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Processo nº 829/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. vem, a fls. 1309 e segs., reclamar para a conferência da decisão sumária
de fls. 1296 e segs., que decidiu não tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade por si interposto após ter sido notificada do acórdão do
Tribunal da Relação de Guimarães de fls. 1263 e segs. Pode ler-se na
fundamentação da decisão ora reclamada:
2. Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que
admitiu o recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal
Constitucional, entende-se que é caso de proferir decisão sumária, nos termos do
artigo 78.º-A, n.º 1, da referida Lei, por se não poder tomar conhecimento do
objecto do recurso.
Como muito bem se sabe – e como inúmeras vezes tem sido repetido por este mesmo
Tribunal – através de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional [previsto, antes do mais, pela
alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição] só pode o Tribunal
Constitucional conhecer de questões relativas à (in)constitucionalidade de
normas. As decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não são em direito
português, objecto de controlo de constitucionalidade. Daí que, para o Tribunal
Constitucional, surja naturalmente como um dado a norma de direito
infra-constitucional que é questionada no recurso. Como se disse no Acórdão n.º
44/85, “saber se a norma era ou não aplicável ao caso, ou se foi ou não bem
aplicada – isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal
Constitucional.” (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, p. 408).
A exigência de prévia suscitação da questão de (in)constitucionalidade (prévia
em relação à prolação da decisão recorrida) faz assim todo o sentido no quadro
dos pressupostos do recurso de constitucionalidade. Tratando-se este de um
recurso que incide sobre normas e não sobre decisões, lógico é que se
pressuponha que o tribunal a quo, de cuja decisão se recorre, tenha nessa mesma
decisão aplicado a norma cuja (in)constitucionalidade se questiona, pelo que tal
questionamento terá que ter sido feito pelo próprio recorrente durante o
processo, isto é, antes da prolação da decisão recorrida.
Os pedidos de aclaração e reforma de uma decisão, ou a arguição da sua nulidade,
enquanto incidentes pós-decisórios, não são já momentos adequados para,
atempadamente, suscitar uma questão de (in)constitucionalidade normativa, em
termos de ela poder vir a ser decidida pelo tribunal a quo, e de provocar a
intervenção do Tribunal Constitucional para reapreciação, em recurso de
constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei do Tribunal Constitucional. Como se salientou no citado Acórdão n.º 352/94,
“porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da
sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não
constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna
esta obscura e ambígua, há‑de entender-se que o pedido de aclaração de uma
decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios
idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade” [v. também
já, por exemplo, o Acórdão n.º 62/85, Diário da República (doravante DR),
II série, de 31 de Maio de 1985].
Esta orientação quanto ao ónus de suscitação da questão de
(in)constitucionalidade (como também se salientou no referido Acórdão n.º
352/94) sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais
não se pode exigir ao interessado que suscitasse a questão de
(in)constitucionalidade antes de proferida a decisão final, designadamente, por
o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo em todo insólita e
imprevisível da norma impugnada. Este Tribunal tem, porém, repetidamente
afirmado, como se disse no Acórdão n.º 479/89 (DR, II Série, de 24 de Abril de
1992) que:
(...) não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem
as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem
socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais
(por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual
adequada). E isso também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas “situações excepcionais” em
que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação da
inconstitucionalidade antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a
quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma impugnada.
(...) Mas, se alguma vez tal for de admitir, então haverá de sê-lo apenas numa
hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita e imprevisível que
seria de todo desrazoável dever a parte contar (também) com ela.
3. No requerimento de recurso indicam-se duas normas, que a recorrente pretende
ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional, correspondentes a interpretações
normativas dos seguintes preceitos:
– artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal;
– artigos 2.º e 3.º, n.º 1 do Regulamento da Comissão Instaladora da
Associação dos Técnicos Oficiais de Contas.
No que concerne à norma do artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal,
“quando interpretado no sentido de não ser necessária a verificação do seu
requisito subjectivo” – conforme se concretiza nas alegações antecipadamente
apresentadas neste Tribunal Constitucional, mas que se aproveitam para efeitos
de delimitação do objecto do recurso, por a recorrente não ter indicado no
requerimento de recurso qual a interpretação que teria sido dada, e aplicada,
pelo tribunal recorrido ao preceito do artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e b) do
Código Penal –, a interpretação normativa assim identificada pela recorrente não
constituiu ratio decidendi para o tribunal recorrido.
