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Processo n.º 35/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da
decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu
não conhecer do recurso de constitucionalidade interposto do acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa, proferido nos autos.
2 – Fundamentando a reclamação a reclamante limita-se a afirmar:
“1. Reafirma-se a inconstitucionalidade alegada e,
2. Não é o lapso de temporal decorrido que pode valorar essa
inconstitucionalidade ou considerar-se que esse prazo ultrapassou em muito o
prazo que a recorrente considerar inconstitucional.
3. Existindo, pois, tal inconstitucionalidade.
Termos em que, com o douto suprimento de V.ªs Ex.ªs se deve tomar
conhecimento do recurso”.
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
respondeu dizendo que “a reclamação é manifestamente improcedente” e que “na
verdade a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que respeita à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso”.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., com os demais sinais dos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), pretendendo ver
apreciada a constitucionalidade da norma do “artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º
29/99, de 12 de Maio, na parte em que, ao conceder o perdão sob condição
resolutiva de reparação do lesado da indemnização que lhe é devida, a satisfazer
nos 90 dias imediatos à notificação que deve para o efeito ser feita ao
condenado, prejudica o condenado em razão da sua situação económica (artigo
13.º, n.º 2), não considerando o condenado igual perante a lei (artigo 13.º, n.º
1), e restringe os seus direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2),
sem que essa restrição de direitos, liberdades e garantias revista carácter
geral e abstracto (artigo 18.º, n.º 3, todos da Constituição da República
Portuguesa)”.
2 – Compulsando os autos, cumpre relatar com interesse para o caso sub
judicio:
2.1 – A arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho
proferido no 1.º Juízo Criminal de Almada que lhe indeferira a pretensão de
concessão de novo prazo de 90 dias para satisfação da condição resolutiva
prevista no artigo 5.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, e de considerar
satisfeita tal condição com a indicação que a arguida fizera em sede de execução
ao indicar à penhora os seus vencimentos, tendo sintetizado o seu discurso na
formulação das seguintes conclusões:
«1. No seu requerimento, de fls. 753 e segs., a arguida, em suma, argumenta que
indicou à queixosa/exequente as empresas onde trabalha, fazendo nestas serviços
de limpeza.
2. Daí o requerimento da queixosa/exequente, de 21.09.2006, a fls. .., no Apenso
D (execução), onde, em síntese, requer que seja penhorado à arguida 1/3 dos
salários que esta aufere nas empresas “B., Lda.”, e “C., S.A.”.
3. É penhorado à arguida, pela “B., Lda.”, € 164,09 e € 98,29 dos seus
vencimentos, respectivamente, em 05/2007 e 06/2007 (Docs. nºs 1 e 2).
4. Entende-se, pois, que a penhora dos vencimentos da arguida faz com que esta
cumpra a condição resolutiva de reparação à queixosa/exequente, a que respeita o
art. 5°, nº 1, da Lei nº 29/99, de 12.05.
5. Acrescendo que a arguida foi condenada a pagar à queixosa/exequente a quantia
de 8 019 700$00, acrescida de juros, o que constitui uma quantia muito avultada
para quem aufere cerca de € 400,00 mensais (consulte apenso D) (execução).
6. É a arguida que indica à queixosa/exequente os seus vencimentos, que esta
nomeou à penhora, com a notificação a que alude o art. 5º, nº 2, da Lei nº
29/99, de 12.05 (cfr. 742 verso).
E mais,
7. Em prisão, no caso desta ser decretada com a revogação do perdão concedido, a
arguida não poderá pagar à queixosa/exequente a indemnização arbitrada a esta,
por deixar de auferir vencimentos.
8. Isto, quando a prisão já cumprida, de 16.12.1997 a 21.07.1999, é suficiente
para a arguida interiorizar a ilicitude do seu comportamento.
9. Não se entendendo como se defende, deve conceder-se novo prazo de 90 dias
para a arguida satisfazer a condição resolutiva do art. 5º, nº 1, dado que a
arguida indicou à queixosa/exequente os seus vencimentos, que esta nomeou à
penhora, com a notificação a que alude o art. 5º, nº 2 (cfr. fls. 742 verso), e
que a situação económica e a ausência de antecedentes criminais da arguida o
justificam (art. 5º, nº 7, todos da Lei nº 29/99, de 12.05).
10. Após a prolação do douto acórdão, nos presentes autos, a arguida não
praticou qualquer outro ilícito penal e, por isso, não sofreu nenhuma outra
condenação, enquanto a atrás descrita situação económica também justifica a
concessão de novo prazo de 90 dias para satisfazer a condição resolutiva,
bastando relembrar a actividade profissional a que esta se dedica, que consiste
em fazer serviços de limpeza.
11. Doutro modo, o art. 5º, nºs 1 e 2, da Lei nº 29/99, de 12.05, mais não faz
do que aplicar uma norma inconstitucional.
12. Com efeito, os nºs 1 e 2, do art. 5º, da Lei nº 29/99, de 12.05, são
inconstitucionais, por violarem o princípio constitucional da igualdade dos
cidadãos perante a lei, que vem previsto no art. 13°, nºs 1 e 2, e ainda o art.
18º, nºs 2 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa.
13. Entendemos, assim, que o art. 5°, nºs 1 e 2, da Lei nº 29/99, de 12.05, ao
conceder o perdão sob condição resolutiva de reparação ao lesado da indemnização
que lhe é devida, a satisfazer nos 90 dias imediatos à notificação que deve para
o efeito ser feita ao condenado, prejudica o condenado em razão da sua situação
económica (art. 13º, nº 2), não considerando o condenado igual perante a lei
(art. 13º, nº 1), e restringindo os seus direitos, liberdades e garantias (art.
18º, nº 2), sem que essa restrição de direitos, liberdades e garantias revista
carácter geral e abstracto (art. 18º, nº 3, todos da Const. da República
Portuguesa).
14. Por todo, deve o douto despacho recorrido ser revogado e decidir-se como se
pede no requerimento, de fls. 753 e segs., que a arguida, com a penhora dos seus
vencimentos, cumpriu a condição resolutiva de reparação ao lesado (art. 5º, nº
1, da Lei nº 29/99, de 12.05).
15. Ou, em alternativa, conceder-se novo prazo de 90 dias para a arguida
satisfazer a condição resolutiva de reparação ao lesado (art. 5º, nº 7, da Lei
nº 29/99, de 12.05).
16. Considerando, sempre, que os nºs 1 e 2, do art. 5º, da Lei nº 29/99, de
12/05, são inconstitucionais, por violarem os arts. 13º, nºs 1 e 2, e 18º, nºs 2
e 3, da Constituição da República Portuguesa.»
2.2 – Por Acórdão de 29 de Novembro de 2007, o Tribunal da Relação de Lisboa
decidiu negar provimento ao recurso, estribando-se na fundamentação que ora se
transcreve:
«Defende a arguido recorrente, em primeiro lugar, que a indicação que fez, em
sede de execução que corre por apenso aos presentes autos, das entidades
patronais para as quais trabalha, viabilizando por essa via a penhora dos seus
vencimentos, equivale ao pagamento exigido na Lei n.º 29/99, de 12.05, seu art.
5º, nº 1, como condição resolutiva da reparação do lesado.
Nos termos do indicado preceito da Lei de Amnistia:
“1 - Sempre que o condenado o tenha sido também em indemnização o perdão é
concedido sob condição resolutiva de reparação ao lesado ou, nos casos de crime
de emissão de cheque sem provisão, ao portador do cheque.
2 - A condição referida no número anterior deve ser satisfeita nos 90 dias
imediatos à notificação que para o efeito será feita ao condenado.
3 - Considera-se satisfeita a condição referida no nº 1 quando o lesado ou o
portador do cheque se declarem reparados ou renunciem à reparação.
……
7 - Nas situações previstas no número anterior ou quando a situação económica do
condenado e a ausência de antecedentes criminais o justifique, o juiz,
oficiosamente ou a requerimento, concede novo prazo de 90 dias para a satisfação
da condição referida no nº 1.”
Inexistindo quaisquer dúvidas acerca da notificação já feita à recorrente nos
termos enunciados no nº 2 acima citado, não podemos deixar de manifestar que a
versão apresentada pela recorrente acerca da reparação ao lesado através da mera
indicação das empresas para as quais a recorrente trabalha, permitindo por essa
via a penhora dos vencimentos em sede de execução contra si movida, não tem a
mínima correspondência com a vida real e as regras do direito. Então, se a
reparação, exigida na lei da amnistia para se consolidar o perdão ali concedido
de 1 ano de prisão, fosse efectivada através da mera indicação dos vencimentos
ou mesmo da penhora dos mesmos para quê prosseguir a execução? Esta não tem que
prosseguir até ao integral pagamento da quantia exequenda? E não é só quando
este se verifica que a execução é declarada extinta porque se mostra paga a
quantia exequenda – arts. 872º, 916º, nº 1, e 919º, nº 1, todos do CPC – ou
seja, a reparação do lesado exequente efectuada?!
Menciona ainda a recorrente que a quantia em cujo pagamento foi condenada é
avultada para o vencimento que aufere.
Não se discute que a quantia em questão (mais de 40.000 euros a que acrescem os
juros) é avultada mas não podemos deixar de realçar à recorrente que:
- Os factos delituosos em questão ocorreram há mais de 10 anos;
- As arguidas se locupletaram à custa alheia;
- A condenação ocorreu há mais de 8 anos,
pelo que, perante o decurso de tanto tempo, não teria sido despropositado que a
recorrente, bem como a sua co-arguida, tivessem já diligenciado para repararem a
lesão patrimonial causada ao ofendido. O que revelam os autos é que a recorrente
continuou a sua vida normal (é certo que depois de cumprir um ano de prisão da
pena em que foi condenada) ao passo que o lesado continua sem ser indemnizado.
Por outro lado, alegar que uma vez em prisão não poderá pagar ao lesado não
deixar de representar um argumento tendencioso, no mínimo, ao pretender
transferir para o tribunal a “culpa” pelo não ressarcimento do lesado, o que
manifestamente não é de aceitar. O tribunal limita-se a aplicar a lei e a exigir
o cumprimento das suas decisões sendo da responsabilidade da arguida, ao não
ressarcir o lesado, as consequências do acto ilícito que cometeu e do não
cumprimento das obrigações que da lei decorrem para si para beneficiar do perdão
concedido e sujeito a condição resolutiva.
As menções que a recorrente faz nas conclusões 8 a 13 podem ter alguma
relevância jurídica mas não será no âmbito da apreciação da verificação da
condição resolutiva mencionada.
Como já se mencionou no acórdão deste Tribunal da Relação de 23.01.2002, em que
foi apreciado recurso interposto também pela co-arguida da recorrente, constante
do Apenso C aos presentes autos:
“…o argumento não colhe, porque se traduz, pura e simplesmente, na transposição
das regras do instituto da suspensão de execução da pena para o perdão, um e
outro bem distintos e autónomos na sua origem e finalidade.
No instituto de suspensão da execução da pena prevê-se que em caso de
incumprimento culposo de certos deveres o tribunal faça uso da faculdade
prevista no 55º, do CP, modificando os inicialmente impostos e regras de
conduta, agravando-os, mas no caso de perdão estas regras não comportam
aplicação.
A pena suspensa é uma pena como resulta da sistemática do CP; o perdão
(genérico) situa-se nas causas de extinção da pena, no art. 127º do CP.
A pena suspensa é decretada pelo tribunal de condenação; o perdão, que começou
por ser facto de “indulgentia principia”, uma sua atitude de demência, para mais
tarde ser uma reivindicação das assembleias legislativas, cabendo o perdão
individual, o indulto, mais tarde, ao Chefe do Estado para, como órgão de
soberania, não ficar distanciado das assembleias do povo.
A pena suspensa tem a justificá-la o expresso condicionalismo enunciado no art.
50º nº 1, do CP.; o perdão por teleologia um acto comemorativo de uma efeméride
festiva “laetitia ocasio”; outras vezes, até, a correcção de injustiças legais;
outras vezes um puro acto de conveniência política, por aqui se vendo que as
causas exculpativas previstas no regime de suspensão da pena não se aplicam ao
perdão.
O direito de graça, em geral, é, no dizer do Prof Figueiredo Dias, a contra face
do direito de punir estadual, in Direito Penal, parte geral, II, 1993, 685; a
suspensão uma forma de, pedagogicamente, se subtrair o condenado ao poder de
punir do Estado.
A condição resolutiva comporta uma natureza objectiva; verificado o
incumprimento aí a sanção legal, independentemente de considerações de natureza
subjectiva, como bem salientam o Digno Procurador-Adjunto e o Exmo. Procurador
Geral-Adjunto, na sua motivação e parecer respectivamente, considerações essas
não excludentes ou obstaculizantes da resolução, não previstas, de resto, nas
várias normas do art. 5°, todas elas, de forma pormenorizada tendentes ao
pagamento último enquanto pressuposto do perdão.
Donde a manifesta improcedência do argumento em causa.
VII. Também não mostra qualquer pendor o facto de a pena de prisão imposta, de 2
anos e 6 meses, já ter sido parcialmente cumprida pelo período de 1 ano e 6
meses leva a considerar que as arguidas não devem cumprir a restante parte da
pena imposta, por revogação do perdão, visto terem interiorizado as
consequências do seu acto.
A questão extravasa manifestamente o âmbito do recurso, em que está em causa,
apenas, uma questão de revogação do perdão e não qualquer efeito psicológico e
ressocializador da pena sobre a pessoa do arguido, da específica competência, em
termos de apreciação, do Tribunal da Execução das Penas.
VIII. Resta, agora, dedicar a atenção merecida à invocação da
inconstitucionalidade dos nºs 1 e 2, do art. 5º, da Lei nº 29/99, por violação
do princípio da igualdade dos cidadãos, consagrada no art. 13º, nºs 1 e 2, e
18º, nºs 2 e 3, da CRP.
O tratamento jurídico do princípio da igualdade, enquanto princípio estruturaste
do sistema constitucional global, com o significado de que ninguém pode ser
beneficiado, prejudicado ou privado de qualquer direito em função, além do mais,
da situação económica, tem sido objecto de tratamento jurisprudencial uniforme
no sentido de, numa das suas irradiações, proibir discriminações injustificadas,
visto o disposto no art. 13º, nº 1, da CRP. O preceito apenas veda o tratamento
desigual daquilo que é igual, não já diferenciação de tratamento de situações
desiguais.
O princípio da igualdade desdobra-se, assim, na obrigação de tratar de forma
igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual. Á obrigação de
diferenciação surge como a forma mais justa, logo em manifestação do princípio
da igualdade, de tratar situações desiguais. O que se exige, para actuação
prática do princípio, é que as medidas sejam materialmente fundadas sob o ponto
de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da
solidariedade e não se baseiam em qualquer motivo constitucionalmente impróprio.
As diferenciações são legítimas quando assentam numa distinção objectiva de
situações, tenham em vista um fim legítimo e se revelem necessárias, adequadas e
proporcionadas ao seu objectivo (cfr. Constituição da República Portuguesa,
Anotada, Coimbra Editora, 128, Profs. Comes Canotilho e Vital Moreira).
A recorrente, sem, no entanto, aduzir uma verdadeira razão de
inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da igualdade na revogação do
perdão por incumprimento da função de reparar os danos que causou com a sua
conduta criminalmente ilícita, não tem razão na invocação que faz. De facto a
revogação do perdão por incumprimento da reparação apenas se aplica aos
condenados que não hajam cumprido a obrigação de reparação, não se podendo dizer
que seja materialmente injusta aquela obrigação; que esta seja “irrazoável e
arbitrária” (cfr. o Ac. do TC, nº 108/99, DR II Série, de 1/4/99). É razoável,
justo e proporcionado que o legislador, se o arguido quer beneficiar do perdão
de pena de prisão, ponha a seu encargo a satisfação dos prejuízos que causou; o
Estado pode dispor do seu poder punitivo, mas já não pode (ou deve) dispor do
interesse do lesado, assegurado por um poder soberano.
Por outro lado do que se trata, com a imposição legal em causa não é de
prejudicar alguém em virtude da sua situação económica, mas outrossim de impedir
incondicionalmente que o obrigado prive o lesado de ser ressarcido, o que
redundaria em seu injustificado desfavor; ao fim e ao cabo tratando-se
diferenciadamente quem o deve ser.
Também se não trata de tratar o arguido que foi condenado pela prática de grave
crime de natureza patrimonial, que por deficiência económica se não acha em
condições de satisfazer a condição do perdão, de forma diferenciada dos
restantes cidadãos que, por deficientes condições económicas não satisfazem as
suas dívidas, porque aqueles cometeram um crime, sendo a reparação imposta em
condenação a consequência da prática do ilícito, nos termos do art. 129º, do CP.
Está, pois, o legislador legitimado para estabelecer imposições, que se nos
afiguram inteiramente pertinentes, consoante os interesses a acautelar e os fins
visados com a punição, as quais estão fora da dimensão da proibição do arbítrio
(cfr. Ac. do TC, de 2/11/99, in BMJ 491, 5.
Por lado a lei de amnistia trata de forma igual todos os cidadãos que se
encontrem na situação das arguidas, não representando a aplicação da lei
qualquer discriminação.”
Para esta argumentação e solução remetemos a recorrente a qual, de resto já era
conhecedora uma vez que desse aresto havia sido notificada. Por último, a
pretensão da recorrente em que lhe seja concedido novo prazo de 90 dias não tem
agora qualquer possibilidade de ser satisfeito pelas razões acima expendidas
relativas ao tempo decorrido desde o cometimento do acto ilícito, da condenação
proferida e da notificação, que lhe foi feita há mais de 1 ano, ou sei a, pelo
menos há quatro vezes o prazo de 90 dias, para a reparação ser efectuada, uma
vez que o deferimento dessa pretensão só representaria o adiamento do problema
para mais tarde, em suma, uma fuga em frente que contraria frontalmente as
razões que presidiram à concessão do perdão nos moldes condicionados que a lei
adoptou.
Assim sendo, afigura-se manifesto que o alegado não pode, manifestamente,
merecer acolhimento.»
2.3 – Inconformada, a arguida interpôs, nos termos supra descritos, o
presente recurso de constitucionalidade, o qual será decidido nos termos do
disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
3.1 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade,
previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposição esta que se limita a reproduzir o comando
constitucional, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade
da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efectiva aplicação ou que
tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja
exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) do recurso de
constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema
constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas
pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional
constitucional (cf. Cardoso da Costa, «A jurisdição constitucional em Portugal»,
in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da
Faculdade de Direito de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os
Acórdãos n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro
de 1994, n.º 560/94, publicado no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995
e, ainda na mesma linha de pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário
da República II Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos
arestos acabados de citar, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal
oficial, de 30 de Outubro de 2000).
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há-de poder,
efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no
caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja
constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio
decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
Por outro lado, nada impede que, ao invés de se suscitar a
inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento
ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do
Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR II Série, de 7
de Setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode
questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma
interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do
preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado
inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de,
tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a
saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não
deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), contudo, em tal
hipótese, é necessário que a norma que se coloca à apreciação do Tribunal
Constitucional tenha sido, efectivamente, aplicada in casu com a interpretação
que se entende inconstitucional (e que tenha constituído a ratio decidendi do
juízo proferido) – cf., nesse sentido, entre outros, o Acórdão n.º 139/95,
publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão
n.º 197/97, publicado no Diário da República II Série, n.º 299, de 29 de
Dezembro de 1998 e, mais recentemente, o Acórdão n.º 214/03, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt.
3.2 – No caso dos autos, como se disse, a recorrente pretende ver sindicada
a constitucionalidade do “artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 29/99, de 12 de
Maio, na parte em que, ao conceder o perdão sob condição resolutiva de reparação
do lesado da indemnização que lhe é devida, a satisfazer nos 90 dias imediatos à
notificação que deve para o efeito ser feita ao condenado”, por entender que
essa norma “prejudica o condenado em razão da sua situação económica (artigo
13.º, n.º 2), não considerando o condenado igual perante a lei (artigo 13.º, n.º
1), e restringe os seus direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 2),
sem que essa restrição de direitos, liberdades e garantias revista carácter
geral e abstracto (artigo 18.º, n.º 3, todos da Constituição da República
Portuguesa)”
Ora, perscrutando o teor da decisão recorrida constata-se, no entanto, que o
Tribunal da Relação não se limitou apenas a aplicar o disposto nos citados n.ºs
1 e 2 do artigo 5.º da Lei n.º 29/99, em termos de exigir, semel pro semper, que
o pagamento da indemnização tenha impreterivelmente de ser feito “nos 90 dias
imediatos à notificação que para o efeito é feita ao condenado.
O Tribunal valorou igualmente a possibilidade consagrada no n.º 7 da mesma
norma na qual se admite a possibilidade do juiz conceder novo prazo de 90 dias
quando a situação económica do condenado o justifique, tendo concluído pela
suficiência do tempo decorrido desde a notificação para o pagamento da
indemnização dado que esse período representaria “pelo menos (...) quatro vezes
o prazo de 90 dias”.
Pode, assim, reter-se que, na economia da decisão recorrida, o Tribunal
interpretou o artigo 5.º, n.ºs 1, 2 e 7, no sentido de dar por verificada a
condição resolutiva do perdão da pena quando, decorrendo mais de um ano sobre a
notificação para o pagamento, o lesado não tenha ainda sido indemnizado.
Daí resulta que qualquer que fosse o resultado que tal recurso merecesse,
este seria, sempre, insusceptível de vir a afectar a decisão recorrida, razão
pela qual a sua resolução teria o sentido e a utilidade de um simples exercício
académico, não satisfazendo, assim, o princípio da instrumentalidade do
conhecimento da questão de constitucionalidade, nos termos do qual a decisão de
inconstitucionalidade terá sempre como efeito a desconsideração do sentido
normativo com que a norma foi efectivamente aplicada, com a consequente
alteração dos termos da decisão recorrida que naquele sentido se tenham fundado.
De facto, mesmo que, virtualmente, a norma sindicanda fosse julgada
inconstitucional, esse juízo não teria a veleidade de contender com o decidido
uma vez que in casu o lapso temporal valorado ultrapassou em muito o prazo que a
recorrente considera inconstitucional.
4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 8 (oito) Ucs.».
B – Fundamentação
5 – Para além da resposta dada à questão que a decisão sumária reclamada relevou
como fundamento para não conhecer do recurso, verifica-se, também, que a decisão
recorrida afrontou uma outra questão de constitucionalidade – que, aliás,
constitui pressuposto lógico daquela – qual seja a da conformidade
constitucional do estabelecimento do pagamento como condição do próprio perdão
da pena, sendo que foi esta a questão que a recorrente erigiu a objecto do
recurso.
Ademais, nas alegações para a Relação, essa foi a questão de constitucionalidade
que a reclamante colocou, já que apenas em alternativa questionou a decisão
recorrida quanto ao prazo de cumprimento da mesma condição.
Deste modo, a reclamação é de acolher.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide deferir a reclamação.
Lisboa, 2 de Abril de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos