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Processo n.º 638/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público,
o primeiro vem interpor ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional [de ora em
diante, designada por LTC], do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02 de
Maio de 2007 (fls. 36 a 41), que recusou conhecer do objecto de recurso
extraordinário para uniformização de jurisprudência, interposto pelo recorrente,
relativo a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que, por sua vez, rejeitou o
recurso interposto de decisão do 2º Juízo Criminal de Loures, por considerar que
esta última decisão era irrecorrível.
Segundo o entendimento do recorrente, a decisão recorrida aplicou normas feridas
de inconstitucionalidade, pelo que solicita ao Tribunal Constitucional que
aprecie a:
i) “(…) inconstitucionalidade interpretativa da norma
contida no n.º 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal na interpretação
emergente da doutíssima decisão que rejeitou o recurso extraordinário para
fixação de jurisprudência de que «(…) entendendo-se que o fundamento do recurso
de fixação de jurisprudência é a identidade da questão de direito regulada nas
decisões em conflito, é evidente que tal requisito não se observa quando uma
questão é explicitamente regulada numa daquelas decisões, e constitui
antecedente mediato, e implícito em relação a outra com objecto diferente.
Entendendo-se, assim, neste segmento, que não consubstancia uma divergência
sobre a mesma questão de direito», quando em causa estão decisões que fazem caso
julgado absolutamente antagónicos, que julgam, num caso, um recurso tirado sobre
a decisão judicial que apreciou e confirmou a decisão administrativa de
indeferir o benefício de protecção jurídica, e no outro, se inadmitiu tal
recurso versando a mesma matéria, com os mesmo factos e requerente (…)” (fls. 44
e 45);
ii) “(…) inconstitucionalidade interpretativa da norma
colhida no n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, no artigo
399.º do Código de Processo Penal e no n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil, na
sua conjugação e concomitância, na interpretação dada na decisão recorrida sob
recurso de fixação de jurisprudência de que a retirada expressa da menção a
«última instância» plasmada na lei anterior, a Lei n.º 30-E/2000, de 20 de
Dezembro, se entende simplesmente como uma «técnica legislativa melhorada»
mantendo intangível o espírito legislativo anterior em função da necessária
celeridade processual a dar ao processo de apreciação do instituto de protecção
jurídica” (fls. 46).
2. Notificado para alegar, o recorrente apresentou as suas
alegações, cujas conclusões foram as seguintes:
“1ª A reclamação para a Presidência da Relação prevista no art.° 405.° do
Código de Processo Penal tem carácter definitivo quando confirma a inadmissão ou
retenção, sem prejuízo de não vincular o tribunal ad quem caso o admita ou mande
subir, tudo bem expresso no n.º 4 da sobredita norma adjectiva.
2ª Esta pendência de decisão definitiva no caso de provimento da
reclamação torna-a parte integrante do recurso porque a sujeita a eventual
reapreciação no tribunal de recurso.
3ª Daí que, estando em confronto dois acórdãos de uma mesma Relação
incidentes e com solução diametralmente oposta sobre uma mesma questão de
direito, no âmbito de uma única e mesma lei, qual seja saber se o recurso tirado
sobre a decisão que julga a impugnação judicial da decisão administrativa que
indefere o instituto de protecção jurídica, é admissível segundo as regras do
artigo 28.°, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, e do artigo 399.° do
Código de Processo Penal, se esteja ante uma patente oposição de julgados
subsumível ao recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
4ª Pois que no acórdão fundamento só a submissão à decisão tirada em
sede de reclamação e consequente adesão à tese filosófica-jurídica de admissão
desse recurso tornou inútil a sua reapreciação, sequer a sua menção, sem que daí
se possa retirar pacificamente que esse aresto não incide sobre essa mesma
questão prévia, pois que tem a sustentá-lo o antes decidido que, por essa
adesão, fica a fazer dele parte integrante.
5ª Este acórdão dado como fundamento ao recurso só chega à apreciação do
mérito do recurso após ter visto decidido em sede incidental preliminar a
questão prévia da sua admissibilidade, pelo que no seu confronto com o acórdão
recorrido se está perante um verdadeiro caso de causa causae est causa causatis.
6ª O acórdão do superior tribunal a quo viola assim, na interpretação
que faz da norma do art.° 437.° do Código de Processo Penal, os imperativos dos
artigo 13.°, artigo 20°, nºs 1, 4 e 5, artigo 22.°, artigo 32.°, nºs 1 e 7,
artigo 202.°, n.º 2, e artigo 203.°, da Constituição da República Portuguesa,
tida que é pelo recorrente como correcta a que emana das conclusões anteriores.
7ª Violação grave na justa medida em que a apreciação de petição do
instituto de Protecção Jurídica não configura bagatela jurídica, antes se
apresenta como questão essencial por, a montante da causa onde se litigará,
impedir o acesso ao direito e aos tribunais pelo cidadão economicamente
carenciado.
8ª Sendo que o recurso da decisão judicial tirada sobre a impugnação do
acto administrativo que tenha indeferido a concessão desse instituto é, na
realidade, o primeiro e único recurso jurisdicional.
9ª A sua admissibilidade não está vedada por lei, nem nas excepções
previstas no art.° 400.° do Código de Processo Penal, nem no n.º 1 do art.° 28.°
da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, não podendo existir qualquer razão para
interpretar esta norma de modo diverso do que a sua letra expressa, por absoluta
omissão.
10ª Sendo a regra geral, a do art.° 399.° da aludida lei adjectiva penal,
a aplicável pois que a irrecorribilidade tem que estar expressa taxativamente.
11ª Sem que sequer se possam esgrimir quaisquer outros motivos,
designadamente de índole histórico ou de celeridade, que obstem a esta
interpretação.
12ª Muito menos a expressão “Alcance da decisão final” plasmada a art.°
29. ° da mesma Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, pode ser entendida noutro
sentido que não sendo a definitiva, a que já não admite recurso judicial, a
transitada em julgado.
13ª É, pois, recorrível por nada estar expresso nessas normas legais no
sentido contrário, devendo estar se o não fosse, segundo a regra do citado art.°
399.° do Código de Processo Penal.
14ª A interpretação legislativa das normas arguidas plasmada pelos
tribunais a quo viola o direito do cidadão carenciado a aceder de forma célere e
equitativa ao direito e aos tribunais, sindicando as decisões judiciais que se
lhe afigurem de erradas e/ou ilegais, competindo aos tribunais, em primeira
linha, tutelar tais direitos, assegurando o seu exercício, em submissão à lei e
à constituição, seja qual for a posição desse cidadão na acção a dirimir.
15ª Devendo, em conformidade, ser declarada a inconstitucionalidade das
normas dos artigos 27. °, 28.°, n.º 1, e 29.° da Lei n.º 34/2004, de 29 de
Julho, e do art.° 399.° do Código de Processo Penal, na interpretação dada,
contrária ao sentido emergente da norma do n.° 2 do art.° 9.° do Código Civil,
de que a decisão judicial tirada da impugnação do acto administrativo é
irrecorrível por violar os imperativos dos artigo 20°, nºs 1, 4 e 5, artigo
32.°, nºs 1 e 7, artigo 202°, n.º 2, e artigo 203.° da Constituição da República
Portuguesa.” (fls. 55 a 64)
3. Por sua vez, na sequência de notificação para tal, o Ministério Público veio
contra-alegar o seguinte:
“1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso vem interposto por A., do acórdão, proferido pelo Supremo
Tribunal de Justiça, que rejeitou o recurso, visando a fixação de
jurisprudência, interposto com fundamento em alegada contradição de acórdãos da
Relação, referentemente à questão da recorribilidade da decisão que, em 1ª
instância, confirme o indeferimento administrativo do beneficio de apoio
judiciário, peticionado pelo recorrente.
Entendeu o Supremo — como critério normativo definidor dos pressupostos daquele
recurso extraordinário — que ele só é admissível quando os acórdãos em confronto
se hajam pronunciado explicitamente e em termos frontalmente antagónicos sobre a
mesma questão — não sendo, consequentemente, de admitir o recurso quando um dos
acórdãos em confronto haja dirimido certa questão processual (a da referida
recorribilidade) e o outro se tenha pronunciado exclusivamente sobre o mérito da
causa (apenas pressupondo, de forma implícita, a resolução da referida questão
processual no sentido da admissibilidade do recurso).
Como é evidente, o único parâmetro de aferição da constitucionalidade que faz
sentido convocar é a do acesso ao direito por parte do assistente (artigos 20º e
32°, nº 7 da Constituição da Republica Portuguesa).
Violará o referido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça o direito de
acesso à justiça por parte do assistente que pretende lançar mão do recurso
extraordinário de fixação de jurisprudência?
A argumentação do recorrente funda-se num evidente equívoco: o do que o direito
do acesso aos tribunais envolve, por imposição constitucional, a consagração de
mecanismos processuais destinados a solucionar todos os conflitos
jurisprudenciais, isto é, todas as divergências de entendimento dos tribunais
superiores acerca de certa matéria ou questão.
É evidente que não é assim, não estando contido no artigo 20° da Constituição um
direito irrestrito a ver solucionadas pelo Supremo todas as divergências de
entendimento da Relação sobre certa matéria de direito — expressas ou implícitas
— nos acórdãos invocados como estando em confronto.
Na verdade — e mesmo por quem entenda que do princípio da segurança jurídica se
pode inferir a necessária existência de mecanismos processuais adequados à
uniformação da jurisprudência (cf. acórdão nº 574/98) — é evidente que o
legislador infraconstitucional goza de razoável margem de discricionariedade na
delimitação dos conflitos que merecem ser solucionados pela via do referido
recurso visando a uniformização de jurisprudência.
No caso ora em apreciação, não constitui exigência desrazoável ou
desproporcionada a que se traduz em considerar que só quando os acórdãos em
confronto hajam aplicado, de forma contraditória e expressa, as mesmas normas
fica aberta a via recursória utilizada pelo recorrente — por só neste caso o
conflito assumir relevância bastante para justificar o acesso ao plenário das
secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
Note-se que fenómeno idêntico se verifica inclusivamente em processo
constitucional, face ao regime estatuído no artigo 79° D da Lei do Tribunal
Constitucional: para além de não ser admitido recurso para o plenário quando as
interpretações divergentes se referirem a normas de natureza adjectiva, situadas
na tramitação do processo constitucional, o recurso pressupõe necessariamente
que os julgamentos contraditórios das secções se refiram à questão de
constitucionalidade de uma mesma norma, explicitamente analisada num e noutro
aresto sob o prisma da respectiva constitucionalidade.
Não viola, deste modo, qualquer princípio ou preceito constitucional a exigência
de que, em matéria penal, o conflito que serve de base ao recurso de fixação de
jurisprudência ocorra — não no âmbito da fundamentação dos arestos em confronto
— mas referentemente às próprias decisões neles tomadas, que devem ter emitido
expressamente julgamentos contraditórios sobre as mesmas normas e as mesmas
questões de direito.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1º
Não está compreendido no direito de acesso à justiça uma irrestrita
possibilidade de utilizar os tipos recursórios destinados a uniformizar a
jurisprudência perante toda e qualquer divergência de entendimento dos tribunais
superiores sobre determinada questão jurídica — situando-se inquestionavelmente
no âmbito da livre discricionariedade do legislador o estabelecimento dos
pressupostos específicos de tais recursos, de acordo com a relevância do
conflito, que deverá incidir sobre a aplicação contraditória da mesma norma na
parte decisória dos acórdãos conflituantes.
2º
Termos em que deverá improceder o presente recurso.” (fls. 71 a 74)
4. Na fase de exame preliminar, a Relatora verificou que parte do
objecto do recurso poderia não preencher os requisitos necessários ao respectivo
conhecimento, pelo que proferiu o seguinte despacho:
“Durante o exame preliminar (art. 701º, nº 1 do CPC aplicável «ex vi» art. 79º
B, nº 1 da LTC) verifiquei a ausência de aplicação efectiva como «ratio
decidendi» colhida na decisão recorrida da interpretação normativa conjugada do
n.º 1 do art. 28º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, do artigo 399º CPP e do
n.º 2 do art. 9º do Código Civil, reputada de inconstitucional pelo recorrente,
o que implica a impossibilidade de conhecimento integral do recurso interposto.
Como tal, nos termos do art. 704º/1/CPC, aplicável «ex vi» art. 79º B LTC,
determino que sejam notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem sobre
a possibilidade de não conhecimento parcial do recurso interposto relativamente
à questão de inconstitucionalidade normativa supra identificada, no prazo de 10
(dez) dias.” (fls. 75)
5. Na sequência deste despacho, o recorrente veio aos autos
pronunciar-se no seguinte sentido:
“Salvo o devido respeito, afigura-se ao recorrente que a douta decisão do STJ
colocada em crise quanto à interpretação da norma do art. 28° da Lei n 34/2004,
de 29 de Julho aplica tal norma, referindo-a expressamente, como é patente nas
páginas 5 e 6 do acórdão recorrido, que ora se transcreve parcialmente para
facilidade de apreciação:
No Acórdão recorrido a norma sujeita à interpretação e aplicação pelos
julgadores tem contornos totalmente distintos e incide sobre a questão formal da
interpretação do artigo 28 da Lei 34/2004. Aqui, o que está em causa é saber se
da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância é, ou não, admissível o
recurso para o Tribunal Superior
(…)
É evidente que sempre se poderá afirmar que o Acórdão fundamento, ao decidir
sobre a substância, pressupõe que, a seu montante, tenha sido proferida decisão
sobre a admissibilidade do recurso.
Efectivamente, esta admissibilidade deve ser objecto de análise no exame
preliminar, nos termos do artigo 417 e seguintes do Código de Processo Penal e,
sendo um pressuposto da decisão emitida e antecedendo-a, não a integra.
Esta sucinta análise da questão preliminar da admissibilidade do recurso foi
coroada com a conclusão decisória de o rejeitar por considerar que, sendo
relações explícitas e implícitas da matéria em juízo, não consubstanciam uma
mesma questão de direito, aplicando assim, ipso jure, a tese da
inadmissibilidade.
E é a aplicação efectiva da norma assim apreciada, em contrariedade com
aqueloutras invocadas, a do artigo 399º do Código de Processo Penal e do artigo
9. ° do Código Civil, que se torna o fundamento da rejeição do recurso tornando
realidade jurídica com efeitos efectivo; a tese da admissibilidade defendida
pelo recorrente.” (fls. 81)
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Não conhecimento parcial do objecto do recurso
6. Persistindo o recorrente em invocar a inconstitucionalidade da interpretação
da norma conjugada e extraída do n.º 1 do artigo 28º da Lei n.º 34/2004, do
artigo 399º do CPP e do n.º 2 do artigo 9º do Código Civil, que apenas é
imputada à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa (assim, ver “na
interpretação dada na decisão sob recurso de fixação de jurisprudência”, a fls.
46, com realce e sublinhado nosso), importa começar por frisar que estes autos
não constituem a sede própria para sindicar tal inconstitucionalidade, visto que
este recurso apenas visa colocar em crise a decisão proferida pelo Supremo
Tribunal de Justiça, em 02 de Maio de 2007, a qual não aplicou aquelas normas.
O tribunal recorrido limitou-se a aferir da verificação dos pressupostos de
interposição de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, sem que
tivesse tomado qualquer decisão de fundo quanto à norma conjugada e extraída do
n.º 1 do artigo 28º da Lei n.º 34/2004, do artigo 399º do CPP e do n.º 2 do
artigo 9º do Código Civil, pelo que estas normas não constituíram “ratio
decidendi” da decisão recorrida. Assim sendo, este Tribunal não pode conhecer do
objecto do recurso, quanto a esta parte, conforme jurisprudência consolidada e
unânime (neste sentido, a mero título de exemplo, ver Acórdãos n.º 327/07, de 29
de Maio de 2007, e n.º 495/07, de 08 de Outubro de 2007, ambos disponíveis in
www.tribunalconstitucional.pt).
B) Questão de inconstitucionalidade do artigo 437º, nº 1, do Código de
Processo Penal
7. Resta, portanto, apreciar a primeira questão de inconstitucionalidade
suscitada pelo recorrente, a qual diz respeito ao n.º 1 do artigo 437º do Código
de Processo Penal (de ora em diante, designado por CPP), cujo teor é o seguinte:
“1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça
proferir dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentem
em duas soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as
partes civis podem recorrer, para o pleno das secções, criminais, do acórdão
proferido em último lugar.”
Como já se viu, o recorrente havia lançado mão do recurso para fixação de
jurisprudência, previsto no n.º 2 do artigo 437º do CPP, com fundamento na
divergência entre acórdão proferido nos autos recorridos, pelo Tribunal da
Relação de Lisboa, e outro acórdão proferido pelo mesmo tribunal, em 26 de
Outubro de 2006, noutro processo no qual figurava o mesmo recorrente. Nos termos
deste trecho normativo, os pressupostos normativos de recursos deste tipo
correspondem aos que decorrem do supra citado n.º 1 do artigo 437º do CPP:
“2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um
tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma
ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for
admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão
estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo
Tribunal de Justiça.” (com sublinhado nosso)
Interpretando o n.º 1 do artigo 437º do CPP (“ex vi” n.º 2 do mesmo preceito e
Código), a decisão recorrida considerou que a possibilidade de aceder ao recurso
extraordinário para fixação de jurisprudência depende de tanto a decisão
recorrida como a decisão fundamento terem regulado, de modo explícito e directo,
a questão processual que constitui objecto do recurso extraordinário. Em suma, a
decisão ora alvo de recurso considerou apenas existir identidade quanto a
“questão de direito” quando ambas as decisões contraditórias tenham decidido
expressamente sobre a questão juridicamente controvertida.
Sucede que, enquanto a decisão recorrida (nos autos de fixação de
jurisprudência) decidira expressamente no sentido da irrecorribilidade
alegadamente decorrente do artigo 28º da Lei n.º 34/2004, a decisão fundamento
não se pronunciou expressamente sobre tal admissibilidade, ainda que –
indirectamente – haja acolhido a tese da recorribilidade, por ter decidido no
sentido de conceder provimento ao recurso, após análise das questões
substanciais envolvidas no recurso. Perante esta divergência, a decisão
recorrida nos presentes autos considerou que a decisão recorrida (nos autos de
fixação de jurisprudência) e a decisão fundamento não versavam sobre a mesma
questão de Direito, pelo que não seria admissível o recurso extraordinário para
fixação de jurisprudência.
Face a esta decisão, afirma o recorrente que a interpretação nela adoptada do
n.º 1 do artigo 437º do CPP é inconstitucional, por entender que as duas
decisões que presidiram à interposição de recurso extraordinário para fixação de
jurisprudência formaram casos absolutamente antagónicos e, como tal,
justificaram a interpretação de que o julgador estaria perante uma mesma questão
de Direito, sob pena de violação dos artigos 13º, 20º, n.ºs 1, 4 e 5, 22º, 32º,
n.ºs 1 e 7, 202º, n.º 2 e 203º, todos da Constituição da República Portuguesa.
8. Importa então avaliar da procedência dos seus argumentos.
8.1. Em primeiro lugar, deve notar-se que se afigura ininteligível o motivo que
presidiu à invocação do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), na medida em
que a interpretação adoptada do n.º 1 do artigo 437º do CPP não aparenta
conceder qualquer excepção ou tratamento diferenciado. Pelo contrário, a decisão
recorrida determina que em todas as situações em que ocorrer uma mera
contradição entre uma decisão que decide expressamente sobre determinada questão
de direito e outra decisão que apenas dela decida implicitamente, se verificará
inexistência de pressupostos necessários à admissão de recurso para fixação de
jurisprudência.
Ao invocar o princípio da igualdade, o recorrente limita-se a aludir à
circunstância de terem sido proferidas duas decisões cujos efeitos jurídicos são
antagónicos, aparentando confundir uma eventual inconstitucionalidade de normas
aplicadas por aquelas decisões – de que não cabe conhecer nestes autos – com a
alegada inconstitucionalidade da decisão ora recorrida. Sucede que a
interpretação do n.º 1 do artigo 437º do CPP não configura um tratamento
discriminatório do recorrente face a outros eventuais recorrentes, na medida em
que será aplicável sempre que estiverem em causa situações da vida idênticas às
apreciadas pela decisão recorrida. Aliás, o recorrente não logra demonstrar –
nem sequer esboça qualquer tentativa nesse sentido – que a decisão recorrida
tivesse interpretado aquela norma no sentido de apenas ser aplicável a um
determinado segmento de situações objectivamente similares.
8.2. Em segundo lugar, também se apresenta incompreensível a invocação do artigo
22º da CRP relativo à responsabilidade civil das entidades públicas. A
interpretação adoptada do n.º 1 do artigo 437º do CPP não questiona em parte
alguma a eventual responsabilidade civil das entidades públicas, designadamente
do Estado, por eventuais danos decorrentes da omissão de conhecimento de recurso
extraordinário para fixação de jurisprudência, pelo que não viola o parâmetro de
validade constitucional decorrente do artigo 22º da CRP.
8.3. Em terceiro lugar, relativamente à invocação dos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo
20º da CRP, este Tribunal tem sido inequívoco a decidir que estes preceitos não
atribuem aos particulares qualquer direito absoluto a que uma decisão proferida
por um tribunal de primeira instância seja aferida por uma instância de recurso.
Conforme jurisprudência consolidada neste Tribunal, o direito à tutela
jurisdicional efectiva não garante – necessária e obrigatoriamente – um direito
ao recurso.
Veja-se a título meramente exemplificativo o Acórdão n.º 83/99, de 09 de
Fevereiro de 1999, disponível in www.tribunalconstitucional.pt:
“Sobre o direito de acesso à justiça tem o Tribunal Constitucional firmado uma
extensa jurisprudência, interpretando-o no sentido de que ele é ‘um direito à
solução dos conflitos por banda de um órgão independente e imparcial face ao que
concerne à apresentação das respectivas perspectivas, não decorrendo desse
direito (nomeadamente, no que ora releva, se em causa estiver a litigância civil
obrigacional) o asseguramento às partes da garantia de recurso das decisões que
lhes sejam desfavoráveis (cf, por todos, o Acórdão nº 210/92, publicado na II
Série do Diário da República, de 12 de Setembro de 1992)’ (Acórdão n.° 208/93,
in Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1993).
A este propósito, lê-se também no Acórdão n.° 501/96, in Diário da República, II
Série, de 3 de Julho de 1996:
«O Tribunal Constitucional tem entendido que a garantia judiciária (...) engloba
o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais (Acórdão n.° 287/90, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17.° vol., 1990, pp. 159 e segs.;
identicamente, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 162). E este
direito só pode ser exercido mediante o recurso para (outros) tribunais. Por
outro lado, a expressa previsão da existência de tribunais de 1ª instância e de
recurso também fornece um argumento a favor da dignidade constitucional do
direito de recurso (assim, Acórdão n.° 287/90, citado, e RIBEIRO MENDES, Direito
Processual Civil – Recursos, 2. ed., 1992, p. 100).
Todavia, não se pode concluir que haja, na ordem jurídica portuguesa, um
ilimitado direito de recurso, o que implicaria, por exemplo, a
inconstitucionalidade do instituto das alçadas judiciais. O Tribunal
Constitucional tem entendido – tal como já sustentara a Comissão Constitucional
– que o direito de recurso não é absoluto ou irrestringível (Acórdãos n.°s 31/87
e 65/88, in Diário da República, II série, de 1 de Abril de 1987 e 20 de Agosto
de 1988, respectivamente, e parecer n.° 9/82, in Pareceres da Comissão
Constitucional, 19.° vol., pp. 29 e segs.).»
8.4. Por outro lado, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, o direito
fundamental consagrado (e enfatizado, pela revisão constitucional de 1997) no
n.º 1 do artigo 32º da CRP não gera qualquer direito a um duplo grau de recurso
ou sequer um direito irrestringível a recorrer de toda e qualquer decisão
jurisdicional, mas apenas daquelas que impliquem a adopção de medidas
restritivas da liberdade ou de outros direitos fundamentais do recorrente, o
que, aliás, se não aplica ao assistente.
8.5. Acresce a tudo isto que, nos autos recorridos, o ora recorrente
assume a função processual de assistente e não de arguido, pelo que, como bem
nota o Digno Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, o único
parâmetro de constitucionalidade que faria sentido convocar seria o do direito
de acesso ao direito por parte do assistente que pretende lançar mão do recurso
extraordinário de fixação de jurisprudência.
Ora, como é bom de ver, o n.º 1 do artigo 32º da CRP apenas assegura o direito
ao recurso enquanto “garantia[s] de defesa” e não como garantia de qualquer uma
das partes no processo penal, razão pela qual o recorrente não pode invocar
aquela norma em seu favor. Também não se vislumbra de que modo é que o não
conhecimento de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência poderá
impedir o assistente de intervir no processo penal e assim violar o artigo 32º,
n.º 7, da CRP, visto que quer a Segurança Social quer o tribunal “a quo”
confirmaram – que questão que ora não se discute, nem se reabre – que o
recorrente dispõe dos meios económicos suficientes para suportar os custos da
lide processual.
Em sentido idêntico e em autos de recurso anteriormente interposto pelo ora
recorrente, já se pronunciou este Tribunal, ao confirmar, no Acórdão n.º 507/06,
de 22 de Setembro de 2006, decisão sumária que havia determinado que:
“É certo que no caso o recurso que se pretendia interpor visava uma decisão
judicial relativa ao pedido de apoio judiciário para intervenção num processo
penal. Porém, trata-se de intervir no processo penal na qualidade de assistente,
não tendo aplicação o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, que respeita às
garantias de defesa do arguido. E do n.º 7 do mesmo artigo 32.º da Constituição,
que confere dignidade constitucional ao direito do ofendido intervir no
processo, nada se retira que imponha ao legislador ordinário que assegure o
segundo grau de jurisdição para apreciação das decisões judiciais que recaiam
sobre pretensões instrumentais desse direito, como é a impugnação da decisão
administrativa denegatória do pedido de apoio judiciário com vista à
constituição de assistente. A norma constitucional não especifica o conteúdo do
direito de intervenção do ofendido, remetendo para a lei ordinária a sua
densificação. O que a lei não pode é retirar ao ofendido, directa ou
indirectamente, o direito de participar no processo que tenha por objecto ofensa
de que foi vítima (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, Tomo I, pág. 361). A norma em causa não contende, sequer
indirectamente, com a efectivação desse direito de intervir, porque apenas torna
indiscutível, na ordem dos tribunais judiciais, a decisão que considera que o
interessado não reúne as condições para fazê-lo com benefício de apoio
judiciário.”
8.6. Por último, também é manifestamente incompreensível a invocação da violação
dos artigos 202º, nºs 1 e 2 e 203º da CRP pela interpretação normativa vertida
na decisão recorrida, uma vez que não se vislumbram quaisquer razões para
aquelas normas serem interpretadas no sentido de exigirem a possibilidade de
recurso para uniformização de jurisprudência quando um dos acórdãos em confronto
haja dirimido certa questão processual e o outro se tenha pronunciado
exclusivamente sobre o mérito da causa.
Em suma, a interpretação do artigo 437º, nº 1, CPP não colide com nenhum dos
fundamentos de inconstitucionalidade invocados pelo recorrente nem com quaisquer
outros que este Tribunal pudesse equacionar ao abrigo do artigo 79º-C da LTC.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não conhecer do recurso quanto à alegada
inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação entre o n.º 1 do artigo
28º da Lei n.º 28º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, do artigo 399º do CPP e
do n.º 2 do artigo 9º do Código Civil;
b) Negar provimento ao recurso na parte em que dele se
conhece.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos
termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 2 de Abril de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão