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Processo nº 424/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. foi condenado, por sentença do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila
Verde com data do dia 21 de Novembro de 2006, pela prática de um crime de
desobediência qualificada, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 2, do
Código Penal, e 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na pena de 90 (noventa) dias
de multa, à razão diária de € 3,00 (três euros).
Na fundamentação desenvolvida ponderou-se, após enunciar a matéria de facto
considerada provada:
2. FUNDAMENTAÇÃO
A convicção do Tribunal alicerçou-se nas declarações do arguido, que admitiu
saber que não podia conduzir, tendo também informado acerca da sua situação
familiar, social e económica; e nos seguintes documentos – decisão da autoridade
administrativa, de fls. 13 e 17, auto de entrega da carta de condução, de fls.
4, certificado de registo criminal, de fls. 7.
3. DIREITO
Atentos os factos descritos, mostra-se preenchida, objectiva e subjectivamente,
o tipo legal do crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelo art.
348°, n.° 2, do CP, e 138°, n.° 2, do Código da Estrada, o qual prevê uma
moldura legal abstracta de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Cumpre, então, proceder à escolha da pena segundo o critério estabelecido no
art. 70°, n.° 1, do CP.
Assim, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não
privativa da liberdade, manda a norma citada que o tribunal opte por uma pena
não detentiva da liberdade, se esta realizar de forma adequada e suficiente as
finalidades da punição.
Ora, o arguido não tem antecedentes criminais, pelo que, atenta essa
circunstância e o tipo de crime em causa, é suficiente a aplicação de uma pena
de multa, que funcionará como advertência ao arguido quanto à sua futura
conduta, confiando o Tribunal que determinará a sua conduta de acordo com os
valores tutelados pela Ordem Jurídica.
Em face do grau de ilicitude e de culpa do agente, da sua confissão dos factos e
das suas condições económicas e sociais, e ainda das exigências de prevenção
geral e especial, julgamos adequado aplicar-lhe a pena de 90 (noventa) dias de
multa, à razão diária de €: 3,00 (três euros) – cfr. art°s 47º, 70° e 72° do C.
Penal.
2. A., por considerar que o tribunal a quo “aplicou, na decisão dos presentes
autos, uma norma – o art.º 138.º, n.º 2 do D.L. 44/2005, de 23 de Fevereiro – já
anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional, no
Acórdão n.º 574/06, datado de 18 de Outubro de 2006, disponível in
www.pgdlisboa.pt”, recorreu da mesma para este Tribunal, ao abrigo do disposto
na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do
Tribunal Constitucional).
Admitido o recurso, o recorrente apresentou antecipadamente alegações, que
concluiu da seguinte forma:
1 – Na sentença de que se recorre, o Tribunal a quo, condenou o arguido, ora
recorrente, pela prática do crime de desobediência qualificada previsto e
punível pelo art. 348, n.° 2 do Código Penal e pelo art. 138, n.° 2 do actual
Código da Estrada.
2 – O art. 138, n.° 2 do actual Código da Estrada foi já, em 18 de Outubro de
2006, julgado organicamente inconstitucional por este Venerando Tribunal pelo
douto Acórdão. n.° 574/06 (Processo nº 438/2006).
3 – Porque é da competência exclusiva da Assembleia da República, salvo
autorização ao Governo, legislar sobre definição de crimes, penas, medidas de
segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal – art. 165, n.º
1 al c) da Constituição da República Portuguesa.
4 – E a lei de autorização com base na qual o governo aprovou do Código da
Estrada – a Lei 53/2004, de 4 de Novembro – não concedeu ao governo autorização
para tipificar algum tipo de crime nem para alterar os pressupostos objectivos
do tipo legal de crime de desobediência qualificada, que anteriormente estava
previsto nas disposições conjugadas do art. 348°, n.° 2 do Código Penal e do
art. 139°, n.° 4 do Código da Estrada.
5 – No entanto, com a redacção actual do art. 138, n.° 2 do Código da Estrada,
verifica-se uma intenção do legislador de estender a cominação por desobediência
qualificada não só à conduta do indivíduo que conduza estando inibido de o fazer
por força de decisão administrativa, como também à conduta do indivíduo que
conduza um veículo automóvel estando proibido de o fazer por força de pena
acessória aplicada por sentença criminal.
6 – Enquanto que, no domínio da anterior redacção do Código da Estrada, dispunha
o art. 139, n.° 4 do referido código que quem conduzisse veículo a motor estando
inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou por decisão
administrativa era punido por desobediência qualificada.
7 – Concluindo-se, pois, que o actual art. 138, n.º 2 do diploma legal em causa,
define os pressupostos objectivos de um tipo legal de crime – o de desobediência
qualificada.
8 – E isto quando não se vislumbra da lei de autorização – a Lei 53/2004, de 4
de Novembro – qualquer permissão da Assembleia da República para que o governo
legislasse nesse sentido.
9 – Pelo que se requer a este Venerando Tribunal se digne apreciar e julgar, no
caso concreto, a inconstitucionalidade orgânica da norma constante no art. 138,
n.° 2 do Decreto-Lei 44/2005, 23 de Fevereiro.
Notificada da interposição de recurso, a representante do Ministério Público
junto do tribunal a quo respondeu, invocando o seguinte:
Não obstante e salvo o devido respeito, entendemos não dever ser conhecido o
objecto do presente recurso por extemporâneo.
Com efeito, à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional,
designadamente no que respeita ao prazo de interposição, é subsidiariamente
aplicável a lei processual civil por remissão directa da lei do processo
constitucional – cfr. o artigo 69° da Lei do Tribunal Constitucional.
Ora, nos termos da lei processual civil, o prazo para interposição dos recursos
é de 10 dias, contados da notificação da decisão, nos termos do disposto no
artigo 685°, n°1, do Código de Processo Civil.
Sucede que o arguido foi pessoalmente notificado do teor da decisão em causa nos
autos, ditada para a acta, no dia 21 de Novembro de 2006, sendo que dela
interpôs recurso apenas no dia 05 de Dezembro de 2007, ou seja, 11 dias depois,
contados daquela notificação.
Mas, a não se entender assim, V.Exas. ajuizarão da alegada inconstitucionalidade
orgânica da referida norma do Código da Estrada, uma vez que o Governo legislou
sobre a matéria, a que alude a alínea c), do artigo 165°, n° 1, da CRP, não
tendo, para tanto prévia autorização legislativa,
Assim fazendo a habitual e esperada
Justiça!
Determinada a produção de alegações, o representante do Ministério Público junto
do Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo:
1°
É organicamente inconstitucional a norma do n° 2 do artigo 138° do Código da
Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei n° 44/2005, de 23 de Fevereiro,
uma vez que o Governo legislou sobre matéria, a que alude a alínea c) do artigo
165°, n° 1 da Constituição, não tendo para tanto prévia autorização legislativa.
2°
Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Após ter sido determinada a audição das partes “sobre a eventualidade de o
Tribunal Constitucional não poder tomar conhecimento do recurso, com fundamento
em inutilidade, dada a identidade dos conteúdos entre o segmento normativo do
artigo 139.º, n.º 2, do Código da Estrada em causa nos presentes autos e o
artigo 139.º, n.º 4, do mesmo Código, na versão anterior à que o Decreto-Lei n.º
44/2005 deu corpo – norma esta a repristinar em consequência de um hipotético
juízo de inconstitucionalidade”, o recorrente veio, nomeadamente, dizer que
“salvo respeito por melhor opinião, entende o recorrente que há interesse e
utilidade jurídica em indagar da inconstitucionalidade da norma em mérito, no
caso concreto – o art.º 138.º, n.º e do actual Código da Estrada”, “norma que,
num outro caso de fiscalização concreta, que esteve na base do douto Acórdão
acima referido” – Acórdão n.º 574/2006 -, “foi declarada organicamente
inconstitucional”, requerendo, a final, “a este Venerando Tribunal se digne,
neste caso concreto, apreciar e julgar organicamente inconstitucional a norma
constante no art.º 138.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro,
para que, desta forma, se reponha a JUSTIÇA!”
II
Fundamentos
3. A representante do Ministério Público junto do tribunal a quo invoca a
questão da extemporaneidade do recurso, já que “o arguido foi pessoalmente
notificado do teor da decisão em causa nos autos, ditada para a acta, no dia 21
de Novembro de 2006, sendo que dela interpôs recurso apenas no dia 05 de
Dezembro de 2006, ou seja, 11 dias depois, cotados daquela notificação.”
Ora, tendo o recurso dado entrada neste Tribunal, via telecópia, pelas 20h01m do
dia 4 de Dezembro de 2006, e sendo incontroversa a admissibilidade do envio por
telecópia do respectivo requerimento de interposição, independentemente do
“horário normal” da secretaria judicial, é de concluir pela tempestividade do
vertente recurso.
4. O mesmo recurso é interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, invocando o recorrente o facto de o Tribunal já
ter anteriormente julgado inconstitucional (no Acórdão nº 574/2006) a “norma”
aplicada na decisão recorrida.
Sucede porém – e tal só resulta claro da fundamentação de um outro Acórdão do
Tribunal, em que se decidiu uma questão de constitucionalidade em tudo idêntica
à dos presentes autos (Acórdão nº 114/2008) – que existe uma diferença
substancial, relevante sob o ponto de vista jurídico‑constitucional, entre o
caso dirimido nos autos e o apreciado no precedente jurisprudencial invocado
como fundamento do recurso.
Ao recorrente, porém, não era exigível a percepção de uma tal diferença, visto
(como se disse) decorrer ela apenas da fundamentação inscrita no Acórdão nº
114/2008, e não resultar clara do Acórdão nº 574/2006 que é invocado como razão
de interposição do presente recurso.
5. A questão que se discute no presente recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade é a da conformidade constitucional da norma do n.º 2 do
artigo 138.º, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23
de Fevereiro.
Como se disse, trata-se de questão de constitucionalidade idêntica à que foi
apreciada pelo Tribunal no Acórdão n.º 114/2008, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt.
Nesse acórdão – tirado em recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade, interposto pelo Ministério Público ao abrigo do disposto na
alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, de sentença
absolutória do arguido que teve por base a recusa de aplicação da norma do
artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, tida como organicamente
inconstitucional –, o Tribunal concluiu que não violava o disposto na alínea c)
do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição a norma do n.º 2 do artigo 138.º do
Código da Estrada, na parte (dimensão ou segmento ideal) em que pune como
desobediência qualificada quem conduzir veículo a motor estando inibido de o
fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva a
título de sanção acessória pela prática de contra-ordenações, consequentemente
ordenando a reforma da decisão então recorrida em conformidade com o julgamento
de não inconstitucionalidade.
As considerações que justificaram essa decisão pareceriam ser totalmente
transponíveis para o caso sub judice. Pode ler-se na fundamentação do referido
aresto:
3. Invocando a autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de
Novembro, e o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da
Constituição, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, veio dar nova
redacção a vários preceitos do Código da Estrada (artigo 1.º). Entre as matérias
que foram objecto de alteração avulta o regime de sancionamento dos ilícitos
estradais. Neste capítulo, se insere o artigo 138.º que, na nova redacção,
passou a dispor (sublinhada a disposição sobre que incide a controvérsia):
Artigo 138.º
Sanção acessória
1 – As contra-ordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e com
sanção acessória.
2 – Quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por
sentença transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique
uma sanção acessória é punido por crime de desobediência qualificada.
3 – A duração mínima e máxima das sanções acessórias aplicáveis a outras
contra-ordenações rodoviárias é fixada nos diplomas que as prevêem.
4 – As sanções acessórias são cumpridas em dias seguidos.
Na redacção imediatamente anterior do Código da Estrada, esta matéria estava
regulada no artigo 139.º, que tinha a seguinte redacção (também sublinhada a
norma em que se punia a condução de veículos automóveis no período de
cumprimento da sanção acessória):
Artigo 139.º
Inibição de conduzir
1 – As contra-ordenações graves e muito graves são sancionadas com coima e com
sanção acessória de inibição de conduzir.
2 – A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de
um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável
às contra ordenações graves ou muito graves, respectivamente.
3 – A sanção de inibição de conduzir é cumprida em dias seguidos e refere-se a
todos os veículos a motor.
4 – Quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva é punido por
desobediência qualificada.
Cotejando os preceitos transcritos, verifica-se que, além da diferente
numeração, e da alteração da epígrafe do preceito, existem as seguintes
diferenças entre os textos legais em comparação:
i) onde anteriormente se dizia: “Quem conduzir veículo a motor …”, agora
diz-se: “ Quem praticar qualquer acto”;
ii) onde se dizia: “ ….estando inibido de o fazer”, passou a dizer-se : “
…estando inibido ou proibido de o fazer”.
Mantém-se a estatuição: a conduta tipificada era e continua a ser punida como
crime de desobediência qualificada.
O legislador pretendeu abranger na punição da desobediência qualificada prevista
no n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada não só o agente que conduza
estando inibido de o fazer por força de decisão administrativa ou judicial, como
sanção acessória de contra-ordenação (anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código
da Estrada), mas também a conduta do individuo que viole, no domínio rodoviário,
as proibições ou interdições que resultem da imposição de pena acessória por
sentença criminal (artigo 353.º do Código Penal). Unificou-se a punição criminal
de condutas que se traduzam em desrespeito de decisões judiciais ou
administrativas que imponham ao agente proibições ou inibições de conduzir ou
outras condutas no domínio da circulação rodoviária, seja qual for a natureza da
infracção (crime ou contra-ordenação) cuja prática pelo agente levou a essa
proibição de agir ou a natureza da decisão que a impôs (decisão judicial ou
administrativa).
Nesta interpretação, o n.º 2 do artigo 138.º, na nova redacção, numa parte
(dimensão ou segmento ideal) sobrepõe-se e noutra é inovador, relativamente ao
anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada. Seguramente que se limita a
manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito pelo cumprimento
da inibição de conduzir veículo a motor resultante da imposição de sanção
acessória pela prática de contra-ordenações, porque essa conduta, já punida nos
mesmos termos na redacção anterior do Código, cabe na expressão “qualquer acto”.
E é inovador na parte em que transpõe para o Código da Estrada o desrespeito por
proibições atinentes à circulação rodoviária, impostas a título de pena
acessória ou medida de segurança por sentença criminal, subtraindo-a do domínio
geral da punição do não cumprimento das obrigações impostas por sentença
criminal.
4. Foi com esta interpretação que o acórdão n.º 574/2006 (publicado no Diário da
República, II Série, de 13 de Dezembro) confirmou o juízo de
inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência
legislativa constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição,
formulado pela sentença que nesse processo estava em reapreciação.
Com efeito, na Lei n.º 53/2004 não se vislumbra autorização ao Governo para,
como se diz na sentença agora em apreciação, proceder à '(re)tipificação ou
alteração do tipo inscrito no artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada
actualmente em vigor', ou seja, para alterar o que constava da anterior versão
do mesmo Código no domínio da definição de crimes e penas criminais, como seria
necessário para que o Governo pudesse legislar nesta matéria, face à reserva
relativa de competência legislativa estabelecida pela alínea c) do n.º 1 do
artigo 165.º da Constituição.
Todavia, não pode interpretar-se esse acórdão, em que se decidiu 'confirmar o
juízo de inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida', como
comportando um juízo de inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 138.º do Código
da Estrada, em toda a sua extensão normativa.
Na verdade, o que o despacho então recorrido recusara aplicar, por organicamente
inconstitucional, fora “a norma do n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada,
na redacção resultante do Decreto-Lei n.º 44/2005, na interpretação segundo a
qual comete um crime de desobediência qualificada todo aquele que conduzir um
veículo automóvel estando proibido de o fazer por força de pena acessória
aplicada por sentença criminal transitada em julgado”. Estava, pois, em causa o
desrespeito da proibição de conduzir veículos automóveis imposta como pena
acessória por uma anterior sentença criminal. E essa é, por contraposição ao
anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada, uma das “zonas de não
sobreposição”. Este alcance restrito do julgamento do referido acórdão ressalta
da seguinte passagem:
'A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses distintas
e implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à variação
relativa da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos tipificados, com
consequências para os comportamentos que agora são abrangidos. Com efeito, o nº
4 do artigo 139º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº
44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência qualificada para
quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo que o nº 2
do artigo 138º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº 44/2005, de
23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar qualquer acto,
quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer. Independentemente de saber
se, noutras hipóteses em que não existisse [existisse?] uma exacta coincidência
de factualidade típica, ainda assim por razões de ilicitude material se teria de
reconhecer o carácter inovatório da norma em causa, o certo é que, no presente
caso, o agente violou a proibição de condução de veículo a motor decorrente da
sanção acessória aplicada por sentença transitada em julgado que o condenou por
crime rodoviário. Como se verifica, não existe total coincidência entre a
factualidade típica constante das duas normas incriminadoras'.
5. Sucede que a situação agora em apreciação é diversa.
Imputou-se ao arguido e considerou-se provada a condução de um ciclomotor na via
pública no período de cumprimento de sanção acessória de inibição de conduzir
imposta por decisão administrativa em processo de contra-ordenação.
Consequentemente, a dimensão ou o segmento normativo do n.º 2 do artigo 138.º
relevante não coincide com aquele que se julgou inconstitucional no acórdão n.º
574/2006. A situação respeita à violação da inibição de conduzir imposta como
sanção acessória por contra-ordenação estradal, conduta que já estava prevista
na redacção anterior do Código da Estrada como constituindo crime de
desobediência qualificada, ou seja, o segmento normativo do n.º 2 do artigo
138.º em causa no presente recurso corresponde a uma “zona de sobreposição”
total com o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada na versão anterior àquela
a que o Decreto-Lei n.º 44/2005 deu corpo.
Assim, reconduzindo o objecto do recurso à dimensão normativa relevante, como é
próprio do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, importa
saber se é organicamente inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 138.º do
Código da Estrada, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 44/2005, enquanto
pune como crime de desobediência qualificada quem conduzir veículo a motor
estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão
administrativa definitiva, como sanção acessória de contra-ordenação.
6. Há dois aspectos essenciais que podem afirmar-se sem maior demonstração, uma
vez que as considerações que a sentença recorrida faz a este propósito não são
postas em dúvida por qualquer dos sujeitos processuais e se subscrevem, a saber:
– A Lei n.º 53/2004 não conferiu credencial ao Governo para legislar em matéria
de definição de crimes ou penas criminais, porque dela não consta qualquer
referência a esta matéria, como o Tribunal já considerou no acórdão n.º 574/2006
e se reitera;
– A norma que qualifica determinada conduta como fazendo incorrer o agente em
crime de desobediência qualificada (a disposição legal a que se refere o n.º 2
do artigo 348.º do Código Penal) consubstancia ainda a definição de crime, pelo
que a sua emissão está abrangida pela reserva parlamentar a que se refere o
artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição (cfr. Acórdão n.º 256/2002,
publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Julho de 2002).
Estamos, portanto perante uma norma que pertence ao domínio de reserva relativa
de competência legislativa da Assembleia da República e que foi inserida em acto
legislativo da autoria do Governo sem que exista credencial parlamentar
específica.
7. Todavia, nem por assim ser tem de concluir-se necessariamente pela
inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que
remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos
normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de
competência da Assembleia da República não determina, por si só e
automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de
inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas
sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que
até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir
substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão
de soberania competente (Cfr. os acórdãos n.ºs 502/97, 589/99, 377/02, 414/02,
450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da
República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de
Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de
Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão n.º 123/04 (Plenário)
publicado no Diário da República,
I Série-A, de 30 de Março de 2004. Cfr. ainda, aliás com posição discordante, a
indicação de jorge miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, págs.
234/235).
Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva relativa de
competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa concluir
pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera
verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo
também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo
texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo.
Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma
editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de
competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se
vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa
primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da
Assembleia da República ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no
ordenamento jurídico, apesar da recompilação no novo acto legislativo do
Governo.
A este propósito mantém-se válida a exposição que o acórdão n.º 299/92, Diário
da República, II Série, de 14 de Dezembro de 1992, faz dos contornos da
jurisprudência do Tribunal:
“(…)
Com efeito, numa primeira fase, o Tribunal Constitucional apenas julgou
inconstitucionais as normas que, versando sobre matéria integrada na reserva de
competência legislativa da Assembleia da República, fossem inovatórias.
Uma tal visão das coisas decorria do entendimento já perfilhado pela Comissão
Constitucional (cf. Pareceres n.ºs 2/79, 31/79, 24/80, 29/80, 3/82, 12/82 e
17/82, publicados nos volumes que coligiram os pareceres daquela Comissão,
respectivamente 7.º vol., p. 189, 10.º vol., p. 59, 13.º vol., pp. 129 e 249,
18.º vol., p. 141, e 19.º vol., pp. 113 e 253) e reiterado pelo Tribunal
Constitucional, entre outros, nos seus Acórdãos n.ºs 1/84 (publicado no Diário
da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1984), 56/84 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984), 142/85 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 7 de Setembro de 1985), 212/86 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 4 de Julho de 1986), 254/86 (publicado no Diário da
República, 2.ª série, de 26 de Novembro de 1986), 67/87 (publicado no Diário da
República, 2.ª série, de 16 de Abril de 1987) e 423/87 (publicado no Diário da
República, 1.ª série, de 26 de Novembro de 1987), segundo o qual não originaria
inconstitucionalidade orgânica a produção pelo Governo de decretos-leis não
autorizados em matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da
República, desde que o Governo se limitasse a compilar e reproduzir a legislação
vigente. Nestes casos, em que o Governo se limitava a reproduzir o texto de
disposições em vigor, em nada alterando, acrescentando ou retirando ao que antes
já estava legislado, tudo se passaria como se o legislador governamental se
tivesse mantida inactivo em tal matéria, abstendo-se de legislar.
Desenvolvendo e precisando os contornos de tal entendimento, o Tribunal
Constitucional, no seu Acórdão n.º 77/88 (publicado no Diário da República, 1.ª
série, de 29 de Abril de 1988), introduziu uma nuance na formulação daquele
entendimento, ao sublinhar, num enfoque mais sensível a argumentos de ordem
sistemática, a relevância da «vocação global» do diploma onde as normas
reproduzidas se inserem para efeitos do juízo de constitucionalidade. Ai se
escreve que, «se é inegável que num conjunto não despiciendo de disposições do
diploma em apreço o legislador governamental se limitou a reproduzir e
‘sistematizar’ direito vigente, não é menos certo que o que sobreleva nessa
intervenção legislativa é, por um lado, o seu propósito de modificar pontos de
fundamental relevância no regime jurídico em causa e, por outro lado, o seu
significado e alcance global.
[…]
Ora, nestas condições, não faz sentido aplicar na espécie a orientação
jurisprudencial atrás citada e restringir o juízo de inconstitucionalidade
apenas às normas desse diploma efectivamente modificadoras do regime legal
anterior: a verdade é que se está perante uma intervenção global, e de fundo, do
legislador governamental em matéria que entra por inteiro na reserva
parlamentar».
Esta argumentação viria a ser retomada nos Acórdãos n.ºs 111/88 (publicado no
Diário da República, 2.ª série, de 1 de Setembro de 1988), 8/89 (publicado no
Diário da República, 2.ª série, de 13 de Abril de 1989), 407/89 (publicado no
Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989) e 414/89 (publicado
na 1.ª série do jornal oficial de 3 de Julho de 1989) e, mais recentemente, nos
Acórdãos n.ºs 372/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de
Novembro de 1991) e 373/91 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 6 de
Novembro de 1991) embora neste último caso com dois votos de vencido …”.
Ora, como se deixou dito, os factos imputados ao arguido, ora recorrido, eram
punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 4 do artigo 139.º do
Código da Estrada na versão deste Código anterior àquela em que se insere a
norma a que agora foi subsumida essa conduta. E continuam a ser punidos como
crime de desobediência qualificada pelo n.º 2 do artigo 138.º na nova versão do
Código, nos mesmos exactos termos. A diferente numeração e a alteração da
epígrafe do preceito é mera consequência da reordenação dos demais preceitos do
Código, não traduzindo diversa valoração quanto ao bem jurídico protegido ou
quanto ao contexto dos elementos relevantes para a punição desta conduta. Nesta
parte, continua a tutelar-se penalmente, agora como antes, o cumprimento das
decisões que imponham sanções acessórias de inibição de conduzir pela prática de
contra‑ordenações em matéria de circulação rodoviária. Não houve aqui
intervenção materialmente constitutiva do Governo. Estão, assim, reunidas as
condições para que, à luz da referida jurisprudência do Tribunal e tendo em
consideração que estamos no âmbito de um processo de fiscalização concreta, a
intromissão legislativa formal não autorizada do Governo no domínio da reserva
relativa da competência da Assembleia da República não gere
inconstitucionalidade orgânica.
Nestas circunstâncias, o Tribunal Constitucional não considera violado o
disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição pela norma do n.º
2 do artigo 138.º do Código da Estrada, na parte (dimensão ou segmento ideal) em
que pune como desobediência qualificada quem conduzir veículo a motor estando
inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa
definitiva a título de sanção acessória pela prática de contra-ordenações, pelo
que o recurso merece provimento.
Porém, resulta do aresto acima transcrito a manifesta inutilidade do
conhecimento do presente recurso, que a resposta do recorrente não conseguiu
abalar. Lê-se, nomeadamente, na respectiva fundamentação:
(…) a dimensão ou o segmento normativo do n.º 2 do artigo 138.º relevante não
coincide com aquele que se julgou inconstitucional no acórdão n.º 574/2006. A
situação respeita à violação da inibição de conduzir imposta como sanção
acessória por contra-ordenação estradal, conduta que já estava prevista na
redacção anterior do Código da Estrada como constituindo crime de desobediência
qualificada, ou seja, o segmento normativo do n.º 2 do artigo 138.º em causa no
presente recurso corresponde a uma “zona de sobreposição” total com o n.º 4 do
artigo 139.º do Código da Estrada na versão anterior àquela a que o Decreto-Lei
n.º 44/2005 deu corpo.
No caso vertente, a decisão condenatória também teve por base a violação da
inibição de conduzir imposta como sanção acessória por contra-ordenação
estradal, conduta que, como se (re)transcreveu, já estava prevista na redacção
anterior do Código da Estrada como constituindo crime de desobediência
qualificada, pelo que, do mesmo modo, o segmento normativo do n.º 2 do artigo
138.º em causa no presente recurso corresponde a uma “zona de sobreposição”
total com o n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada na versão anterior àquela
a que o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, deu corpo.
Daqui se retira a evidente inutilidade do conhecimento do presente recurso,
pois, fosse qual fosse a decisão tomada, permaneceria incólume a decisão
condenatória recorrida, em face da qualificação dos factos a título de
desobediência qualificada de acordo com o segmento normativo do n.º 2 do artigo
138.º do Código da Estrada em causa nos presentes autos (e nos que deram origem
ao citado Acórdão n.º 114/2008) ou, por força da repristinação em consequência
de um hipotético juízo de inconstitucionalidade, com o n.º 4 do artigo 139.º do
Código da Estrada, na versão anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º
44/2005, de 23 de Fevereiro.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu
o recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional,
nem sendo exacto que, após a apresentação de alegações, fique precludida a
possibilidade de não se conhecer do objecto do recurso, importa concluir pela
procedência da questão respeitante ao não conhecimento do recurso.
III
Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenar o
recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 12 UC’s.
Lisboa, 2 de Abril de 2008
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão