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Processo n.º 739/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. propôs no Tribunal da Comarca de Leiria acção declarativa sob forma
ordinária contra B. e o Fundo de Garantia Automóvel, alegando que, enquanto
conduzia um motociclo na via pública, fora vítima de um acidente de viação
exclusivamente causado pelo primeiro réu, que na altura circulava, sem
beneficiar de qualquer seguro válido e eficaz, com um motocultivador com
reboque; pedia, em consequência, que os réus fossem condenados a pagar
solidariamente a quantia de 9.265.005$00 acrescida dos juros legais que se
vencessem após a citação, a título de indemnização pelos danos por si sofridos,
entre os quais se incluía a amputação traumática pelo terço superior da perna
direita e a incapacidade permanente global de 70%.
Os réus contestaram e, ulteriormente, houve lugar à ampliação do pedido, por
parte do autor.
Por sentença de 24 de Abril de 2007, foi a acção julgada parcialmente
procedente, nos seguintes termos:
[…]
Nos casos de acidente de viação, aquilo que está coberto pelo seguro é a
obrigação de indemnização que, em virtude do acidente, possa recair sobre o
segurado (até ao limite do valor convencionado entre as partes).
Ora, no caso vertente o Réu B. não tinha a responsabilidade por acidentes de
viação, em que o seu motocultivador interviesse, transferida para qualquer
Companhia de Seguros, pelo que, em caso de responsabilidade sua, é nossa humilde
opinião, intervém o Fundo de Garantia Automóvel, apesar da redacção literal do
artigo 21º do DL 522/85, de 31-12, que se transcreve:
«1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer…as indemnizações
decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório
e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à
Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou
cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes
nacionais.
2- O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos
referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por: a) morte ou
lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de
seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora; b) lesões
materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido
ou eficaz.
2- Nos casos previstos na alínea b) do número anterior haverá uma franquia de €
299, 28 a deduzir no montante a cargo do Fundo».
Adoptamos assim uma interpretação que não colhe no teor literal do nº 1
deste preceito quando parece exigir, cumulativamente, para que o FGA seja
responsabilizado:
1º: veículo sujeito ao seguro obrigatório
2º e que seja matriculado…
O motocultivador não está sujeito a seguro obrigatório nem a matrícula uma vez
que tal situação não foi ainda regulamentada, conforme o impunha o artigo 117º,
n.º 3, do Código da Estrada, vigente à altura.
Tal situação implicaria, tomado o preceito à la lettre, que os lesados, nestes
casos de acidentes provocados por motocultivador, não seriam inteiramente
protegidos na sua pretensão indemnizatória em comparação com os lesados por
acidente de viação provocado por veículo sujeito ao seguro obrigatório e
matriculado.
Assim, a redacção do referido preceito constitui uma clara violação do princípio
constitucional da igualdade, consignado na CRP no seu artigo 13º, n.º 1,
princípio esse estruturante do sistema constitucional global e inerente ao
conceito de Estado de Direito Democrático e social pelo que se nega a sua
aplicação.
Só esta interpretação obedece ao princípio da eliminação das desigualdades
fácticas, no sentido de que se atinja, sempre que possível, uma igualdade e
protecção reais de todos os cidadãos.
Entender-se o contrário seria tratar diferentemente situações facticamente
iguais e retirar protecção ao lesado que tivesse “a desventura” de sofrer
acidente de viação causado por veículo não sujeito a seguro obrigatório e a
matrícula.
Aliás, podemos aqui considerar até que o Estado Português, ao não regulamentar a
situação relativa aos motocultivadores, como já o impunha o artigo 117º, n.º 3,
do Código da Estrada vigente à altura, comete omissão grave do seu dever de
legislar neste campo, como lhe é imposto pela Directiva 84/9/CEE, do Conselho,
de 30-12-1983, no que toca a estas situações, pelo que até o próprio Estado pode
incorrer em responsabilidade.
Isto posto:
A circulação rodoviária é uma actividade perigosa pelo que está sujeita a regras
de conduta plasmadas no Código da Estrada a que todos devem obediência.
Assim, e em caso de acidente de viação, cabe em 1º lugar averiguar se existiu
violação ou não de uma norma estradal, e, no caso de existir violação, se esta
pode ser imputada ao agente a título de culpa (dolo ou negligência).
Ora, da prova produzida nos autos resulta que o acidente se deve a culpa
exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as mais
elementares normas estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem
imposta pelo artigo 31º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada vigente à
altura.
Quanto aos danos a indemnizar?
[…]
Ora, passando aos danos efectivamente comprovados, temos o seguinte:
[…]
V - Decisão:
Pelo exposto, condeno os Réus B. e Fundo de Garantia Automóvel, solidariamente,
a pagar ao autor a quantia de:
- € 49.879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e
nove cêntimos) pelo dano corporal emergente da amputação do membro inferior
direito;
- € 37.409,87 (trinta e sete mil quatrocentos e nove mil e oitenta e sete
cêntimos) a título de danos futuros;
- € 29.927,87 (vinte e nove mil novecentos e vinte sete euros e oitenta e sete
cêntimos) pelos danos morais sofridos;
- € 769,67 (setecentos e sessenta e nove mil e sessenta e sete cêntimos) a
título de danos patrimoniais,
Acrescidas, tais quantias, de juros de mora à taxa legal desde a data da
citação até integral pagamento
Quanto aos danos materiais, e relativamente ao FGA, há que deduzir a franquia de
229, 28 € - artigo 21º do DL n.º 522/85.
No mais vão os RR absolvidos.
[…]
Declara-se inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 522/85, de
31-12, por violação do preceituado no artigo 13º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa (princípio da igualdade).
[…].
Desta sentença – e na medida em que nela “se recusou a aplicação dos ditames do
artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do
artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa” - interpôs o
Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea
a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 571).
O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 585.
Nas alegações, sustentou o representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional o seguinte (fls. 600 e seguintes):
[…]
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida no Tribunal Judicial de Leiria, na acção indemnizatória por
acidente de viação intentada por A., na parte em que julgou inconstitucional a
norma constante do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de
Dezembro, considerando que a exclusão da responsabilidade civil do Fundo de
Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não
sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação
de celebrar contrato de seguro obrigatório, afronta o princípio constitucional
da igualdade.
Percorrendo as normas relevantes para a dirimição do caso, verifica-se que no
acidente a que a acção se reporta teve intervenção um veículo agrícola –
dispensado de obrigatoriedade de matrícula, nos termos do nº 3 do artigo 117º do
Código da Estrada – e cujo proprietário não se encontrava sujeito à
obrigatoriedade de segurar a respectiva responsabilidade civil face aos lesados,
nos termos previstos no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 522/85, precisamente
por estar em causa “máquina agrícola não sujeita a matrícula”.
Por sua vez, tal regime implica que – em termos previstos no artigo 21º, nº 1,
do citado Decreto-Lei nº 522/85 – o FGA não seja responsável pelas indemnizações
devidas aos lesados, já que tal responsabilidade aparece condicionada, quer à
“matrícula” do veículo terrestre a motor em Portugal, quer à exigência de que se
trate de veículo “sujeito ao seguro obrigatório” (condições que, como se viu, se
não verificam no caso sub judicio).Como é evidente – e dá nota a sentença
recorrida – tal regime normativo implica uma completa desprotecção dos lesados
em acidentes originados pelos referidos veículos agrícolas, prejudicando, de
forma incompreensível, a “socialização do risco” associado à circulação
rodoviária nas vias públicas.
Na verdade, as viaturas agrícolas do tipo da que originou o grave acidente a que
a acção se reporta circulam frequentemente – e sem restrições – nas vias
públicas, estando dotados de elevada perigosidade – não propriamente pela sua
eficácia, dinâmica, mas pelo facto de se poderem constituir frequentemente em
gravosos obstáculos à segurança e fluidez da circulação do restante tráfego
(como manifestamente terá sucedido no caso dos autos, em que tal viatura, saindo
inopinadamente de um caminho particular, cortou abruptamente a linha de marcha
do motociclo em que se deslocava o lesado).
A dispensa da obrigação de celebrar seguro obrigatório, como condição para tais
viaturas motorizadas serem admitidas a circular nas vias públicas, implica, como
atrás se notou, uma total desprotecção dos direitos dos lesados: na verdade – a
não se admitir a responsabilidade do FGA – estes, não só terão o ónus de, na
sequência de eventual sentença condenatória do responsável directo, intentar e
impulsionar a subsequente acção executiva como – muito em particular – terão de
suportar o risco de uma eventual insolvabilidade do referido responsável
directo, impossibilitadora de um efectivo ressarcimento dos gravíssimos danos –
pessoais e patrimoniais – sofridos.
Na verdade, se se poderia admitir a dispensa do seguro obrigatório
referentemente a viaturas agrícolas que não circulassem nas vias públicas,
compreende-se com dificuldade tal dispensa nos casos em que estas são admitidas
a circular, sem restrições substanciais, em tais vias, potenciando riscos
relevantes para os restantes utentes, sem qualquer garantia efectiva de
ressarcimento dos danos sofridos.
Desta perplexidade dá, aliás, nota Filipe Albuquerque Matos, em O contrato de
seguro obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (in BFD 78, 2002, pág.
336, nota 6), ao afirmar: “Relativamente à exclusão das máquinas agrícolas não
sujeitas a matrícula do âmbito da obrigação de segurar (art. 1.º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 522/85) impõem-se, tendo em conta a ratio legis deste preceito,
algumas considerações. Parece ter sido propósito do Legislador no art. 1.º, n.º
1, impor a obrigatoriedade de celebração de um contrato de seguro obrigatório
sempre que estiverem em causa veículos terrestres susceptíveis, dada a sua
necessária e frequente utilização na via pública bem como a sua perigosidade, de
provocar perturbações na circulação no espaço público. Assim sendo, e no tocante
às máquinas agrícolas, que apesar de serem veículos de tracção mecânica, se
destinem a habitualmente circular na via pública (para por exemplo efectuarem o
transporte dos produtos agrícolas), não vemos razão para não integrar as pessoas
eventualmente responsáveis pelos danos causados pela sua circulação no círculo
de sujeitos sobre quem recaía a obrigação de realizar o seguro. Na verdade, em
relação a estas máquinas agrícolas colhem as mesmas razões justificativas da
obrigatoriedade do seguro subjacentes ao artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
522/85. Não estamos aqui a pensar no caso especial dos tractores. Com efeito, e
de acordo com a noção de veículo automóvel decorrente do Código da Estrada (seja
Código de 1954, seja Código de 94 revisto em 98, artigo 105.º), o tractor deve
classificar-se como veículo automóvel, e deste modo considerar-se imediatamente
incluído no âmbito da obrigatoriedade de celebrar o contrato de seguro. Queremos
então referir-nos àqueles transportes e máquinas agrícolas, que apesar de não
serem veículos automóveis para efeitos do actual Código da Estrada, se traduzem
em veículos terrestres de tracção mecânica habitualmente destinados a circularem
na via pública.
Defendemos, de iure condendo uma tal extensão apenas para as hipóteses em que
estes veículos, apesar de não serem motorizados, apresentem características
substancialmente idênticas a estes últimos. Referimo-nos desde logo aos perigos
especiais envolvidos na sua utilização. Afastadas ficariam então aquelas
máquinas agrícolas cuja circulação é feita apenas em propriedades privadas, ou
de muito ocasionalmente circulem na via pública, bem como aquelas cuja
perigosidade se revele praticamente nula, apesar de transitarem habitualmente
naquela.”
Como é manifesto, na óptica do lesado, a situação de desprotecção, notada na
sentença recorrida, decorre simultaneamente da dispensa de celebração do
contrato de seguro obrigatório, decorrente do preceituado no nº 2 do artigo 1º
do citado Decreto-Lei nº 522/85, e da exclusão de responsabilidade do FGA,
emergente da norma desaplicada, inviabilizando, quer a demanda da seguradora
(que não existirá, salvo se o detentor da viatura agrícola tiver celebrado
contrato de seguro facultativo da respectiva responsabilidade civil), quer do
FGA (legalmente excluído pelo simples facto de não incidir sobre o detentor do
veículo não matriculado a referida obrigação de segurar…).
Acompanhando a linha argumentativa expendida na decisão recorrida, afigura-se
que esta absoluta desprotecção do lesado em acidente de viação imputável ao
condutor da viatura agrícola se configura como solução normativa carecida
manifestamente de fundamento material: na verdade, face aos interesses
subjacentes à instituição do seguro obrigatório da responsabilidade civil
automóvel – e à socialização do risco que lhe subjaz – não se vê qualquer razão
para desconsiderar os interesses do lesado só pelo facto de o instrumento que
causou o dano ter determinadas características intrínsecas ou “regulamentares”
(nomeadamente, a dispensa de matrícula) totalmente irrelevantes quanto ao que
deveria efectivamente interessar: a sua potencialidade para, circulando
frequentemente nas vias públicas, causar danos graves aos restantes utilizadores
das mesmas.
Saliente-se que esta inadmissível solução legislativa estará – para o futuro -
arredada, face ao regime prescrito no Decreto-Lei nº 291/07, de 21 de Agosto,
que procedeu a uma completa e substancial reformulação da disciplina do seguro
obrigatório automóvel, acentuando a protecção dos lesados, em consonância com as
normas comunitárias vinculantes do Estado português.
Assim – e embora o artigo 4º, n.º 2, de tal diploma legal mantenha a isenção da
obrigação de segurar referentemente a “máquinas agrícolas não sujeitas a
matrícula” –, o artigo 48º, nº 1, alínea c), amplia a responsabilidade do FGA
aos veículos cujo responsável pela circulação se encontre isento da obrigação de
seguro “em razão do veículo em si mesmo”.
Na verdade, enquanto as isenções “subjectivas” da obrigação de segurar não
afectam, em termos substanciais, os interesses legítimos do lesado no seu
ressarcimento efectivo – já que pressupõem a necessária solvabilidade da
entidade institucional dispensada da celebração do contrato de seguro – as
isenções “objectivas”, assentes em mera característica inerente ao veículo
causador do acidente, podem deixar o lesado totalmente desprotegido, bastando
que o responsável não detenha património suficiente para o pagamento das
indemnizações devidas pelos danos causados – justificando-se, deste modo, que
deva competir ao FGA, face ao lesado, tal ressarcimento prioritário.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º - Constitui solução legislativa arbitrária ou discricionária –
discriminatória relativamente ao lesado em acidente imputável ao detentor de
máquina agrícola – não sujeita a matrícula, mas admitida a circular nas vias
públicas – a que, dispensando a existência de seguro obrigatório, exclui a
responsabilidade do FGA pelos danos – corporais e materiais – sofridos pelo
lesado, deixando o ressarcimento deste totalmente condicionado à situação
patrimonial do responsável pelo acidente.
2º - Na verdade – face aos objectivos subjacentes à instituição do seguro
obrigatório – o acautelamento da efectividade do direito ao ressarcimento dos
danos por parte do lesado terá de estar conexionado – não com quaisquer
características intrínsecas, de ordem regulamentar, dos veículos, – mas tão
somente com a sua potencialidade para, circulando pelas vias públicas, causarem
danos gravosos aos restantes utilizadores das mesmas.
3º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
formulado quanto à norma constante do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº
522/85, de 31/12.”.
Os recorridos não contra-alegaram.
II. Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
2. A decisão recorrida declarou inconstitucional, por violação do princípio da
igualdade, a norma do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de
Dezembro, em si mesma considerada.
No entanto, da respectiva fundamentação decorre que esse juízo de
inconstitucionalidade versa sobre uma concreta interpretação desse preceito
legal: aquela que exclui a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel
pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matrícula,
e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato
de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Sendo essa a interpretação normativa que foi julgada inconstitucional – e é a
ela que sempre alude o Ministério Público nas alegações –, o objecto do presente
recurso há-de necessariamente restringir-se à norma do artigo 21º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, quando interpretada no sentido de se
encontrar excluída a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel por
danos causados a terceiros por viatura agrícola, relativamente à qual não haja
obrigatoriedade de seguro automóvel por o veículo não estar sujeito a matrícula.
Cumpre, portanto, aferir se esta interpretação normativa é inconstitucional, por
violação do princípio da igualdade, tal como decidiu o tribunal recorrido e
sustenta, nas alegações de recurso, o Ministério Público.
3. Com relevo para a apreciação da questão jurídico-constitucional que vem
suscitada, interessa considerar, no essencial, a seguinte factualidade:
- o acidente ocorreu por virtude de uma colisão entre um motociclo de matrícula
2-LRA-86-37, conduzido pelo autor, e um motocultivador sem matrícula, tripulado
pelo réu B.;
- e verificou-se quando o réu, conduzindo o motocultivador, entrou na via
pública, súbita e inesperadamente, interrompendo a linha de marcha do autor, que
circulava na sua faixa de rodagem;
. em resultado do embate, o autor sofreu lesões corporais, bem como danos
materiais.
A sentença recorrida, com base em todos os factos tidos como provados, deu como
assente que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do
motocultivador, que, com negligência, violou as regras estradais, nomeadamente a
obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo 31º, n.º 1, alínea a), do
Código da Estrada, então vigente.
Tendo julgado inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a responsabilidade
civil do Fundo de Garantia Automóvel apenas opera em relação a danos causados a
terceiros por viatura agrícola que esteja sujeita a matrícula e relativamente à
qual seja obrigatório seguro automóvel – e, por consequência, recusado a
aplicação da referida norma –, a sentença acabou por condenar nas indemnizações
devidas, em solidariedade, ambos os réus, que haviam sido demandados em
litisconsórcio voluntário passivo.
4. O artigo 21º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, sistematicamente
inserido nas disposições gerais relativas ao Fundo de Garantia Automóvel e
possuindo como epígrafe “Âmbito do Fundo”, dispõe, no seu n.º 1, o seguinte:
“1 – Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente
capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos
sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países
terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete
nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar
entre Gabinetes Nacionais”.
Os veículos referenciados nesta disposição que se encontram sujeitos ao seguro
obrigatório de responsabilidade civil automóvel encontram-se definidos no artigo
1º do mesmo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, aí se mencionando os
veículos terrestres motores e seus reboques ou semi-reboques. O n.º 2 do mesmo
artigo determina, por outro lado, que a obrigação de segurar «não se aplica aos
responsáveis pela circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das
máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula» (itálico acrescentado).
A obrigatoriedade de matrícula está, por sua vez, consignada no artigo 117º, n.º
3, do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de
Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto),
que, no seu n.º 3, estatui o seguinte:
“3 - Os casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os motocultivadores e
os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em regulamento” (itálico
acrescentado).
O regulamento a que alude o artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada não chegou
a ser publicado, pelo que, por efeito da inércia regulamentar, nada foi
determinado quanto à possibilidade de as máquinas agrícolas e industriais,
incluindo os motocultivadores, ficarem sujeitas a matrícula para serem admitidas
à circulação rodoviária.
Tal significa que, por mera decorrência do citado artigo 1º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 522/85, os motocultivadores, como no caso dos autos, não estando
sujeitos a matrícula, poderiam circular na via pública independentemente de o
respectivo proprietário possuir seguro automóvel.
Com a linear consequência de, por efeito do já mencionado artigo 21º, n.º 1,
desse diploma, os acidentes causados por esse tipo de veículos não se
encontrarem cobertos pelo Fundo de Garantia Automóvel, que, como se viu, apenas
está obrigado a satisfazer as «indemnizações decorrentes de acidentes originados
por veículos sujeitos ao seguro obrigatório».
5. Sublinhe-se, uma vez mais, que a norma que constitui objecto do recurso de
constitucionalidade é a do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, que
define o âmbito de intervenção do Fundo de Garantia Automóvel, e não a do artigo
2º desse diploma, que estabelece o âmbito da obrigação de segurar.
E sendo assim, a única questão que se coloca – e que pode ser dirimida – é a de
saber se pode considerar-se constitucionalmente justificável a exclusão da
responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados por
veículos não sujeitos a seguro de responsabilidade civil obrigatório (por não
estarem sujeitos a matrícula).
Nesta medida, não cabe apurar se é razoável a própria dispensa da obrigação de
celebrar seguro de responsabilidade civil automóvel em relação a veículos que
são objectivamente aptos a causar graves acidentes na via pública, mas que não
estão sujeitos a matrícula (defendendo a obrigatoriedade do seguro em relação a
máquinas se destinem a circular habitualmente na via pública e cuja utilização
envolva uma perigosidade especial, Filipe Albuquerque Matos, O contrato de
seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - Alguns aspectos do seu
regime jurídico, in Boletim da Faculdade de Direito n.º 78, 2002, págs. 329-364,
em especial, pág. 333, nota 6).
Como também não releva considerar as consequências que, no plano do direito,
possam resultar do incumprimento do dever de regulamentar, derivavam do disposto
no artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada.
6. Entrando na apreciação da questão de constitucionalidade, convirá começar por
enquadrar historicamente a solução legislativa em presença.
O Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, que instituiu o seguro obrigatório
de responsabilidade civil automóvel, determinou no seu artigo 20º que «[o]s
direitos dos lesados por acidentes ocorridos com veículos sujeitos ao seguro
obrigatório poderão ser efectivados, nos termos que legalmente vierem a ser
estabelecidos, contra o fundo de garantia automóvel, a instituir no âmbito do
Instituto Nacional de Seguros, nos seguintes casos: a) quando o responsável seja
desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; b) quando for
declarada a falência do segurador».
O Fundo de Garantia Automóvel – reconhecendo-se ter constituído um contributo
importante no sentido da socialização do risco (cfr. Filipe Albuquerque Matos,
ob. cit., pág. 361) – foi simultaneamente instituído pelo Decreto Regulamentar
n.º 58/79, de 25 de Setembro, que, nos termos do artigo 2º, n.º 2, lhe atribuiu
a competência para «satisfazer as indemnizações de morte ou lesões corporais
consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro
obrigatório, nos casos previstos no artigo 20º do Decreto-Lei n.º 408/79».
Nem todos os danos se encontravam, no entanto, cobertos pelo fundo de garantia:
para além das limitações inerentes ao âmbito objectivo de protecção
(indemnizações por morte ou lesões corporais em acidentes em que fossem
intervenientes veículos sujeitos ao seguro obrigatório), o diploma também previa
a existência de certos limites às indemnizações a satisfazer pelo Fundo (artigo
2º, n.º 3); estipulava diversas exclusões, como, por exemplo, a referente ao
condutor do veículo titular da apólice e aos danos causados às pessoas dos
autores, cúmplices e encobridores de roubo, furto ou furto de uso de qualquer
veículo que intervenha no acidente (artigo 3º); e determinava que só
aproveitavam do benefício do Fundo os lesados por acidentes ocorridos em
Portugal (artigo 4º).
À delimitação do âmbito de protecção do Fundo (circunscrito como estava aos
acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório) não será
alheio o próprio regime de financiamento, sabendo-se que constituía receita do
Fundo «o montante, a liquidar por cada seguradora, resultante da aplicação de
uma percentagem sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) de seguros
directos automóvel processados no ano anterior, líquidos de estornos e
anulações», para o que ficavam «as seguradoras autorizadas a cobrar dos seus
segurados do ramo “Automóvel” um adicional, calculado sobre os prémios simples
(líquidos de adicionais) […]» (artigo 6º, n.º s 1 e 4). E só em situações
excepcionais, devidamente comprovadas, o Estado podia assegurar uma dotação
correspondente ao montante dos encargos que excedessem as receitas previstas do
Fundo” (n.º 5 do mesmo artigo).
A articulação do funcionamento do Fundo de Garantia Automóvel com a actividade
seguradora era também revelada pelo estabelecido no artigo 7º, n.º 1, do Decreto
Regulamentar n.º 58/79, de 25 de Setembro, que habilitava o Fundo a solver
eventuais compromissos superiores às suas disponibilidades de tesouraria
mediante o recurso às seguradoras, permitindo-lhe arrecadar até ao limite de
0,25% da carteira de prémios de seguro directo automóvel processados no ano
anterior.
O regime jurídico Fundo de Garantia Automóvel viria a ser alterado pelo
Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro – o diploma que agora está
particularmente em foco -, que, através do seu artigo 40º, revogou os
mencionados Decreto-Lei n.º 408/79 e Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25 de
Setembro.
O Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, procedeu ao alargamento do âmbito
de responsabilidade civil do Fundo, passando a assegurar também o ressarcimento
de danos materiais em relação a acidentes em que o responsável, sendo conhecido,
não seja portador de seguro válido e eficaz (cfr. o preâmbulo do diploma e o seu
artigo 21º, n.º 2, alínea b)).
Manteve, todavia, a dependência financeira do Fundo em relação às seguradoras,
que teriam de participar nas respectivas receitas através do pagamento uma verba
correspondente a uma percentagem sobre os prémios simples de seguro directo do
ramo “Automóvel” processados no ano anterior (artigo 27º, n.º 1, alínea a)),
para cujo cumprimento ficavam as seguradoras autorizadas a cobrar aos seus
segurados do ramo “Automóvel” um adicional de idêntico montante (artigo 27º, n.º
4).
Além de que o Fundo continuava a poder fazer face a ocasionais dificuldades de
tesouraria através de outro tipo de recursos financeiros que eram provenientes
das entidades seguradoras (artigo 28º).
7. A questão de saber se a exclusão da responsabilidade do Fundo de Garantia
Automóvel em casos como o dos autos viola ou não o princípio da igualdade
implica que se averigue se o critério que é utilizado pela lei para definir o
âmbito restrito de protecção dos lesados – o da sujeição do veículo causador do
acidente a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – poderá ser
entendido como razoável, racional ou objectivamente fundado.
Como logo se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«O princípio da igualdade reconduz-se […] a uma proibição de arbítrio sendo
inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação
razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente
relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente
desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação
ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como
princípio negativo de controle.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de
arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são
afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa
adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas
sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente
imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.os 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, II
Série, de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e I
Série, de, respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1993, pp. 127 e segs; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e
garantias», Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de
Direito Constitucional, tomo iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira
Pinto, «Princípio da Igualdade — Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de
Sentido?», Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987;
Lívio Paladin, Il Princípio costituzionale d’equaglianza, Milão, 1965).»
Nesta ordem de considerações tem-se entendido que a vinculação jurídico-material
do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação
legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou
qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar
como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete
verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se
estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a
solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso);
compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto
insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão
Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de
1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95,
que vimos acompanhando).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma
medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade
dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente,
isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes
precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007 (disponível no
mesmo sítio).
Ora, tendo presente a jurisprudência constitucional, que essencialmente reconduz
o princípio da igualdade a uma proibição de arbítrio ou, noutra perspectiva, a
uma exigência de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico das medidas
legislativas, há que reconhecer que o critério da obrigatoriedade do seguro
automóvel não se mostra ser arbitrário ou desprovido de fundamento material
suficiente.
Com efeito, e em primeiro lugar, o Fundo de Garantia Automóvel foi instituído
para substituir, em certos casos, as seguradoras. Veja-se, a este propósito, o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26 de Janeiro de 2006 (disponível
em www.dgsi.pt/trl), onde se afirma que «[g]rosso modo, o Fundo de Garantia
Automóvel ocupa, por força da lei, a posição de uma seguradora que seria
accionada se o obrigado a outorgar o contrato de seguro de responsabilidade
civil automóvel tivesse cumprido a sua obrigação. Preenche a mesma função social
que justifica a necessidade da obrigatoriedade do seguro do risco da circulação
rodoviária automóvel a cargo das seguradoras -, e é, como se viu, financiado
directamente pelas seguradoras e indirectamente pelos segurados do ramo
´Automóvel`».
Em segundo lugar, o objectivo de socialização do risco da circulação automóvel
não impõe que só ao Fundo (e não a qualquer outra entidade) seja cometido o
encargo dessa socialização e todo o encargo dessa socialização: é assim que, por
exemplo, o Fundo não responde por certas lesões materiais (artigo 21º, n.º s 2,
alínea b), e n.º 3), assim como não responde por acidentes ocorridos fora do
território nacional (artigo 21º, n.º 4); e só responde até certos montantes
(artigo 23º), com exclusão de danos produzidos em certos condicionalismos
(artigo 24º); e, naturalmente, que o Fundo não visa ressarcir qualquer dano na
via pública, como, por exemplo, os danos causados por peões ou danos de causa
natural (artigo 21º, n.º 1).
A intervenção do Fundo de Garantia Automóvel está, por conseguinte, delimitada
por um certo grau de operacionalização do risco social que se encontra associado
ao sistema de seguros na área da sinistralidade automóvel, destinando-se a
suprir certas contingências resultantes da ineficácia do sistema.
Não parece, nestes termos, face aos objectivos da lei, que o critério subjacente
à interpretação normativa aqui em causa seja desajustado ou desprovido de um
fundamento material razoável, pelo que, também, não poderá concluir-se pela
violação do princípio da igualdade.
Certo é que o regime decorrente do Decreto-Lei n.º 522/85 foi recentemente
alterado pelo Decreto-Lei n.º 291/07, de 21 de Agosto, que, apesar de continuar
a dispensar da obrigação de segurar os responsáveis pela circulação das máquinas
agrícolas não sujeitas a matrícula (artigo 4º, n.º 2), instituiu, no seu artigo
48º, n.º 1, alínea c), a regra segundo a qual o Fundo de Garantia Automóvel
satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em
Portugal e originados «[p]or veículo cujo responsável pela circulação está
isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo […]». Essa é uma
solução centrada no aumento de protecção dos lesados, que é acompanhada de
outras medidas de reforço da responsabilização do Fundo, como seja a extensão da
cobertura dos danos materiais nos sinistros causados por responsável
desconhecido ou quando tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no
local do acidente (artigo 49º, alínea c)), e que se integra num mais amplo
conjunto de alterações justificadas pela necessidade da transposição da
Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio
(cfr. preâmbulo do diploma).
No entanto, essa ampliação das competências do Fundo, como último recurso para o
ressarcimento das vítimas da circulação automóvel, não cobrindo ainda assim
todas as situações em que poderá haver lugar a um direito à reparação (veja-se
os artigos 51º e 52º desse diploma), não deixa de se integrar na liberdade de
conformação legislativa (em certa medida, neste caso, condicionada pela
obrigatoriedade do cumprimento do direito comunitário), e não põe em causa a
validade, do ponto de vista jurídico-constitucional, das soluções que provinham
do diploma agora revogado. Ou seja, não é a circunstância de o legislador ter
melhorado o sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação, através da
publicação de um novo diploma, que permite considerar que o regime anterior – e
especialmente o regime decorrente do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
522/85 - está ferido de inconstitucionalidade por violação do princípio da
igualdade. Isso porque, como vimos, a exclusão da garantia do Fundo, como previa
essa norma, quando baseada na não obrigatoriedade do seguro não se apresentava
como uma medida legislativa arbitrária.
Questão diversa é a de saber se a não sujeição a matrícula do veículo causador
do acidente dos autos, e a sua consequente não sujeição a seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel, é constitucionalmente justificável. Mas, como
se viu, não é essa a questão que constitui o objecto do presente recurso de
constitucionalidade. O que está causa não é a inexigência de seguro em relação a
viaturas agrícolas, mas o âmbito de responsabilidade civil do Fundo da Garantia
Automóvel, e quanto a isso não se encontrou motivo para considerar verificada
uma discriminação infundada.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
522/85, de 31 de Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil
do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura
agrícola, não sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente
dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil
automóvel;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação
da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de não
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Abril de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão