Imprimir acórdão
Processo n.º 1003/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público, com natureza
obrigatória, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da CRP e dos
artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3, ambos da LTC, do despacho proferido
pelo Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, em 09 de Julho de 2007 (fls.
301 a 309) que determinou a desaplicação da norma extraída do n.º 1 do artigo do
artigo 119º do Código Penal [de ora em diante, CP], com a interpretação que lhe
foi dada pelo Assento n.º 10/2000, com fundamento na sua inconstitucionalidade
por violação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da CRP.
2. Notificado para alegar, o Ministério Público pronunciou-se pela
impossibilidade de conhecimento do mesmo, “por não ter sido previamente
interposto recurso obrigatório, nos termos do artigo 446º do Código de Processo
Penal” (fls. 321).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. Da análise da decisão recorrida, resulta que o tribunal de 1ª instância tomou
posição favorável a determinada corrente jurisprudencial – v.g. o Acórdão n.º
11/2007, de 12 de Janeiro de 2007, do Tribunal Constitucional –, em detrimento
de posição contrária anteriormente defendida pelo Assento n.º 10/2000. Ora,
subsistindo ainda controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a melhor
interpretação a dar à norma desaplicada pela decisão recorrida, ter-se-ia
imposto uma prévia interposição obrigatória de recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça, para efeitos de fixação de jurisprudência, conforme impõe o n.º 1 do
artigo 446º do CPP.
Conforme notado pelo próprio representante do Ministério Público junto deste
Tribunal, pré-existe jurisprudência consolidada que aponta no sentido da
inadmissibilidade de conhecimento de recurso obrigatório interposto para o
Tribunal Constitucional, quando não tenha sido previamente interposto recurso
nos termos e para os efeitos do artigo 446º do CPP. A este propósito,
relembra-se, a mero título de exemplo, o que este mesmo Tribunal já teve
oportunidade de esclarecer, através do Acórdão n.º 31/2004, de 14 de Janeiro:
“«2. A questão do não conhecimento imediato do recurso de constitucionalidade
interposto de decisão de recusa de aplicação de interpretação normativa
consagrada em acórdão de uniformização de jurisprudência penal do Supremo
Tribunal de Justiça, com fundamento em inconstitucionalidade dessa
interpretação, foi recentemente abordada por esta 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional em caso em que também estava em causa uma recusa de aplicação,
com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º
do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do
Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo
Tribunal de Justiça no “Acórdão de Uniformização de Jurisprudência” n.º 10/2000,
segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da
prescrição do procedimento criminal, assumindo‑se claramente tal decisão – como
a dos presentes autos – como dissidente da jurisprudência uniformizada.
Referimo‑nos ao Acórdão n.º 412/2003, que, a respeito desta questão, expendeu o
seguinte:
“2.4.2. Relativamente à recusa de aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de
Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de
1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de
Justiça no «Assento» n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia
constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, (...)
entende‑se, pelas razões expendidas pelo próprio recorrente, na sua alegação,
que não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento desta parte do objecto
do recurso, por força do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da LTC e atenta a
natureza obrigatória do recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo
Penal.
Trata‑se de entendimento já seguido por este Tribunal nos Acórdãos n.ºs 281/01 e
282/01 (o primeiro publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol.,
pág. 587), também em casos de recursos interpostos pelo Ministério Público, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de decisões que haviam
recusado, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas
constantes dos artigos 119.º do Código Penal de 1982 (redacção originária), e
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação, feita pelo
«Assento» do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2000, de que, no domínio de
vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a
declaração de contumácia constituía causa de suspensão do procedimento criminal,
sem que previamente tivesse sido interposto pelo mesmo Ministério Público o
recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal «de
quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal
de Justiça».
Escreveu‑se no Acórdão n.º 281/01 (cuja fundamentação foi reproduzida no Acórdão
n.º 282/01):
«4. Na verdade, segundo o n.º 5 do artigo 70.º citado [da LTC], “não é admitido
recurso para o Tribunal Constitucional de decisões sujeitas a recurso ordinário
obrigatório, nos termos da respectiva lei processual”.
Ora, no presente recurso, a decisão recorrida, afastando a aplicação do Assento
n.º 10/2000 por inconstitucionalidade, está, como resulta do disposto no n.º 1
do artigo 446.º do Código de Processo Penal, sujeita a recurso obrigatório por
parte do Ministério Público.
Sucede, porém, que o Código de Processo Penal qualifica este recurso como um
recurso extraordinário (...); assim, coloca-se a questão de saber se este caso
está ou não abrangido pelo citado n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82.
5. Para o efeito, cabe averiguar se a razão que justifica o regime previsto
neste n.º 5 – apenas recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que
proferir a última palavra na ordem dos tribunais que julgaram a causa – ocorre
no caso presente, e, em caso afirmativo, se deve prevalecer, não obstante se
tratar, por um lado, de um recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e, por outro, de um recurso
obrigatório extraordinário.
É sabido que a Lei n.º 28/82 apenas impõe a prévia exaustão das vias de recurso
no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, ou seja, interpostos de decisões que
aplicaram norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi suscitada durante
o processo; e que, diferentemente, abre recurso directo para o Tribunal
Constitucional de decisões não definitivas (ainda susceptíveis de recurso
ordinário) de recusa de aplicação de normas, pelos mesmos motivos, como é o caso
presente.
Ora, quer num caso, quer no outro, a não ser interposto previamente o recurso
obrigatório dentro da ordem a que pertence o tribunal que julgou a causa, pode
vir a subsistir uma decisão sujeita a recurso obrigatório que versa exactamente
sobre a norma julgada pelo Tribunal Constitucional; e o problema põe-se da mesma
forma quando é o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal
que está em causa, apesar de ser qualificado por lei como recurso
extraordinário.
Vejamos o caso, precisamente, do recurso imposto por este preceito.
A ser julgado primeiro o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por
recusa de aplicação de uma norma, se o Tribunal Constitucional confirmar o juízo
de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, subsiste uma decisão contrária a
jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – logo, ainda sujeita a
recurso obrigatório, que não pode deixar de ser interposto.
Interposto esse recurso – e vamos admitir que chegamos ao Supremo Tribunal de
Justiça –, este Tribunal, para respeitar o caso julgado formado no processo
sobre a questão de constitucionalidade, nos termos do disposto no n.º 1 do
artigo 80.º da Lei n.º 28/82, tem de alterar a orientação jurisprudencial que
definiu, revendo o assento, sem ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre a
decisão que recusou a respectiva aplicação por inconstitucionalidade. Do ponto
de vista das relações institucionais entre o Supremo Tribunal de Justiça e o
Tribunal Constitucional, há-de concordar-se não ser esta a melhor solução.
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, o intérprete
há-de presumir, ao fixar o sentido da lei, que o legislador consagrou a solução
mais acertada. E essa directriz leva-nos a não distinguir, para efeitos de
aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, entre recursos
ordinários e o recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso, por não ter sido
previamente interposto o recurso obrigatório previsto no artigo 446.º do Código
de Processo Penal.» (Acórdão n.º 31/2004, de 14 de Janeiro de 2004)
É precisamente este sentido da jurisprudência citada – quer a
resultante do Acórdão n.º 31/2004, quer dos Acórdãos n. 281/01, n.º 282/02, n.º
332/01, n.º 333/01, n.º 334/01, n.º 335/01, n.º 472/01, n.º 506/01, n.º 31/04 e
n.º 688/04 – que aqui se acompanha e reitera, com a consequente recusa de
conhecimento do objecto do recurso.
III – DECISÃO
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 2 de Abril de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração de voto junta)
Vítor Gomes (vencido, nos termos da declaração de voto da Exma.
Conselheira Maria Lúcia Amaral que, no essencial acompanho)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto à decisão de não conhecimento do recurso.
Acolheu como bom fundamento a decisão maioritária, neste caso, a ideia segundo a
qual “[subsistindo] controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a melhor
interpretação a dar à norma desaplicada pela decisão recorrida” se imporia
“prévia interposição obrigatória do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
para efeitos de fixação de jurisprudência, conforme impõe o nº 1 do artigo 446º
do CPP”.
Tendo, porém, “a norma desaplicada pela decisão recorrida” – cujo teor era o
seguinte: No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo
Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da
prescrição de procedimento criminal – sido declarada inconstitucional, com força
obrigatória geral, pelo Acórdão nº 183/2008, não vejo como é que pode continuar
a afirmar‑se que subsiste controvérsia quanto à sua melhor interpretação.
Tal só seria pensável se, ainda aqui, se tratasse (ou continuasse a tratar) de
um problema de descoberta do melhor Direito; se, ainda aqui, se continuasse a
justificar a obrigatoriedade de interposição de recurso para a uniformização de
jurisprudência; se, ainda aqui, continuasse o Supremo Tribunal de Justiça a
deter competência para a fixação do sentido da norma de entre toda a pluralidade
dos seus sentidos possíveis. Face aos efeitos da declaração de
constitucionalidade com força obrigatória geral (artigo 281º, nº 1, da
Constituição) não vejo, porém, como pode ser sustentável semelhante tese.
Por outro lado, toda a jurisprudência constitucional na qual se fundou a decisão
de que dissenti – e que incluía o recurso previsto no artigo 446º do Código de
Processo Penal na categoria dos “recursos ordinários obrigatórios” prevista no
nº 5 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – tinha a sustentá‑la uma
lógica argumentativa que, a meu ver, perde sentido após a declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Partia tal lógica da
necessidade de encontrar um conceito de “recurso ordinário” (no qual se
incluiria o recurso previsto no artigo 446º do CPP) que fosse teleológico e
funcionalmente orientado em torno das relações – e dos poderes cognitivos – do
Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça.
A verdade, porém, é que são essas mesmas relações e poderes cognitivos que, no
caso, mudam substancialmente de natureza, a partir do momento em que, quanto à
norma em juízo, profere o Tribunal Constitucional uma declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Maria Lúcia Amaral