Com efeito, é pressuposto específico do recurso de constitucionalidade
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, além da suscitação, de forma clara e perceptível, da
inconstitucionalidade da norma durante o processo (e do esgotamento dos recursos
ordinários que no caso cabiam), que a norma (ou dimensão normativa) em causa
tenha efectivamente sido aplicada pelo tribunal a quo, na decisão recorrida,
como verdadeira ratio decidendi.
É que, se o sentido impugnado não corresponder ao sentido com que a norma
questionada foi aplicada na decisão recorrida, não existe interesse processual
que justifique o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional.
Neste caso, seja qual for o sentido da decisão que recaia sobre a questão de
(in)constitucionalidade, manter-se-á inalterado o decidido pelo tribunal
recorrido (cfr. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 454/91, 337/94, 608/95, 577/95,
1015/96, 196/97 e 508/98, publicados os três primeiros no DR, II série,
respectivamente de 24 de Abril de 1992, 4 de Novembro de 1994, e 19 de Março de
1996).
No caso presente é isto mesmo que se verifica, não se tendo o tribunal a quo
baseado, como ratio decidendi, na interpretação do artigo 256.º, n.º 1, alíneas
a) e b) do Código Penal que a recorrente reputa inconstitucional. É o que
decorre do que se pode ler a fls. 1264 e 1265 dos autos, no aresto sob recurso:
(…)
Ora, conforme se colhe do próprio requerimento, a arguida/recorrente percebeu
claramente o sentido do excerto em causa, designadamente quando escreve: «O que
resulta do Acórdão que se pretende aclarado é que a norma excepcional que prevê
as exigências e requisitos para acesso à profissão de técnico oficial de contas,
sendo declarada inconstitucional, continua a verificar-se o crime de
falsificação de documento p.p pelos arts 255°, al. a) e 256°, n°1, als a) e b)
do C. Penal.» E, de facto, é este o único sentido que a decisão comporta.
Como se vê, não ocorre nenhuma ambiguidade. O que acontece é que a recorrente
discorda do entendimento perfilhado por este tribunal, designadamente quanto à
afirmação da existência in casu do elemento constitutivo do crime em causa, vale
dizer, que o agente actue com «intenção ... de obter para si ou para outra
pessoa benefício ilegítimo». Na verdade, partindo do aludido excerto, a
recorrente faz uma efabulação, pretendendo que nele está implícito que, para
este tribunal, «o benefício ilegítimo não é elemento necessário para a
constituição do crime de falsificação de documento p. p. pelos arts 255°, al. a)
e 256°, n° 1, als a) e b) do C. Penal». Porém, este entendimento não está
acolhido no acórdão, quer de forma expressa, quer implicitamente. Pelo
contrário, conforme decorre do referido excerto, perfilha‑se, necessariamente, o
entendimento contrário, quando nele se escreveu «que a – verificação do crime de
falsificação de documento p. p. pelos artigos 255°, al. a) e 256°, n° 1, als a)
e b) do CP ... não está dependente de nenhum outro requisito que não seja o do
apuramento dos factos narrados em tal peça processual.», pois que, nesta peça
processual, tal elemento constitutivo estava alegado. É que a arguida não pode
escamotear este dado: aceitando, então, as condições do referido regulamento, e
dele se prevalecendo, a arguida, de forma voluntária e livre, falsificou e
enviou os documentos exigidos, com intenção de obter a sua inscrição na, então,
Associação dos Técnicos Oficiais de Contas, bem sabendo que tal conduta era
proibida.
Conclui-se, pois, que a norma em questão, na dimensão tentada impugnar pela
recorrente, não foi aplicada pelo tribunal a quo, o qual considerou antes que
nada nos autos permitiria concluir no sentido de não ser necessária a
verificação do benefício ilegítimo por parte do agente.
Por outro lado, a suscitação da questão de (in)constitucionalidade normativa
referida ao preceito do artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal
ocorreu, ao contrário do que declara a recorrente no requerimento de recurso,
somente no incidente pós-decisório de fls. 1239 e segs. dos autos, altura em que
já não é possível ao tribunal que decide apreciar questões novas.
Assim, não se encontram, nesta parte do objecto de recurso, preenchidos os
pressupostos necessários à interposição do recurso de constitucionalidade que é
previsto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e no artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
4. Quanto à questão de (in)constitucionalidade referida aos artigos 2.º e 3.º,
n.º 1 do Regulamento da Comissão Instaladora da Associação dos Técnicos Oficiais
de Contas, a decisão recorrida remete para a posição tomada a fl. 5 da
fundamentação do seu anterior acórdão, onde se conclui que, “para a verificação
do crime em apreço nos autos, é perfeitamente irrelevante saber se o dito
Regulamento é ou não ilegal, ou se está, ou não, conforme os preceitos
constitucionais.”
Donde, ainda que este Tribunal pronunciasse juízo diverso do da(s) instância(s)
sobre a questão de (in)constitucionalidade e determinasse a reformulação da
decisão recorrida em conformidade com um juízo de inconstitucionalidade, esta
decisão não teria qualquer efeito útil no processo, pois sempre se manteria a
decisão recorrida com fundamento em que, remetendo (directa ou indirectamente)
para o que decidira o Juiz na Primeira Instância, “(...) isso não poderia
justificar de qualquer forma a prática dos actos descritos na acusação”.
E, conforme o Tribunal Constitucional vem salientando, o julgamento da questão
de (in)constitucionalidade desempenha “uma função instrumental”, só se
justificando que a ele se proceda se o mesmo tiver utilidade para a decisão de
fundo, pois, de contrário, estar-se-ia a decidir uma pura questão académica
[cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 216/91 (publicado no DR, II Série,
de 14 de Setembro de 1991) e 11/2001, este disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt].
Assim, porque a questão da (in)constitucionalidade não pode influir no mérito da
decisão, apenas resta concluir, também nesta parte, pelo não conhecimento do
recurso.
2. Conclui-se na reclamação apresentada:
1º A recorrente arguiu a inconstitucionalidade do Regulamento da ATOC durante o
processo;
2º A decisão do Tribunal “a quo” ao considerar que, mesmo sendo inconstitucional
o Regulamento da ATOC, está verificado o crime de falsificação de documento p. e
p. pelo art. 256°, n°1, als. a) e b), do CP, por isso, a recorrente pediu a
aclaração do Acórdão, para que se esclarecesse, no caso dos autos, donde resulta
o benefício ilegítimo do agente. Sendo certo que, o benefício ilegítimo resulta
do referido Regulamento, ora, declarando-se este inconstitucional, não poderá
verificar-se o crime de falsificação de documento, por falta do elemento
subjectivo que é o benefício ilegítimo;
3º Esta questão de inconstitucionalidade, não podia a recorrente suscita-la
previamente, pelo que a sua colocação em incidente pós-decisório revela-se
atempada, não tendo influência no seu conhecimento pelo Tribunal Constitucional
a recusa do Tribunal recorrido em apreciá-la;
4º Até porque, o que se pretende ver apreciado, não é o sentido genérico e
objectivo, plasmado no preceito, mas como foi aplicada a norma à dirimição do
caso dos autos pelo tribunal recorrido — Lopes do Rego, ob. cit., Acórdãos n°s
37/97, 680/96, 663/96, 18/96, este publicado no Diário da República,
II Série, de 15.05.1996;
5º A decisão reclamada violou os arts. 221°, 223°, n°1, 277°, n°1, 280°, n°1,
al. b), e 281°, n°1, al. a), todos da CRP; e 70°, n°1, als. a) e g), e 72°, n°
2, da LTC;
6º O Regulamento de execução da Lei 27/98, de 3 de Junho está ferido de profunda
inconstitucionalidade;
7º Não possuía a ATOC habilitação legal para elaborar o referido Regulamento,
pelo menos, nos termos em que efectivamente o fez;
8º Na medida em que regular matérias sobre Direitos, Liberdades e Garantias é de
competência relativa da Assembleia da Republica, nos termos do artigo 165°, n.°
1 alínea b) da C.R.P.;
9º Apesar de o legislador, na Lei 27/98, de 3 de Junho, pretender garantir o
acesso à profissão de Técnico Oficial de Contas a quem satisfizesse os
requisitos do artigo 1º da referida Lei, o certo é que o regulamento faz
depender o acesso à dita profissão da necessidade de uma prova restrita e
ostensivamente ilegal contida no artigo 1° alínea d) e no artigo 3° do referido
Regulamento;
10º Extravasando o âmbito da Lei 24/98, de 3 de Junho, que não exigia qualquer
responsabilidade fiscal, adulterando e ultrapassando assim o espírito, o âmbito
e a letra da referida Lei a que o Regulamento da ATOC de veria servir apenas de
execução;
11º As restrições de prova a um único meio probatório, impostas pelo artigo 3°,
n.° 1, alínea d), além de violar o princípio da verdade material, padecem de
inconstitucionalidade por impedirem directamente a liberdade de escolha da
profissão (art. 47° da C.R.P.) o direito ao trabalho (art. 58° da C.R.P.) e a
segurança no emprego (art. 53° da C.R.P.);
12º A exigência de apresentar o Modelo 22, assinado pelo responsável da
contabilidade, espelha a intenção da ATOC de impedir a inscrição de
profissionais da contabilidade que a isso tinham direito;
13º Na medida em que desde a entrada em vigor do Dec-Lei n.° 265/95, de 17 de
Outubro que deixou de ser obrigatória a assinatura nas declarações fiscais do
profissional da contabilidade que a tivesse elaborado;
14º Com esta exigência probatória a ATOC barrou de modo ilegal e
inconstitucional o acesso merecido da recorrente a inscrição na referida
Associação;
15º O crime de falsificação de documentos apenas se concretiza caso esteja
preenchido o seu elemento subjectivo, onde terá que verificar-se além da
intenção do agente na prática daquele ilícito criminal, a existência de um
beneficio ilegítimo;
l6º Esse beneficio será no caso “sub judice” a inscrição na ATOC;
17º Não existindo, ou, sendo declaradas inconstitucionais as exigências ou
condições de que se faz depender o acesso à referida inscrição, é obvio que se
perderia não só a intenção do agente como também o eventual beneficio que ele
pudesse retirar daquele acto, inexistindo, consequentemente, o dito crime de
Falsificação de Documento;
18º Num crime em que o bem jurídico protegido é a segurança do tráfico jurídico
e a sua correspondente credibilidade, entendemos não constituir crime de
falsificação nos termos do artigo 256° do C. Penal, o acto de alguém assinar, em
momento posterior à sua elaboração, um documento que essa mesma pessoa efectuou;
e
19º Tribunal recorrido violou os arts. 18°, 26°, 29°, 32°, 35°, 47°, 165°, n.°
1, als. b) e c), e 268° da CRP, os princípios da legalidade, princípio da
igualdade, princípio da confidencialidade e da verdade material e o art. 256° do
C. Penal.
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
respondeu à reclamação nos termos seguintes:
1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, a longa argumentação deduzida pela reclamante mostra-se inteiramente
desfocada dos reais fundamentos que ditaram o não conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto.
3º
Devendo, pois, ser inteiramente confirmada a decisão reclamada, no que toca à
evidente inverificação dos pressupostos de admissibilidade de tal recurso.
Cumpre decidir.
II
Fundamentos
3. Os fundamentos da presente reclamação, não obstante a sua extensão, são
claramente improcedentes.
Na verdade, independentemente da análise do problema de saber se o acórdão do
Tribunal da Relação de Guimarães, de 26 de Fevereiro de 2007, se integra, como
invoca a reclamante, naquele grupo de situações anómalas que justificam a
dispensa de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, não se verifica
o pressuposto, indispensável para se poder tomar conhecimento do recurso,
consistente na aplicação como ratio decidendi, pela decisão de que se pretende
recorrer, da norma do artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Penal, na
interpretação impugnada.
Como se salientou na decisão reclamada e resulta da leitura dos autos, o
tribunal recorrido fundamentou-se, para julgar improcedente o recurso interposto
da sentença recorrida, entre o mais, na afirmação da existência do elemento
subjectivo do crime em apreço nos autos. Pode, com efeito, ler-se mesmo no
acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de Fevereiro de 2007 (fl.
1232):
No caso sub judice tendo em conta a factualidade objectiva dada como provada na
sentença recorrida nos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6) e 7) e, bem assim, os
juízos de normalidade e as regras da experiência de vida, a afirmação da
existência do elemento subjectivo, consubstanciado nos impugnados pontos 8) e 9)
da sentença recorrida, surge naturalmente…
E isto, mesmo independentemente do esclarecimento que depois veio a ser
desenvolvido no acórdão de 12 de Junho de 2007, em cujo “perfil substancial” a
reclamante assenta o seu discurso argumentativo.
Assim, a decisão que o Tribunal Constitucional viesse a proferir sobre a norma
impugnada – uma certa dimensão normativa do 256.º, n.º 1, alíneas a) e b) do
Código Penal –, ainda que fosse no sentido da inconstitucionalidade, não teria a
virtualidade de alterar a decisão recorrida. Pelo que o Tribunal Constitucional
não pode tomar conhecimento do recurso e a decisão reclamada merece ser
confirmada.
4. A reclamante insurge-se contra a decisão reclamada afirmando que (fl. 1315)
“o benefício ilegítimo – elemento subjectivo do crime de falsificação de
documento – resulta do Regulamento da ATOC. E caso este Regulamento fosse
declarado inconstitucional não existiria qualquer benefício ilegítimo por parte
da recorrente.” Diz, mesmo, que “(O)o que se pretende colocar à apreciação do
Tribunal a quo e deste Tribunal é saber se, sendo declarado inconstitucional o
Regulamento da ATOC, a recorrente seria condenada pelo crime de falsificação de
documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, als. a) e b), do CP.” “É, pois
necessário”, defende, “saber donde resulta o benefício ilegítimo, elemento do
crime de falsificação de documento, retirado pela recorrente caso o Regulamento
da ATOC seja declarado inconstitucional. “No fim”, termina, “o que está em causa
é apreciar se a recorrente cometeu um crime de falsificação, por pretender obter
um benefício ilegítimo, fundado num regulamento que é inconstitucional.”
Admite-se que a reclamante discorde da recondução da ratio decidendi, no acórdão
recorrido, à irrelevância para a verificação do crime em apreço nos autos da
questão da (i)legalidade ou da (in)constitucionalidade do referido Regulamento.
Mas tal discordância, ou censura em relação à correcção na aplicação do Direito
pelo tribunal recorrido, já não é algo que compita ao Tribunal Constitucional
apreciar. Como se tem salientado em abundante jurisprudência, ao Tribunal
Constitucional a norma que foi, bem ou mal, aplicada pelo tribunal recorrido
como ratio decidendi chega já como um dado, cuja escolha e interpretação,
independentemente de questões de constitucionalidade normativa, não compete a
este Tribunal controlar. Ora, como se disse na decisão reclamada, já no acórdão
do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Fevereiro de 2007 se remeteu para o que
sublinhara o Juiz na Primeira Instância e se reitera (fl. 1212):
«De qualquer forma ainda que outra fosse a conclusão sobre a legalidade e a
constitucionalidade do diploma em causa, isso não poderia justificar de qualquer
forma a prática dos factos descritos na acusação».
Independentemente da correcção da decisão recorrida nesta parte – que,
repete-se, não cumpre ao Tribunal Constitucional controlar –, como também já
ficou dito na decisão reclamada, nenhuma repercussão teria o julgamento da
questão de constitucionalidade da norma definida pela recorrente, ainda que o
Tribunal viesse a concluir no sentido da inconstitucionalidade.
5. Claramente, o que se pretendeu trazer à apreciação deste Tribunal não foi a
conformidade constitucional de uma norma, ou de um conjunto de normas ou
dimensões normativas, mas antes uma alegada violação da Constituição por uma
actuação judicial concreta.
Na verdade, a reclamante reporta-se num ponto autónomo da presente reclamação à
sua “pretensão” e, mais à frente, sublinha:
(…) Importa aqui referir que sendo o Regulamento de ATOC considerado
inconstitucional é óbvio que deixaria de existir benefício na justa medida em
que é nesse regulamento que se prevêem as condições de acesso à profissão de
Técnico Oficial de Contas. Ora, se essas condições não existissem ou fossem
diferentes não teria, o agente do crime de falsificação, qualquer necessidade
(leia-se benefício) de modificar aquele documento. Perder‑se‑ia, no caso exposto
a intenção do agente e consequentemente deixariam de estar preenchidos os
requisitos do crime de falsificação.
O recurso não foi, pois, admitido por não se verificar um seu pressuposto
indispensável: a aplicação, pela decisão recorrida, da norma com o sentido
impugnado pela recorrente, sendo certo que o recurso de constitucionalidade tem
natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que é condição de
conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão do julgamento
que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida.
A reclamante, em rigor, mais do que um sentido normativo, acaba por impugnar a
decisão judicial recorrida em si mesma considerada.
A presente reclamação tem, pois, de ser desatendida, confirmando-se a decisão
sumária reclamada.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e
confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar a
reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Março de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão