surpreendente da interpretação (ou da aplicação) da norma em causa
efectuada pela decisão recorrida, não era exigível ao recorrente que contasse
com ela.»
70.º – No tocante à Doutrina, importa aqui referir os mais
destacados Constitucionalistas e Mestres de Direito Público, a saber:
Assim, os Professores Jorge Miranda e Rui Medeiros referem
[Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, p. 762]:
«Desta forma, só quando a aplicação de certa norma ou de certa
interpretação normativa é claramente imprevisível e anómala é que se deve
considerar que o recorrente não teve oportunidade processual de suscitar a
questão da sua inconstitucionalidade antes da decisão final. E, mesmo quando
assim seja, acrescente‑se, a invocação da inconstitucionalidade tem
necessariamente de ser feita na primeira oportunidade processual depois de
proferida a decisão final, sob pena de extemporaneidade (Acórdãos n.ºs 94/88 e
461/91).»
71.º – Ora, é este o caso, alguma vez se admitiria a aplicação
retroactiva da Portaria n.º 168‑A/2004, como interpretativa do n.º 3 da Base II
da Lei n.º 2125?
72.º – Como refere ainda Rui Medeiros [A Decisão de
Inconstitucionalidade, os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de
Inconstitucionalidade da Lei, Universidade Católica Editora, pp. 334/335]:
«Bem pode, portanto, ‘a actividade de controlo de conformidade
constitucional recair apenas sobre um certo segmento normativo do preceito em
apreço (cada preceito pode conter diversas normas) ou até apenas sobre uma
determinada interpretação’.
Esta solução não merece reparos. Estando em causa uma interpretação
contrária à Constituição, a eventual rejeição da competência do Tribunal
Constitucional equivaleria, na prática, ao esvaziamento das funções de
fiscalização atribuídas àquele ‘legislador negativo’.»
73.º – Aliás, a ideia da maior admissibilidade e da maior amplitude
em matéria de recurso para o Tribunal Constitucional e de retirar todas as
consequências das inconstitucionalidades está patente nas posições de vários
constitucionalistas.
74.º – Assim, por exemplo, Paulo Otero, embora em casos excepcionais
de responsabilidade civil e de responsabilidade criminal, admite mesmo a
«sindicabilidade incidental da constitucionalidade das decisões do próprio
Tribunal Constitucional» [Ensaio sobre o Caso Julgado Inconstitucional, Lex,
1993, p. 133].
75.º – Por sua vez, o Professor Jorge Bacelar de Gouveia, quando
trata da distinção entre a apreciação da inconstitucionalidade, em caso de norma
aplicada contra a CRP e, por outro, das situações em que se está perante «uma
certa interpretação da norma considerada inconstitucional», lembra [Manual de
Direito Constitucional, Almedina, 2005, vol. II, pp. 1358/1359]:
«Se a definição da primeira modalidade de objecto processual não
suscita dúvidas, até porque vem a ser a definição geral do objecto dos processos
de fiscalização da constitucionalidade, já a outra modalidade levanta algumas
dificuldades.
É que cumpre desde logo não confundir esse objecto processual com a
directa sindicação constitucional das decisões jurisdicionais que o Direito
Constitucional Português não autonomiza como processo próprio de fiscalização
da constitucionalidade, mas apenas e enquanto especificação do julgamento dos
recursos do tribunal a quo em geral.
A autonomização deste objecto processual resulta da aplicação
primária do Direito que, no seio da fiscalização concreta, necessariamente os
outros tribunais são forçados a fazer, sendo certo que o acesso à justiça é por
eles que se inicia.
Se assim não fosse, criar‑se‑ia uma situação estranha – e sobretudo
fraudulenta – em que bastaria ao tribunal a quo conferir um sentido
inconstitucional a certa norma parmetrizadora do caso a ser julgado, não a
considerando em si mesmo inconstitucional, para que nunca fosse
constitucionalmente possível sindicar essa aplicação errónea do Direito contra a
Constituição, num grosseiro atropelo ao princípio da constitucionalidade.»
76.º – Por sua vez, o Prof. Blanco de Morais, depois de referir que,
por princípio, o n.º 2 do artigo 72.º da LTC exige que a questão da
inconstitucionalidade seja suscitada durante o processo, antes da decisão
final, admite, no entanto, que esta possa surgir apenas nesta mesma decisão e,
por isso, lembra que tem de haver excepções, nos seguintes termos [Justiça
Constitucional, tomo II, Coimbra Editora, p. 706]:
«A regra acabada de enunciar comporta, todavia, excepções, as quais
foram sendo reveladas criativa e correctivamente pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional.
Este maleabilizou o seu rigor interpretativo inicial, recusando um
entendimento estritamente formal da locução ‘durante o processo’, em favor de um
sentido ‘funcionalmente adequado’ desse importante pressuposto de
admissibilidade do recurso que condiciona a legitimidade do recorrente.
O Tribunal Constitucional recusa, assim, transformar o n.º 2 do
artigo 72.º da LTC num instrumento de guilhotina que elimine todas as hipóteses
de arguição da inconstitucionalidade até à extinção da instância, optando por
ajustar a regra às exigências de realização da Justiça verificadas no concreto.
Seria por demais inaceitável conceber o processo como uma
escravização mecanicista a cânones formais, mesmo quando estes vedam a
realização da Justiça não só no tocante ao julgamento da questão de fundo, mas
também no respeitante ao desenlace do próprio processo.
Trata‑se de uma realidade que ocorre quando, pela natureza das
coisas, não se torna objectivamente exigível que uma parte suscite a questão de
validade da norma aplicável, até ao trânsito em julgado da decisão recorrida.»
77.º – Também o Senhor Conselheiro Guilherme da Fonseca e a Doutora
Inês Domingos [Breviário de Direito Processual Constitucional, Recurso de
Constitucionalidade, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 52] reconhecem a
existência de casos não directamente contemplados no artigo 72.º, n.º 2, da LTC,
ao referirem:
«Para além das situações referidas, existem casos excepcionais ou
anómalos em que o interessado, por não ter disposto de oportunidade processual
para levantar a questão antes de proferida a decisão, a levantou após a sua
prolação e o TC a considerou atempadamente suscitada.
Trata‑se de casos em que não se torna possível aplicar a regra da
arguição da inconstitucionalidade até à decisão; casos em que tal exigência é
dispensada por se ter verificado uma situação excepcional ou anómala que
justifica essa dispensa.»
78.º – E mais adiante referem ainda aqueles autores [obra citada, p.
54]:
«A orientação geral de que, após a prolação da decisão já não é
possível suscitar a questão de inconstitucionalidade, também não é de aplicar
naqueles casos ‘anómalos’ ou ‘excepcionais’ em que o recorrente é confrontado
com uma situação de aplicação ou interpretação normativa de todo imprevista e
inesperada, feita pela decisão. Aqui o interessado não dispõe de ‘oportunidade
processual’ para suscitar a questão antes de esgotado o poder jurisdicional do
tribunal a quo, por não poder antever a possibilidade dessa aplicação (Acórdãos
n.ºs 61/92, 188/93, 569/95, 596/96, 499/97, 642/99, 674/99, 124/2000, 155/2000,
192/2000, 79/2002 e 120/2002).»
79.º – Ora, no presente caso, afigurou‑se de todo «insólito» e
«imprevisível», repete‑se, a aplicação retroactiva da Portaria n.º 168‑A/2004,
com sentido interpretativo do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, de um modo
triplamente inusitado, seja pela retroactividade, seja por se admitir uma mera
portaria a interpretar uma Lei de Bases, seja por se consentir uma interpretação
restritiva de direitos fundamentais.
80.º – Efectivamente, não é despiciendo lembrar, em particular
perante o Tribunal Constitucional, que, ao fim e ao cabo, estão em causa nos
autos, e na própria questão de inconstitucionalidade suscitada, direitos
fundamentais!
81.º – Ora, como refere Cristina Queiroz [«Justiça Constitucional e
Interpretação da Constituição», in Nos 25 Anos da Constituição da República
Portuguesa de 1976, Evolução Constitucional e Perspectivas Futuras, AAFDL, pp.
627/628]:
«Só que a ‘protecção dos direitos fundamentais’ não é um assunto de
Estado ou de legislação, mas uma protecção constitucional, posto que: (a) os
direitos não são criados pelo Estado, que se limita a reconhecer a sua
existência, que corresponde à existência do homem; (b) fundamentais ainda porque
não se fundam em actos legislativos, mas na natureza do homem no momento do seu
nascimento. Por isso encontram‑se subtraídos a todo o acto de Estado ou de
legislação. O Estado não pode subtraí‑lo ao cidadão, nem o cidadão pode
renunciar a estes.»
82.º – Como nota final, e porque tal torna ainda mais evidente a
inconstitucionalidade suscitada, diga‑se que o quadro legislativo actual já não
é o da Lei n.º 2125, nem o das Portarias n.ºs 936‑A/99, de 22 de Outubro, e
168‑A/2004, de 18 de Fevereiro, sendo que a evolução legislativa, apesar de mais
ampla, vai mais no sentido da Portaria de 1999 do que da de 2004.
83.º – A verdade é que, através da Proposta de Lei n.º 124/X, a
Assembleia da República concedeu ao Governo autorização (Lei n.º 20/2007, de 12
de Junho), no sentido de alterar as regras da propriedade de farmácia.
84.º – Assim, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 124/X,
refere‑se: «Pretende‑se modificar um regime jurídico desadequado e
injustificadamente limitador do acesso à propriedade, afastando as regras que a
restringem exclusivamente a farmacêuticos» (V. idêntico texto no preâmbulo do
Decreto‑Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto).
85.º – E mais adiante consigna‑se: «Pretende‑se equilibrar o livre
acesso à propriedade e evitar a concentração, através de uma limitação,
proporcional e adequada, a quatro farmácias» (V. idêntico texto no preâmbulo do
Decreto‑Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, bem como ainda o artigo 15.º do mesmo
diploma).
86.º – Daqui decorre que qualquer cidadão ou empresa (farmacêutico,
ou não) passará a poder, não apenas concorrer à instalação de farmácia, mesmo
que já seja proprietário de outras três, como poderá passar a ser efectivamente
titular de quatro farmácias e respectivos alvarás, tornando a questão dos autos
algo do passado e cuja decisão, por parte do STA, implicou a interpretação
inconstitucional das disposições legais identificadas nos autos.
Por tudo isto, deve ser considerada procedente a presente reclamação
para a conferência e proferido Acórdão confirmando a admissão do recurso, que
deverá prosseguir os seus trâmites até final.”
1.3. Notificada da dedução desta reclamação, a recorrida
B. apresentou a seguinte resposta:
“1 – Se atentarmos nas «citações» invocadas pela reclamante,
verificamos que elas nada têm a ver com as questões apreciadas na douta decisão
sumária,
2 – Quando esta, em argumentação precisa e contundente, demonstra
que a questão da inconstitucionalidade não foi levantada pela mesma reclamante,
a) antes de proferido o acórdão de 2 de Maio de 2006,
b) e que só foi levantada pela primeira vez nos autos em
requerimento de aclaração e de rectificação de erros materiais do acórdão que
aplicou o critério normativo questionado,
c) quando já se encontrava esgotado o poder jurisdicional do
tribunal sobre a questão de mérito.
d) Aliás, o posterior acórdão de 7 de Novembro de 2006 não fez
aplicação de quaisquer normas inconstitucionais, mas apenas dos artigos 667.º,
n.º 1, e 669.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
3 – Acrescentar‑se‑á que a reclamante não logrou suscitar, em termos
adequados, a questão da inconstitucionalidade,
a) já que não substanciou os respectivos fundamentos,
b) isto é, não expôs as razões pelas quais entendia que o dito
critério normativo violaria os artigos 20.º, n.º 5, 13.º, n.º 1, e 112.º, n.º
5, da Constituição.
4 – Finalmente, dir‑se‑á que a pretensão da reclamante vai contra o
entendimento unânime (?) deste Venerando Tribunal em dezenas (centenas?) de
casos semelhantes.
Termos em que se deverá confirmar a mesma douta decisão sumária,
como é de Justiça.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Da fundamentação desenvolvida na reclamação da
decisão sumária resulta que a esta são apontados, essencialmente, dois erros:
incorrecta identificação da decisão recorrida e não reconhecimento como insólita
ou inesperada da interpretação normativa aplicada no Tribunal a quo, em termos
de incluir o presente caso no grupo daqueles em que se considera dispensável o
cumprimento do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade antes da
prolação da decisão impugnada.
2.1. No requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, referiu a recorrente que “não se conformando com o
teor do acórdão proferido nos autos, em 2 de Maio de 2006, complementado pelo
acórdão de 6 de Novembro de 2006, pelo qual se acordou «deferir o pedido de
correcção de erros materiais e indeferir o pedido de aclaração» daquele acórdão,
deste vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional …”.
Na decisão sumária reclamada entendeu‑se que, ao referir
que “deste vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional”, a recorrente
visou o último acórdão citado (o de 6 [aliás, 7] de Novembro de 2006), e não o
primeiro acórdão (de 2 de Maio de 2006), a que acabara de se referir como sendo
“aquele”.
De qualquer forma, e prevenindo a ocorrência de
deficientes expressão ou compreensão da vontade da recorrente, já que
patentemente fora o acórdão de 2 de Maio de 2006, e não o de 7 de Novembro de
2006, que fizera aplicação dos preceitos a seguir mencionados nesse
requerimento, a decisão sumária assentou o não conhecimento do recurso num
duplo fundamento: (i) falta de aplicação das normas cuja constitucionalidade se
pretendia ver apreciada, partindo do pressuposto que o recurso tinha por objecto
o último acórdão; e (ii) falta de suscitação da questão da
inconstitucionalidade das normas aplicadas no primeiro acórdão como ratio
decidendi, antes da prolação deste, apesar de a recorrente haver disposto de
oportunidade processual para o fazer e de a interpretação normativa acolhida
pelo tribunal a quo não se poder considerar inesperada, anómala ou insólita.
2.2. Esclarecido agora que o acórdão recorrido é o de 2
de Maio de 2006, para a decisão da presente reclamação a única questão relevante
consiste, assim, em determinar se o critério normativo nele aplicado se deve
considerar inesperado, em termos de dispensar o cumprimento do ónus da prévia
suscitação da questão de inconstitucionalidade, como sustenta a reclamante, ou
se, ao invés, a adopção de tal critério era previsível e, por isso, a omissão
desse ónus determina a inadmissibilidade do recurso, como se entendeu na decisão
reclamada.
Para este efeito, importa salientar que, desde o início
do litígio, estiveram em confronto duas leituras distintas da norma do n.º 3 da
Base II da Lei n.º 2125: segundo a recorrente contenciosa, tal norma não
permitia a um farmacêutico que fosse titular de um alvará de farmácia
apresentar‑se a concurso para atribuição de um novo alvará; segundo a entidade
recorrida e a recorrida particular (ora recorrente), tal impossibilidade não
existia, pois a lei apenas visava obstar à titularidade simultânea de mais do
que um alvará e essa situação não decorria directamente da eventual vitória no
concurso, podendo, entre o termo deste e a concessão do alvará, o candidato
vencedor alienar o primeiro alvará.
A tese da recorrente contenciosa foi por ela reiterada
nas alegações do recurso jurisdicional interposto para o STA, tendo a ora
reclamante tido oportunidade processual, nas contra‑alegações que apresentou
nesse recurso, de suscitar a questão da inconstitucionalidade dessa
interpretação normativa, o que não fez, como ela própria reconhece.
O acórdão de 2 de Maio de 2006 perfilhou a leitura da
norma do n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125 defendida pela então recorrente,
considerando, consequentemente, ilegal qualquer interpretação do artigo 7.º, n.º
1, alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99, que contrariasse aquele comando legal,
designadamente a acolhida na sentença então impugnada, no sentido de que os
titulares de alvarás de farmácia há mais de 10 anos podiam concorrer aos
concursos de instalação de novas farmácias, posição esta que era também a
defendida pela ora recorrente.
Para completa dilucidação da questão, interessará,
apesar da sua extensão, reproduzir na íntegra a fundamentação jurídica do
acórdão do STA de 2 de Maio de 2006:
“2.2. O DIREITO
2.2.1. Por precedência lógica conheceremos, em primeiro lugar, do
erro de julgamento alegado no recurso da sentença final, reportado à violação do
disposto no n.º 3 da Base II da Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965, questão
que, a proceder, assegura a mais eficaz tutela judicial à recorrente e prejudica
o conhecimento de todas as demais.
No recurso contencioso, a recorrente alegou a violação de tal
preceito, argumentando que, sendo as recorridas particulares donas de farmácias,
à data do concurso, não podiam, no quadro jurídico ao tempo vigente,
candidatar‑se à atribuição de um novo alvará.
A sentença recorrida julgou improcedente «o invocado vício de
violação de lei».
Convoquemos, então, antes de mais, as normas relevantes de acordo
com o princípio tempus regit actum:
Lei n.º 2125
(…)
BASE II
1. As farmácias só poderão funcionar mediante alvará passado pela
Direcção‑Geral de Saúde. O alvará é pessoal, só pode ser concedido a quem é
permitido ser proprietário de farmácia e caduca em todos os casos de
transmissão, salvo nas hipóteses previstas na lei.
2. O alvará apenas poderá ser concedido a farmacêuticos ou a
sociedades em nome colectivo ou por quotas, se todos os sócios forem
farmacêuticos e enquanto o forem.
3. A nenhum farmacêutico ou sociedade poderá ser concedido mais de
um alvará. Igualmente nenhum farmacêutico poderá pertencer a mais de uma
sociedade ou pertencer a ela e ser proprietário individual de uma farmácia.
Nenhum farmacêutico, quando proprietário de uma farmácia ou gerente
técnico de uma sociedade, pode desempenhar qualquer função incompatível com o
exercício efectivo da actividade farmacêutica.
4. (…)
Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro
Artigo 7.º
1 – Sem prejuízo de outros casos previstos na lei, não poderão
concorrer:
a) Os candidatos em nome individual ou sociedade que tenham obtido
alvará há menos de 10 anos, por instalação, por transferência ou por trespasse;
b) As sociedades que integrem um ou mais sócios nas condições
previstas na alínea anterior.
2 – (…)
3 – (…)
Aplicando estas normas, depois de ter explicitado que ambas as
recorridas particulares eram já, à data do concurso, proprietárias de
farmácias, a sentença impugnada desenvolveu o seguinte raciocínio:
«(…) Das disposições legais transcritas, aplicáveis ao concurso em
questão, resulta que os candidatos que sejam titulares de alvarás de farmácia
há mais de 10 anos podem concorrer aos concursos de instalação de novas
farmácias.
Consequentemente podem concorrer ao concurso para a instalação de
uma nova farmácia no lugar de Nespereira as candidatas classificadas em 1.º (A.)
e 2.º (B.) lugar, recorridas particulares nos presentes autos, pois as mesmas
são titulares de alvará há 19 e 13 anos, respectivamente.
Assim, por força do disposto no n.º 1 do artigo 7.º da Portaria n.º
936‑A/99, de 22 de Outubro, que a recorrente considera infringido pelo acto
recorrido, inexiste qualquer impedimento em as recorridas particulares
concorrerem ao concurso.
Por outro lado, a Base II da Lei n.º 2125, de 20 de Março de 1965,
impede é que a entidade competente conceda a um farmacêutico ‘mais de um
alvará’.
Ora, o acto recorrido apenas concede à recorrida particular
classificada em 1.º lugar no concurso e, sucessivamente, à classificada em 2.º
lugar em caso de desistência daquela ou de existência de algum impedimento
superveniente, o direito de instalar uma nova farmácia, pois a emissão do
alvará que titulará esse direito apenas se verificará em momento posterior, após
a realização de vistoria que ateste que se encontrem satisfeitas as condições
para a abertura e instalação da farmácia.
Como bem refere a entidade recorrida e o Ministério Público, a
emissão de alvará é posterior à deliberação objecto de recurso nos presentes
autos, sendo apenas requisito da eficácia da mesma.
Isto é, potencialmente a violação do estabelecido na Base II da Lei
n.º 2125 pode vir a verificar‑se no acto de emissão do alvará, a não se
verificarem os respectivos requisitos legais, sendo tal acto sindicável a seu
tempo.
Ao contrário do que alega o recorrente, cremos que absurdo seria um
farmacêutico proprietário de uma farmácia ficar toda a sua vida profissional
vinculado à mesma, não lhe sendo permitido dentro de prazos legais razoáveis de
permanência a uma determinada comunidade candidatar‑se e, consequentemente,
instalar uma outra farmácia no local que sempre para si foi eleito como
preferência, mas que só agora reuniu as condições necessárias para a instalação
de uma farmácia.
É claro que concordamos com a recorrente quando se refere às
‘negociatas’ na obtenção de um segundo alvará para a obtenção de um preço
inflacionado. Acreditamos que, muitas vezes, o que dita a obtenção do direito de
instalar uma nova farmácia, não terá tanto a ver com a comunidade e razões de
ordem pessoal e realização profissional, mas sim razões meramente financeiras,
obtenção de um óptimo negócio através do trespasse do alvará da farmácia de quer
é detentor. No entanto, tal situação, quiçá injusta, ultrapassa em muito o que
nos importa conhecer pelo presente recurso e em nada contende ou resulta a sua
resolução por via das disposições que a recorrente considera serem violadas.
Posto isto, andou bem o júri do concurso e, consequentemente, o
Conselho de Administração do INFARMED ao homologar a lista de classificação
final dos candidatos ao concurso para a instalação de uma farmácia no lugar de
Nespereira.»
A recorrente discorda, dizendo, no essencial, que:
(i) a lei consagra o princípio da indivisibilidade entre a
propriedade e a direcção técnica, reservando aos farmacêuticos a atribuição de
alvarás de acordo com a regra uma farmácia, um proprietário, um director
técnico;
(ii) de acordo com o disposto na Base II da Lei n.º 2125, quem for
já proprietário de uma não pode ser opositor a concurso para instalação de
novas farmácias;
(iii) da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Portaria n.º
936‑A/99, de 22 de Outubro, não resulta que os candidatos em nome individual ou
as sociedades que tenham obtido alvará há mais de 10 anos possam concorrer e
obter um novo alvará, quando ainda são proprietários do mesmo. A norma deve ser
interpretada no sentido de que foi pura e simplesmente restringido o acesso a
novos alvarás dos candidatos que obtiveram alvará há menos de 10 anos,
independentemente de na data da abertura do concurso já não serem proprietários
do mesmo.
2.2.2. Apresentadas as teses em confronto, comecemos pela
interpretação da regulação primária.
No enunciado linguístico da Base II da Lei n.º 2125 surge o conceito
de «alvará». Ora, no nosso ordenamento jurídico‑administrativo, de acordo com a
noção legal que ao tempo estava plasmada no artigo 356.º do Código
Administrativo, entendia‑se por alvará, nas palavras de Marcelo Caetano, in
Manual de Direito Administrativo, vol. I, p. 196, o «documento firmado pela
autoridade competente pelo qual esta faz saber a quem dele tome conhecimento a
existência de certo direito constituído em proveito de determinada pessoa»
(cf., no mesmo sentido, Henrique Martins Gomes, in Dicionário Jurídico da
Administração Pública, vol. I, p. 373).
E não há subsídio interpretativo que sugira que, numa interpretação
actualista, reportada à data da prática do acto impugnado, devesse atribuir‑se
ao alvará outro alcance. Veja‑se noção idêntica no artigo 94.º da Lei n.º
169/99, de 18 de Setembro, alterada pela Lei n.º 5‑A/2002, de 11 de Janeiro,
cujo texto é o seguinte: «salvo se a lei prescrever forma especial, o título dos
direitos conferidos aos particulares por deliberação dos órgãos autárquicos ou
decisão dos seus titulares é um alvará expedido pelo respectivo presidente».
Portanto, no caso em análise, o alvará deve ser entendido como mero
título que publicita uma decisão da Administração pela qual foi concedido a
determinado farmacêutico o direito à propriedade e exploração de uma farmácia.
Temos, assim que, na Base II, as formulações «o alvará apenas poderá
ser concedido a farmacêuticos» (n.º 2) e «a nenhum farmacêutico ou sociedade
poderá ser concedido mais de um alvará» (n.º 3) equivalem a dizer,
respectivamente, que só os farmacêuticos podem ser proprietários de farmácia e
que nenhum deles pode ser proprietário de mais de uma farmácia.
Deste modo, da Lei n.º 2125 resultam importantes limitações ao
direito de propriedade e à liberdade de iniciativa privada. Uma delas afecta os
cidadãos em geral, na medida em que reserva aos farmacêuticos o acesso à
propriedade da farmácia. A outra atinge os farmacêuticos que já detenham a
propriedade, pois que é inequívoco, nos termos da Base II, que o farmacêutico
que for proprietário de farmácia não pode ver constituído na sua esfera jurídica
o direito à propriedade de uma nova farmácia.
E, recorde‑se, este regime restritivo, assente na indissociação
entre a propriedade e a direcção técnica das farmácias, foi já considerado
legítimo pelo Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 76/85, publicado no Diário da
República, II Série, n.º 131, de 8 de Junho de 1985), que o julgou meio adequado
para prosseguir os objectivos de protecção da saúde pública que
constitucionalmente incumbem ao Estado.
Dito isto, passemos ao direito secundário, tendo presente que, em
honra aos princípios da hierarquia das fontes e da primariedade da lei (artigo
112.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), a dupla restrição
contida na lei superior haverá de ser respeitada no acto normativo inferior, no
caso, a Portaria n.º 936‑A/99, de 23 de Outubro, diploma que, a coberto da
habilitação conferida pelo artigo 50.º do Decreto‑Lei n.º 48 547, de 27 de
Agosto de 1968, fixa as condições de abertura de novas farmácias, sendo de
rejeitar as prescrições que contrariem a Lei n.º 2125.
A sentença recorrida interpretou a norma do artigo 7.º, n.º 1,
alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99, supra transcrita, com o sentido que dela
«resulta que os candidatos que sejam titulares de alvarás de farmácia há mais de
10 anos podem concorrer aos concursos de instalação de novas farmácias».
Ora, a ser esse o sentido prevalente da norma, a mesma seria,
seguramente, violadora da Base II da Lei n.º 2125, pois que com ela seria
possível constituir na esfera jurídica de quem já é proprietário de farmácia o
direito à propriedade de uma outra.
Na verdade, na arquitectura do procedimento do concurso para a
instalação de nova farmácia, tal como a desenha a Portaria n.º 936‑A/99,
destacam‑se os seguintes traços relevantes para o caso em análise:
(i) o acto constitutivo do direito não é a emissão do alvará, mas a
decisão de homologação da lista de classificação dos concorrentes, da qual, nos
termos do artigo 11.º, n.º 2, «cabe recurso contencioso, a interpor nos termos e
prazos definidos na lei geral»;
(ii) a passagem do título é posterior e situa‑se no denominado
«processo de instalação» e abertura ao público (artigos 12.º a 15.º). Neste
processo, a autorização caducará se o concorrente classificado em primeiro lugar
não apresentar os documentos elencados no artigo 12.º, n.º 1, no prazo de 75
dias a contar da data da publicação daquela lista no Diário da República e/ou se
não instalar a farmácia dentro de 360 dias a contar da mesma publicação, «a fim
de ser efectuada a vistoria» (artigo 13.º, n.ºs 1 e 2). Se não tiver ocorrido a
caducidade da autorização, o alvará será, então, emitido, se a vistoria,
destinada apenas «a verificar a conformidade da instalação com os requisitos
gerais estabelecidos», considerar a instalação nas devidas condições (artigos
14.º da Portaria n.º 936‑A/99 e 48.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto‑Lei n.º 48 547);
(iii) a lei não comete à Administração, na fase de emissão do
alvará, poderes de, por esse meio e nesse momento, proceder a indagações acerca
dos requisitos de candidatura e das condições de acesso à propriedade da nova
farmácia a concurso.
Neste contexto, a emissão do alvará não tem por finalidade
reapreciar a validade do acto administrativo de autorização e só pode ser
recusada se, porventura, se verificar alguma das sobreditas causas de
caducidade ou se a instalação propriamente dita, o novo espaço físico destinado
à preparação, conservação e distribuição de medicamentos, não respeitar as
exigências gerais estabelecidas, nomeadamente de índole sanitária e de
segurança.
Não há dúvida, portanto que, na interpretação da sentença recorrida,
quem for proprietário de farmácia há mais de 10 anos pode, candidatando‑se, ver
constituído em seu favor o direito à propriedade e exploração de uma outra
farmácia. Esse resultado interpretativo, porém, viola o disposto na Base II da
Lei n.º 2125, fonte normativa de hierarquia superior, pelo que, com tal alcance,
tem de rejeitar‑se a aplicação da regra do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da
Portaria n.º 936‑A/99, de 22 de Outubro.
Feito este caminho, perguntar‑se‑á se é ainda possível interpretar a
norma em causa com uma outra dimensão normativa útil e conforme com o princípio
da hierarquia das fontes. Uma delas será, eventualmente, como alega a
recorrente, o sentido que ela reforça a restrição e impede a candidatura de
todos os farmacêuticos que tenham tido acesso à propriedade de farmácia há menos
de 10 anos, independentemente de na data do concurso já não serem proprietários.
Este é, aliás, a nosso ver, o único sentido possível da lei a seguir
à publicação da Portaria n.º 168‑A/2004, de 18 de Fevereiro, que, depois de
afirmar expressamente, no respectivo preâmbulo, que importa «determinar a
impossibilidade de oposição aos concursos por parte de farmacêuticos já
proprietários de farmácia, individual ou colectivamente», modificou a redacção
do artigo 5.º, n.º 1, da Portaria n.º 936‑A/99, cujo texto passou a ser este: «1
– Podem concorrer os farmacêuticos ou as sociedades em nome colectivo ou por
quotas a quem é permitido ser proprietário de farmácia, nos termos da Lei n.º
2125, de 20 de Março de 1965, e desde que não sejam titulares de alvará de
farmácia, a título individual ou colectivo.»
Todavia, no caso em apreço, nem a norma foi aplicada com tal
dimensão normativa, nem a situação é nela enquadrável, uma vez que a recorrida
particular era ainda, à data da concurso, dona da Farmácia Sampaio, da qual era
proprietária desde 1989, portanto há mais de 10 anos.
É, pois, questão que não releva para o presente recurso.
Em suma: procede a alegação do recurso interposto da sentença final
reportado ao erro de julgamento por violação do n.º 3 da Base II da Lei n.º
2125, de 20 de Março de 1965, ficando prejudicado o conhecimento de todas as
demais questões suscitadas, incluindo as do recurso que tem por objecto o
despacho que julgou inadmissível o articulado superveniente.”
Resulta linearmente da leitura desta fundamentação que
em parte alguma o acórdão em causa procedeu, de modo “insólito” e
“imprevisível”, à “aplicação retroactiva da Portaria n.º 168‑A/2004, com sentido
interpretativo do n.º 3 da Base da II da Lei n.º 2125”, como sustenta a
reclamante.
O acórdão abre com a convocação das “normas relevantes
de acordo com o princípio tempus regit actum”, identificando‑as como sendo a
Base II da Lei n.º 2125 e o artigo 7.º da Portaria n.º 936‑A/99 (e não qualquer
norma da Portaria n.º 168‑A/2004).
Depois de transcrever a parte relevante da fundamentação
da sentença então impugnada e de sumariar as razões de discordância da então
recorrida (entre as quais a tese de que “de acordo com o disposto na Base II da
Lei n.º 2125, quem for já proprietário de uma não pode ser opositor a concurso
para instalação de novas farmácias”), o acórdão começa pela “interpretação da
regulação primária”, concluindo que “nos termos da Base II, (…) o farmacêutico
que for proprietário de farmácia não pode ver constituído na sua esfera
jurídica o direito à propriedade de uma nova farmácia”. É esta interpretação da
Base II da Lei n.º 2125 que constitui o fundamento determinante da decisão
acolhida no acórdão em causa e essa interpretação nada tem de imprevisível, quer
em si mesma considerada, quer por ser a sustentada pela então recorrente, pelo
que a ora reclamante, para abrir a possibilidade de interposição de recurso de
constitucionalidade, podia e devia ter suscitado a questão da
inconstitucionalidade dessa interpretação nas contra‑alegações que endereçou ao
STA.
O acórdão em causa passou depois “ao direito
secundário”, para considerar o disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da
Portaria n.º 936‑A/99, a propósito do qual concluiu pela rejeição da
interpretação acolhida na sentença então impugnada (e também defendida pela ora
reclamante), segundo a qual os titulares de alvarás de farmácia há mais de 10
anos podiam concorrer aos concursos de instalação de novas farmácia,
interpretação tida por incompatível com o sentido antes fixado à norma da Base
II da Lei n.º 2125 e, consequentemente, ofensiva do princípio da hierarquia das
fontes de direito e da primariedade da lei.
Por fim, o acórdão levanta uma última questão, que acaba
por não resolver por considerá‑la irrelevante no caso. Traduzia‑se tal questão
em saber se ainda era possível interpretar a norma da Portaria n.º 936‑A/99 com
outro sentido útil e conforme com o princípio da hierarquia das fontes,
recordando que a então recorrente aventara a hipótese de a norma visar impedir a
candidatura de todos os farmacêuticos que tivessem tido acesso à propriedade de
farmácia há menos de 10 anos, independentemente de na data do concurso já não
serem proprietários. Só a este propósito – isto é: para efeito de descortinar
algum sentido útil ao artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99, e
não para interpretar a Base II da Lei n.º 2125, cujo sentido e alcance já haviam
sido anteriormente fixados, sem qualquer hesitação – é que o acórdão cita a
Portaria n.º 168‑A/2004 para referir que após ela era esse “o único sentido
possível da lei” (resultando claramente do contexto da frase que a palavra
“lei” não é reportada à Lei n.º 2125, sendo usada no sentido da “norma” cuja
interpretação se questionava e que era a do preceito da Portaria de 1999), para
logo concluir que se trata de “questão que não releva para o presente recurso”,
por a norma (da Portaria de 1999) não ter sido aplicada com a dimensão normativa
aventada pela então recorrente, nem a situação do caso era nela enquadrável,
por a então recorrida particular (ora reclamante) ser proprietária de outra
farmácia há mais de 10 anos.
Conclui‑se, assim, que esta alusão à Portaria n.º
168‑A/2004 constitui um mero obter dictum e, de qualquer forma, não tem a mínima
base de sustentação no teor do acórdão recorrido a tese da reclamante de que
este teria procedido a uma imprevisível aplicação retroactiva dessa Portaria ao
proceder à interpretação da Base II da Lei n.º 2125. Na interpretação desta
Base, a que procedeu logo ao determinar a “regulação primária” aplicável ao
caso, o acórdão em causa cingiu‑se ao teor desse preceito, e foi essa
interpretação – coincidente com a defendida pela então recorrente – que
determinou, desde logo, o sentido da decisão. Em suma: o critério normativo
adoptado como ratio decidendi pelo acórdão recorrido – fundado decisivamente na
Base II da Lei n.º 2125, conducente à ilegalidade da interpretação do artigo
7.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 936‑A/99 acolhida na sentença então
impugnada, e sem qualquer interferência do que viria a ser regulado pela
Portaria n.º 168‑A/2004 – nada tem de inesperado ou imprevisível, pelo que não
estamos perante uma daquelas situações insólitas ou anómalas em que se considera
o recorrente dispensado do ónus da prévia suscitação da questão de
inconstitucionalidade.
Não tendo a reclamante cumprido este ónus, o recurso
interposto surge como inadmissível, o que determina o não conhecimento do seu
objecto, com se sustentou na decisão sumária reclamada.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Abril de 2008.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos