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Processo n.º 230/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é
recorrente A. e recorrido B. e Outros, foi interposto recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de
19.12.2006, visando a apreciação da constitucionalidade dos artigos 186.º, n.º
3, e 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, alterado pelo
Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto.
2. A decisão recorrida surge na sequência de processo de insolvência intentado,
no Tribunal Judicial de Santo Tirso, por B. contra C., Lda., no qual foi
declarada a insolvência desta sociedade e, por sentença de 09.04.2006, decidido:
«− qualificar como culposa a insolvência de “C., Lda.”, e considerar afectado
por tal qualificação o seu administrador A. (…);
− decretar a inabilitação do identificado administrador por um período de quatro
anos, sendo assistido por curador a nomear, bem como a sua inibição, por igual
período, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer
cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou
fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa».
Inconformado com o decidido, A. recorreu para o Tribunal da Relação do Porto,
que confirmou a decisão da primeira instância por acórdão de 19.12.2006.
Neste acórdão, na parte que agora releva, pode ler-se o seguinte:
«(…) Por último, pretende o agravante que são inconstitucionais os arts. 186º ,
nº 3 e 189º , nº 2 do CIRE: ao fixar (o 1.º) uma presunção de culpa grave “
iuris tantum”, com a imposição do ónus da prova do contrário à outra parte,
conduz a que, se os administradores não conseguirem provar que não tiveram culpa
na situação de insolvência, poderão ser sujeitos às consequências do art. 189º,
nº 2 e elas afectam de forma grave e directa direitos, liberdades e garantias
consagrados na Constituição da República Portuguesa, sendo reserva da Assembleia
da República legislar sobre essa matéria (artº 165º, 1, b)), mas podendo o
Governo invadir essa área mediante autorização daquela (artº 198º, 1, b) – da
C.R.P., tal como o anteriormente citado). Ora, o Dec. Lei 53/2004 foi precedido
de uma lei de autorização legislativa mas em lado algum desta se autorizou o
Governo a constranger os direitos, liberdades e garantias nos termos em que o
fez o art. 186º, nº 3 do CIRE, nomeadamente criando uma presunção contra o
administrador da insolvente, pelo que foram ultrapassados os poderes
legislativos conferidos pela citada lei de autorização legislativa e foram
violados os mais elementares princípios e direitos constitucionalmente
protegidos, nomeadamente o direito ao trabalho, à livre escolha de uma
profissão, à iniciativa económica privada e o direito à propriedade privada.
Salvo o devido respeito, também neste ponto carece o agravante de razão.
O que se vê da Lei nº 39/2003, de 22 de Agosto, que autorizou o Governo a
legislar sobre a insolvência de pessoas singulares e colectivas é que a
Assembleia conferiu os aludidos poderes legislativos ao Governo de forma
pormenorizada e exaustiva, designadamente em matéria das consequências
decorrentes do processo especial de insolvência face à (in)capacidade do
insolvente ou seus administradores (nº 3, a) do art 1º), tendo autorizado
concretamente a previsão do incidente de qualificação da insolvência como
fortuita ou culposa, dado a noção geral de insolvência culposa, determinado o
conteúdo da inibição e especificado a declaração de inabilitação dos insolventes
ou dos seus administradores decorrentes da insolvência culposa (art. 2º. nº 5,
6, 7 e 8 ), não tendo de ser expressamente autorizada a menção de presunções,
que são meios de prova de factos (aliás não são propriamente meios de prova, mas
meios lógicos ou mentais, enfim, produto de regras de experiência), previstos
na lei, não privativos do processo de insolvência, pelo que não há a apontada a
inconstitucionalidade orgânica, sendo ainda certo que de harmonia com o art.
165º, nº 2 da C.R.P. as leis de autorização legislativa o que devem definir é
“o objecto, o sentido a extensão e a direcção da autorização”.
Inconstitucionalidade material igualmente inexiste em qualquer das normas
contidas nas disposições legais em referência, como nos parece evidente, não
sendo o direito ao trabalho e os demais invocados pelo Agravante absolutos nem
exclusivos do Recorrente (o direito “à retribuição do trabalho”, por exemplo,
também tem assento constitucional, como resulta do artº 59º, nº 1, al. a) da Lei
Fundamental…).
III - Decisão
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo.
Custas pelo agravante.»
3. É deste aresto que o recorrente interpõe o presente recurso, concluindo da
seguinte forma as respectivas alegações:
«1ª − Os artigos 186° n° 3 e 189° n° 2 alínea b) do D.L. nº 200/2004 de 18/08,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) estabelecem uma
cominação de inabilitação do administrador cuja conduta culposa tenha
contribuído ou determinado a insolvência da empresa, presumindo a sua culpa caso
não haja requerido a insolvência ou não haja elaborado as contas anuais, nos
prazos legais, sujeitando as mesmas à fiscalização e depósito na Conservatória.
2ª − Tais normas prevêem a inabilitação, em paralelo ou simultâneo com a
inibição, como uma verdadeira e própria incapacidade jurídica que o Código Civil
tipifica como modalidades, a menoridade (artigo 122°) a interdição ( artigo
138°) e a inabilitação (artigo 152°)
3ª − A capacidade jurídica definida no artigo 67° do Código Civil encontra
consagração no artigo 26° da Constituição da República Portuguesa como direito
fundamental em termos de a todos ser reconhecido o direito à capacidade civil
cujas restrições só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei.
4ª − Os motivos da restrição devem ser pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa e não pode servir de pena ou efeito de pena.
5º − A restrição dos direitos fundamentais, como a capacidade civil, devem
obedecer aos requisitos de substância resultantes do artigo 18° da CRP, ou seja,
que vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido,
que seja exigida por essa salvaguarda, que seja apta para o efeito e se limite à
medida necessária para alcançar esse objectivo e que a restrição não aniquile o
direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito.
6º − Deve a ainda a restrição respeitar requisitos formais, nomeadamente, o da
lei restritiva não ter efeito retroactivo
7º − A inabilitação prevista no artigo 152° do Código Civil, como a interdição,
assenta na demonstração da incapacidade do cidadão de reger o seu património, ou
regê-lo convenientemente, pelo que o que se pretende prevenir com uma tal
limitação à capacidade jurídica do cidadão é o seu próprio interesse.
8° − Ao invés, a inabilitação prevista no artigo 189° n° 2 alínea b) do CIRE
visa, primariamente, o interesse dos credores, e não o interesse do próprio
inabilitando, pelo que uma tal restrição da capacidade civil não é “pertinente”
e “relevante” sob o ponto de vista da capacidade da pessoa e não visa
salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido.
9° − Na inabilitação a que se refere o artigo 189° do CIRE, além do interesse
protegido não ser o do próprio inabilitando mas sim dos credores da insolvente,
nada justifica uma tal restrição do direito fundamental na óptica de que a mesma
é inócua nos efeitos que produz no processo de insolvência ou mesmo nos próprios
interesses dos credores.
10° − Tal inabilitação assume, pois, carácter ou natureza sancionatória, sendo
que a Constituição da República Portuguesa — artigo 26° - não consente que uma
restrição (como a inabilitação) de um direito fundamental (como a capacidade
jurídica) tenha um efeito de pena.
11° − O artigo 12° do D.L n° 53/2004 de 18/03 que aprovou o CIRE prevê normas
transitórias prescrevendo que o CPEREF continua a aplicar-se aos processos de
recuperação da empresa e de falência pendentes à data da entrada em vigor do
CIRE pelo que este último diploma só se aplica aos processos instaurados após a
sua entrada em vigor.
12° − As normas contidas nos artigos 186° e 189° n° 2 do CIRE são normas
substantivas na medida em que definem as relações concretas das pessoas em
sociedade, prescrevendo os pressupostos para a imputação da culpa na insolvência
e as suas consequências — inabilitação e inibição — de restrição de exercício de
direitos, pelo que a elas se aplica o artigo 12° do Código Civil, ou seja, a
regra da não retroactividade da lei nova a factos passados anteriormente a 15 de
Setembro de 2004 (veja-se artigo 13° do D.L. n° 53/2004 de 18/03)
13° − No domínio da lei antiga (CPEREF) não existia qualquer norma que
sancionasse o incumprimento das obrigações aqui em causa com a inabilitação do
administrador, pelo que o decretamento desta com fundamento em factos ocorridos
em momento anterior à lei que a prevê, constitui uma clamorosa violação do
artigo 26° da CRP
14° − O que conduz ao decretamento da inabilitação é um juízo de culpabilidade
na insolvência que recai sobre a pessoa do administrador, culpa que se acha pelo
recurso a presunções “iuris tantum” como as que vêm reflectidas no citado artigo
186° n° 3° do CIRE.
15ª − O legislador ordinário, em matéria de restrições ao direito fundamental
como a capacidade civil não podia instituir um regime que, na forma (recurso a
presunções) e na substância (tipificação de situações que nada têm a ver com a
capacidade jurídica) facilitam o decretamento da inabilitação.
16ª − Não constitui fundamento sério, equilibrado, adequado, exigível e
proporcional decretar a inabilitação de um cidadão só porque se presume culpado
da insolvência, presunção essa alicerçada no simples facto do sujeito não ter
cumprido com as regras comerciais estabelecidas no Art° 186° n° 3 do CIRE, norma
que, assim, viola os princípios da proibição do excesso, da adequação, da
exigibilidade e da proporcionalidade em sentido restrito.
17° − O art. 186°, n.° 3 do CIRE, ao fixar uma presunção de culpa grave dos
administradores do devedor faz uma verdadeira inversão do ónus da prova que se
traduz em flagrante inconstitucionalidade (orgânica e material)
18° − A Lei n.° 39/2003 de 22 de Agosto - art. 2°, n° 5, 6, 7 e 8 — autorizou o
Governo a prever, no processo de insolvência, um incidente de qualificação da
insolvência como fortuita ou culposa, prescrevendo-se que ela será culposa
quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação,
dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou
de facto, caso em que o Juiz deverá declarar a inabilitação do administrador
19° − Ao presumir-se uma culpa grave e cominar-se a falta de prova em contrário
com as consequências previstas no art. 189°, n° 2 do CIRE nos casos do art.
186°, n° 3 — dever de requerer a falência e de elaborar, fazer fiscalizar e
depositar as contas anuais — o legislador ordinário ultrapassou e violou os
poderes legislativos conferidos pela citada Lei de autorização legislativa.
20º − Assim, os artigos 186° n° 3 e 189° n° 2 alínea b) do CIRE são orgânica e
materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 18°, 26°,
165° e 198° da CRP e bem assim dos princípios da proporcionalidade e da não
retroactividade.»
O recorrido não apresentou contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
4. Pretende o recorrente que seja declarada a inconstitucionalidade orgânica e
material dos artigos 186.º, n.º 3, e 189.º, n.º 2, alínea b), do Código da
Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
As normas questionadas têm o seguinte teor:
«Artigo 186.º
Insolvência culposa
1 — (…)
2 — (…)
3 — Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito
ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à
devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 — (…)
5 — (…)».
«Artigo 189.º
Sentença de qualificação
1 — (…)
2 — Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;
b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um
período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de
órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa
insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação
na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
3 — (…)».
Como se vê, os vários efeitos resultantes da qualificação da insolvência como
culposa dispõem-se em paralelo, cumulando-se a inabilitação com a inibição para
o exercício do comércio e com a perda de créditos que porventura existam sobre a
insolvência ou sobre a massa insolvente.
E efectivamente, no caso em apreço, a pessoa tida como culpada da insolvência –
administrador da sociedade que caiu nessa situação – foi sujeita, não só à
inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º, como também à
inibição para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer
cargo de titular de órgão das pessoas colectivas mencionadas na alínea c) do
mesmo artigo.
5. No entender do recorrente, o artigo 186.º, n.º 3, do CIRE seria organicamente
inconstitucional pelo facto de o legislador ordinário, ao fazer uso da
autorização legislativa, ter excedido os poderes delegados pela lei de
autorização.
Não assiste, neste ponto, razão ao recorrente.
Nos termos constitucionais, as intervenções normativas do Governo em matéria de
reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República carecem
de leis habilitantes emanadas deste órgão (artigos 165.º e 198.º, n.º 1, alínea
b), da CRP). Estas leis, como dispõe o n.º 2 do primeiro destes artigos, «devem
definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização (…).»
O exercício das autorizações legislativas está, assim, sujeito a limites
materiais, que decorrem do conteúdo das leis de delegação. A ultrapassagem
desses limites vicia o acto de produção normativa do Governo, ferindo-o de
inconstitucionalidade orgânica.
O diploma que aprovou o CIRE (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março) foi
efectivamente credenciado por uma lei de autorização legislativa: a Lei n.º
39/2003, de 22 de Agosto, como era requerido por várias das matérias nele
reguladas, entre as quais as consequências da insolvência sobre a capacidade
jurídica do insolvente (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP).
No que a esta diz respeito, aquela lei não se ficou, na definição do objecto da
autorização, por um mínimo de directrizes ou princípios, fornecendo apenas
orientações básicas quanto ao conteúdo do diploma autorizado. Como resulta dos
n.ºs 5, 6 e 8 do artigo 2.º da Lei n.º 39/2003, a disciplina jurídica a pôr em
vigor foi antecipada com algum detalhe. Na verdade, a primeira norma autoriza o
Governo a prever um incidente de qualificação da insolvência como fortuita ou
culposa, a segunda indica-nos quando é que a insolvência deve ser considerada
culposa, cominando o n.º 8, como consequência dessa qualificação, o dever de o
juiz declarar a inabilitação do insolvente, por período até 10 anos.
Mas esta minúcia reguladora dos poderes legislativos do Governo não significa
que a lei de autorização tenha um carácter esgotante da disciplina da matéria,
de modo a retirar ao Executivo qualquer poder de ulterior conformação normativa.
Condicionando e restringindo mais fortemente o espaço de intervenção legislativa
do Governo, aquelas disposições, de acentuado carácter normativo-material, não o
inibem, todavia, da enunciação de conteúdos concretizadores e integrativos da
regulação já configurada, nos seus traços fundamentais. De outro modo, as normas
autorizadas transformar-se-iam num inútil repetitorium do já contido na lei de
autorização, perdendo-se o sentido constitucional ínsito na delegação de poder
legiferante, no âmbito das matérias contempladas.
É tendo presentes estes parâmetros da articulação da autorização legislativa com
o diploma que a exercita que deve ser ajuizado o respeito ou não, pelo artigo
186.º, n.º 3, do CIRE, dos limites substanciais decorrentes da Lei n.º 39/2003,
de 22 de Agosto.
Na tese do recorrente, esses limites teriam sido violados pelo facto de aquela
norma ter estabelecido uma presunção de culpa contra o administrador do
insolvente que não seja uma pessoa singular, com base no incumprimento de certos
deveres funcionais.
Diz-se no recurso (fls. 259-260):
«Em parte alguma da enunciada Lei se autoriza o Governo a constranger os
direitos, liberdades e garantias nos termos em que o faz o art. 186.º, n.º 3 do
CIRE, nomeadamente criando um presunção contra o administrador da insolvente.
Mais, resulta da redacção do citado artigo 2.º da Lei n.º 39/2003 que a razão de
ser do incidente de qualificação da insolvência como culposa radica na criação
ou no agravamento pelos administradores da situação de insolvência da empresa
devedora.»
Ora, o que se constata é que essa razão de ser da qualificação como culposa da
insolvência em nada é contrariada pelo disposto no n.º 3 do artigo 186.º Este
limita-se a estabelecer uma presunção de culpa grave em face do incumprimento de
certos deveres: o de requerer a declaração de insolvência” (alínea a)) e o de
“elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização
ou de as depositar na conservatória do registo comercial” (alínea b)). Deveres
que, sendo, embora, de carácter formal, permitiriam, presuntivamente, a ser
cumpridos, a detecção mais precoce da situação real da empresa, de insolvência
ou de risco de insolvência, assim se evitando o agravamento dessa situação. O
seu incumprimento é, assim, razoavelmente indiciador de, no mínimo, um grave
desleixo na actuação gestionária, levando a admitir (mas com carácter de
presunção juris tantum, rebatível por prova em contrário) estar preenchido o
requisito de culpa grave, forma de culpa qualificada, exigível, em alternativa
ao dolo, tanto pela lei de autorização (n.º 6 do artigo 2.º), como pelo CIRE
(artigo 186.º, n.º 1).
Isto é, mantendo intocado o regime substantivo fixado na lei de autorização, o
n.º 3 do art. 186.º do CIRE adiciona-lhe uma norma de cunho processual, que em
nada contende com aquele regime, antes verdadeiramente se harmoniza com a sua
razão inspiradora.
E, como se sustentou no Acórdão n.º 77/88 deste Tribunal, a propósito do regime
do arrendamento rural e urbano, mas em termos adaptáveis ao caso sub judicio,
«(…) é de entender a reserva como respeitando unicamente aos aspectos
significativos, ou seja, verdadeiramente substantivos, do regime legal do
contrato, mas permitindo a intervenção do Governo na regulamentação do que seja
puramente adjectivo ou processual (em suma, “regulamentar” (…).»
Nem se diga, em contrário, que em parte alguma a Lei n.º 39/03 autorizou
explicitamente a criação desta presunção de culpa. Não o fez, nem, pelos motivos
expostos, o tinha que fazer. Essa solução legislativa está suficientemente
coberta pelas autorizações genéricas contidas no artigo 1.º, n.º 3, alínea a), e
no artigo 2.º, n.º 5, daquela lei, legitimadoras de desenvolvimentos normativos
compatíveis, como o é o prescrito no artigo 186.º, n.º 3, do CIRE, com a
regulação pré-fixada.
Em face de tudo o que fica dito, é de concluir que não merece acolhimento a
arguição de inconstitucionalidade orgânica da norma contida neste artigo, por
desrespeito dos limites materiais da autorização legislativa dada pela Lei n.º
39/2003, de 22 de Agosto.
6. Vem alegado que o artigo 189.º, n.º 2, alínea b) padece de idêntico vício de
inconstitucionalidade orgânica.
Todavia, essa arguição não está suportada em qualquer discurso argumentativo
especificamente dirigido a esse preceito. Nem se vislumbra que ele pudesse ser
eficazmente desenvolvido, com suficiente poder de convencimento, pois a
inabilitação, como efeito necessário de qualificação da insolvência como
culposa, aparece expressamente referida no n.º 8 do artigo 2.º da Lei n.º
39/2003. A única diferença do regime estabelecido pela norma autorizada reside
na fixação de um prazo mínimo de 2 anos, o que não se afigura bastante para
sustentar a ofensa a limites materiais decorrentes da lei de autorização.
Quando muito, poderia pensar-se em que a inconstitucionalidade orgânica do
artigo 186.º, n.º 3, a verificar-se, acarretaria um igual juízo de
desconformidade constitucional do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), na medida em
que aquela norma contribui para a determinação dos pressupostos aplicativos
desta. Mas esse eventual fundamento de inconstitucionalidade está
definitivamente prejudicado pela conclusão a que acima chegámos, quanto à
constitucionalidade orgânica do artigo 186.º, n.º 3.
Improcede, assim, a alegação de inconstitucionalidade orgânica do artigo 189.º,
n.º 2, alínea b), do CIRE.
7. O recorrente invocou também a inconstitucionalidade material de ambas as
normas. Nas alegações apresentadas no tribunal recorrido (fls. 189/207 dos
autos), assim como no requerimento de interposição do recurso neste Tribunal
(fls. 233/234), o recorrente fundamentou o vício de inconstitucionalidade
material na violação do disposto nos artigos 30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.ºs 1 e
2, 61.º e 62.º da Constituição. Nas alegações apresentadas no presente recurso,
passou a invocar a violação dos artigos 18.º e 26.º da Constituição.
A invocação de normas e princípios constitucionais diversos daqueles que foram
invocados no decurso do processo e no próprio requerimento de interposição de
recurso não obsta ao conhecimento desses novos fundamentos pelo Tribunal – nesse
sentido, ISABEL ALEXANDRE, “A norma constitucional violada e o objecto do
recurso de constitucionalidade”, Jurisprudência constitucional, n.º 6, 2005, 28
s. (47 s.).
Não ignorando a posição que fez vencimento no Acórdão n.º 139/2003 (DR, II
Série, n.º 229, de 3 de Outubro de 2003, 15004), quanto à definição rigorosa do
que é o objecto do recurso de constitucionalidade, a solução apontada é,
seguramente, em nosso entender, a que melhor se harmoniza com o disposto no
artigo 79.º-C da LTC.
Comecemos pela apreciação da alegada inconstitucionalidade material do artigo
189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE.
8. É manifestamente infundada a imputação de violação de qualquer das normas
constitucionais invocadas no recurso. De facto, não se vê que o decretamento da
inabilitação, como efeito necessário de uma situação de insolvência, afecte uma
posição jurídica contemplada pelo âmbito normativo de protecção dos artigos
30.º, n.º 4, 47.º, 58.º, n.ºs 1 e 2, 61.º e 62.º da CRP, colidindo com os bens
aí constitucionalmente garantidos.
Já a diferente conclusão temos que chegar, no que toca à violação do artigo 18.º
e do artigo 26.º da CRP, na parte em que este reconhece o direito à capacidade
civil.
De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a
correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto
nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, CARVALHO
FERNANDES, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente
pelo devedor”, Themis, ed. esp., 2005, 97. Trata-se, pois, de uma situação de
incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto
exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de
disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de
cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código
Civil).
Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência
imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a
capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que,
contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas
variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de
detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando
afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter
excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da
personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa
profunda” (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil, polic., Coimbra,
1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos
pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão
dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser
decretada.
Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as
restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam
legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena
ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a
inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de
ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um
estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas
(artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos
seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente,
indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus
interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa
de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de
características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa
situação.
Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação
ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no
regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural
que, nesse regime, a fundaram.
E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos
credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade
do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um
processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do
património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos
credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência
(…).»
Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo,
tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o
administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens
integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).
Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma
incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos
praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão
feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o
caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na
justa medida, os interesses dos credores.
Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o
Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade
constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual
Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º
da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil,
mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há
unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de
“incapacidade”) […]».
Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também
que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir
eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a
posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de
acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a
invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador.
Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil,
aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do
mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª
ed. por A.PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao
curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos
seus herdeiros.
A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode,
pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o
comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.
Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um
mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a
sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área
(designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois
não se vê que outros possam ser utilizados.
Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis
diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele
perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos
ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para
além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)).
Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da
insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode
deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea
b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da
República.
9. No objecto do pedido está também contida a declaração de
inconstitucionalidade material do artigo 186.º, n.º 3.
Nas alegações do recorrente, a argumentação aduzida para fundamentar essa
declaração aparece sistematicamente coligada com o disposto no artigo 189.º, n.º
2, alínea b).
Diz-se, por exemplo, na conclusão 13.ª:
«No domínio da lei antiga (CPEREF) não existia qualquer norma que sancionasse o
incumprimento das obrigações aqui em causa com a inabilitação do administrador,
pelo que o decretamento desta com fundamento em factos ocorridos em momento
anterior à lei que a prevê, constitui uma clamorosa violação do artigo 26.º da
CRP.»
E na conclusão 15.ª:
«O legislador ordinário, em matéria de restrições ao direito fundamental como a
capacidade civil não podia instituir um regime que, na forma (recurso a
presunções) e na substância (tipificação de situações que nada têm a ver com a
capacidade jurídica) facilitam o decretamento da inabilitação».
Compreende-se esta interligação, pois o artigo 189.º, n.º 2, alínea b), está
funcionalmente conexionado com o artigo 186.º, na medida em que nele se estatui
a produção de uma consequência jurídica – o dever de o juiz decretar a
inabilitação do insolvente –, fazendo-a depender da verificação de um
pressuposto – o carácter culposo da insolvência –, cujos termos e condições são
regulados pelo conjunto de preceitos agrupados no artigo 186.º Isto é, para
avaliarmos da ocorrência ou não da previsão do artigo 189.º, n.º 2, alínea b),
temos que atender, além do mais, ao disposto no n.º 3 do artigo 186.º
Mas, nem a inconstitucionalidade material do artigo 189.º, n.º 2, alínea b)
resulta da incidência, no seu âmbito, do disposto no n.º 3 do artigo 186.º, nem
essa inconstitucionalidade se comunica, por arrastamento, a esta norma. Isto
porque aquele veredicto não resulta da leitura conjugada dos dois preceitos, da
projecção normativa de um sobre o outro. A inabilitação, como efeito necessário
de uma insolvência culposa, à margem de qualquer falta de qualidade pessoal do
inabilitado, é sempre, em si mesmo considerada, independentemente da forma como,
em concreto, vier regulado aquele fundamento, uma solução ferida de
inconstitucionalidade. Qualquer causa dessa medida incapacitante que não tenha a
ver com a protecção do inabilitado perante deficiências na sua personalidade
natural atenta contra o artigo 26.º da CRP.
Não é, insiste-se, por poder ser decretada “com fundamento em factos ocorridos
em momento anterior à lei que a prevê”, ou por ter a sua aplicação facilitada
por um regime de presunção de culpa, que a inabilitação prevista no artigo
189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE é uma medida em desconformidade com a
Constituição da República. É-o porque, sendo instrumentalizada para sancionar
uma insolvência culposa, se constitui como uma restrição à capacidade dissociada
do único fundamento capaz de a legitimar: a protecção do inabilitado perante uma
falta de capacidade natural. Desta forma, o regime instituído infringe
directamente o direito fundamental à capacidade civil, consagrado ao artigo 26.º
da CRP, afectando-o no seu âmbito de garantia efectiva, sem que este juízo tenha
que ser mediatizado por qualquer outro valor negativo de constitucionalidade.
De modo que a apreciação da validade constitucional do artigo 186.º, n.º 3,
requer uma avaliação autónoma. Avaliação que se impõe, porque a conclusão a que
chegarmos é susceptível de produzir um efeito útil no processo, dado que a
qualificação da insolvência como culposa não conduziu apenas à inabilitação do
insolvente. Ela levou também à inibição para o exercício do comércio, nos termos
do artigo 189.º, n.º 2, alínea c), norma que, em si, não foi impugnada. Assim, o
pedido de revogação da decisão só pode, neste ponto, apoiar-se na
inconstitucionalidade material do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE.
Invoca o recorrente, nesse sentido, a violação do princípio da segurança
jurídica, mais concretamente da regra da não retroactividade da lei nova a
factos passados. Essa regra teria sido infringida na medida em que os factos
provados que serviram de base à presunção de culpa grave teriam ocorrido antes
da entrada em vigor do diploma que aprovou o CIRE (15 de Setembro de 2004).
Para fundamentar este juízo, louva-se o recorrente no disposto no artigo 12.º do
Código Civil. Mas, mesmo pondo de lado a questão de saber se tal norma foi
correctamente interpretada, em todo o seu alcance, há que dizer que o critério
nela fixado não tem a valia de um padrão constitucional. A constitucionalidade
da aplicação temporal das normas tem que ser aferida pelo disposto na própria
Constituição, nas regras específicas que, em certas matérias, ela contém e no
que se infere de princípios constitucionais relevantes, nesta matéria – o da
segurança jurídica e o da protecção da confiança, designadamente.
Ora, uma apreciação sob estes pontos de vista principiológicos não pode deixar
de ter em conta que o CIRE, quanto à inibição para o exercício do comércio do
insolvente, institui um regime mais favorável a este sujeito, por confronto com
o anteriormente em vigor. De facto, pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código dos
Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a inibição era uma
consequência imediata da declaração de falência, sem mais requisitos. Já assim
era, aliás, de acordo com o revogado artigo 1191.º do Código de Processo Civil.
No regime actual, só ficam sujeitas a essa medida as pessoas singulares
afectadas pela qualificação da insolvência como culposa.
Quer dizer, a inibição passou a ter um pressuposto condicionante até aqui não
exigível, o que significa que a inovação introduzida pelo CIRE não importou uma
maior restrição da liberdade de exercício do comércio, mas antes, pelo
contrário, uma limitação da restrição, tal como tradicionalmente aplicada. Desde
que não tenham agido com culpa –também ela, aliás, entendida de forma
restritiva, pois só conta a culpa qualificada – os sujeitos potencialmente
abrangidos subtraem-se à inibição, o que, no regime revogado pelo CIRE, não
acontecia.
Sendo o regime novo mais favorável, neste ponto, aos seus destinatários, perde
sentido a problematização, à luz dos princípios da segurança jurídica e da
confiança, dos seus pressupostos aplicativos. Que a certos factos praticados
antes da vigência do CIRE seja retrospectivamente atribuída valência presuntiva
da existência de culpa grave apenas poderá significar, quanto a esta dimensão
normativa do artigo 186.º, n.º 3 – a única que é de utilidade aqui examinar –
que é menor a vantagem para o insolvente trazida pelo novo regime do que seria
sem essa presunção.
De todo o modo, sempre se dirá que os termos em que a presunção vem estabelecida
por aquela norma são inteiramente razoáveis, não arbitrários, adequados e
proporcionados. Trata-se de uma presunção ilidível, como resulta do regime comum
das presunções e do confronto com o teor do n.º 2. Assenta na prática de factos
ilícitos, que já o eram anteriormente à entrada em vigor do CIRE, factos que
apresentam objectivamente um suficiente valor sintomático da ocorrência de
culpa, de acordo com o critério de apreciação aqui adoptado.
É certo que a previsão da alínea b) contempla regras comerciais, de carácter
procedimental, podendo, primo conspectu, aparecer como desmesurada a
consequência da sua infracção, por via da presunção de culpa que nela se
estriba.
Mas, pondere-se que o âmbito subjectivo da norma abarca apenas “os
administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa
singular”, ou seja, sujeitos que, em princípio, exercem profissionalmente a
actividade de administração. E é comummente admitido que, no âmbito da actuação
profissional, se justifica uma bitola de apreciação de comportamentos mais
apertada e um mais elevado padrão da diligência exigível.
E, para além de tudo o mais, o incumprimento dessas regras – o facto-base –
apresenta uma relevante conexão substancial com o facto presumido – a existência
de uma actuação gravemente culposa. Trata-se, na verdade, de regras cuja
observância não reveste especiais dificuldades, assumindo um carácter quase
rotineiro na actividade de gestão de um património de pessoa não singular. De um
ponto de vista funcional, elas visam assegurar transparência quanto à efectiva
situação económico-financeira do ente administrado, permitindo, assim, acautelar
o interesse dos credores.
Que, do incumprimento dessas regras, a norma retire a ilacção, através do
mecanismo presuntivo, de que a situação de insolvência foi criada ou agravada em
consequência da actuação com culpa grave do sujeito afectado – em sintonia com o
critério de culpa consagrado no n.º 1 do artigo 186.º – não se afigura uma
utilização arbitrária desse mecanismo.
O artigo 186.º, n.º 3, do CIRE, não sofre, pois, de qualquer
inconstitucionalidade material.
III − Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo
186.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado
pelo Decreto−Lei n.º 53/2004, de 18 de Março;
b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 189.º,
n.º 2, alínea b), do mesmo diploma, por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o
artigo 18.º, da Constituição da República, no segmento em que consagra o direito
à capacidade civil;
c) Consequentemente, conceder provimento, nesta
parte, ao recurso, ordenando-se a reforma do acórdão recorrido em conformidade
com o juízo de inconstitucionalidade ora formulado.
Lisboa, 13 de Novembro de 2007
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano (com declaração de voto que junto)
Benjamim Rodrigues (vencido quanto à pronúncia constante da alínea b)
da decisão pelas razões constantes da declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos. Com declaração de voto que junto
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei o julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 189.º, nº 2,
alínea b), do C.I.R.E., aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março,
apenas quando aplicada a administrador de sociedade comercial, como sucedeu no
presente caso, por entender que a medida de inabilitação aí prevista não se
revela necessária, nem adequada, violando o princípio constitucional da
proporcionalidade, enquanto corolário do Estado de direito democrático (artigo
2.º da C.R.P.).
Na verdade, estando já prevista, para o administrador da sociedade declarada
insolvente, considerado afectado pela qualificação da insolvência como culposa,
a aplicação da medida prevista na alínea c), do n.º 2, do artigo 189.º, do
C.I.R.E., não se revela necessária, nem adequada, a inabilitação daquele
administrador, uma vez que o comportamento que determinou tal medida não ocorreu
na gestão do seu património pessoal, mas sim no exercício da sua actividade de
administrador de pessoa colectiva.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à pronúncia de inconstitucionalidade constante da
alínea b) da decisão relativa à norma do art.º 189.º, n.º 3, alínea b), do
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
Constitui pressuposto da tese que fez vencimento o entendimento de
que a capacidade civil, na sua expressão de capacidade de exercício ou de agir,
constitui um direito fundamental que apenas poderá sofrer limitações, no que vai
para além da “inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de
qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação
ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa”,
contemplada na alínea c) do n.º 2 do mesmo artigo 189.º do CIRE, em razões
atinentes “à falta de atributos pessoais, para uma autodeterminação autêntica de
vida e na gestão dos seus interesses”.
Não acompanhamos, porém, o juízo de ponderação efectuado. Antes de
mais, importa acentuar que a restrição do direito de “capacidade civil”, que se
encontra consagrado como direito fundamental no art.º 26., n.º 1, da
Constituição, opera, no caso, apenas no domínio da capacidade de exercício de
direitos, que não também no domínio da susceptibilidade de ser-se titular de
direitos ou na dimensão da personalidade jurídica.
A personalidade jurídica, enquanto susceptibilidade de ser-se
sujeito de direitos ou de relações jurídicas, corresponde a um direito
fundamental que tem com o princípio básico da dignidade humana uma relação de
directa imediação: o homem, por força da sua dignidade humana, só por o ser, é
um sujeito de direito com capacidade para ser titular de todos os direitos que
essa sua natureza possibilite.
Daí que, nessa dimensão, não tenha qualquer sentido uma construção
de quantificação dos direitos de que o homem possa ser titular: ele tem uma
susceptibilidade para ser titular de todos dos direitos.
Já a capacidade de exercício de direitos ou a capacidade de agir na
concretização ou realização de uma qualquer dimensão conteudística dos direitos,
tem com o princípio básico da dignidade humana do próprio titular a que se
refere uma relação de menor intensidade e impositividade.
Enquanto ali se pode afirmar a existência de uma relação de completa
radicalidade axiológica associada à dignidade humana, já a capacidade de
exercício de direitos pode ser, e em alguns casos há-de ser, sujeita a
gradações, uma vez em nome das próprias condições da própria natureza humana
(ligadas com a possibilidade de agir racionalmente, como a idade, a
possibilidade de percepção, de motivação e de autonomia da vontade), outras
vezes em nome do equilíbrio de determinados valores económicos comunitários em
que o sujeito interage juridicamente (como a prodigalidade, a falência
fraudulenta), sem que se mostre logo atingida, em idêntica impressividade, a
dignidade humana.
No que ao caso concerne, importa acentuar que a “diminuição de
capacidade civil de exercício de direitos”, no que for para além da referida
inibição para o exercício do comércio e dos cargos a que alude a alínea b) do
n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, não acarreta a impossibilidade objectiva de
prática dos actos de disposição de bens, mas apenas a sujeição a um regime de
assistência por curador. Trata-se de uma capacidade exercível regularmente
apenas por intermédio de representante legal: logo, uma limitação apenas
instrumental.
Dissentimos assim, desde já, da posição assumida no acórdão de que a
inabilitação das pessoas apenas possa ser constitucionalmente operada “apenas
com base em razões de personalidade do “próprio incapaz”: o direito de
capacidade de exercício não pode desprezar também a consideração dos reflexos
que os actos do sujeito atingido seja susceptível de operar nas esferas
jurídicas de terceiros que entrem ou estejam em relação jurídica com o atingido,
mormente no que se refere á segurança do comércio jurídico em que intervém.
Nesta medida, temos por admissíveis limitações do direito de
capacidade de exercício do devedor insolvente ou dos seus administradores quando
essa insolvência seja qualificada como culposa, fundadas em razões de prevenção
de práticas lesivas do interesse geral e da segurança do comércio jurídico em
geral que estão assumidas como “incumbências prioritárias” a serem cumpridas
pelo Estado no art.º 81.º, alínea f), da Constituição, não tendo
obrigatoriamente de buscar-se essa base na relação interna do processo de
insolvência ou seja, em função apenas dos credores nesse processo.
Antes de mais, deve notar-se que a decisão de qualificação como
culposa da insolvência está sujeita a um específico procedimento de avaliação,
sujeito às regras do contraditório, envolvendo, como não pode deixar de ser, a
formação de um juízo de censurabilidade subjectiva dos comportamentos tidos pela
pessoa atingida quanto ao cumprimento dos seus deveres nas relações económicas
estabelecidas com terceiros (art.º 188.º do CIRE).
Não é a consideração de “um estado objectivo de impossibilidade de
cumprimento de obrigações vencidas”, como se argumenta no acórdão, que pode ser
relevada pelo juiz para qualificar a insolvência como culposa e decretar a
inabilitação e a inibição das pessoas atingidas, mas sim a concreta violação
culposa de concretos deveres legais de actuação na gestão do património
(entendido este como expressão de todos os valores activos e passivos actuais e
futuros) de que acabou por resultar a impossibilidade de cumprimento das
obrigações vencidas, bem como o receio de que situações idênticas possam ocorrer
num futuro mais ou menos imediato (daí a fixação de um prazo para a
inabilitação) por virtude da viciação em certos hábitos e comportamentos.
Fundando-se a qualificação como culposa da insolvência na
inobservância culposa de deveres legais de actuação económica por parte dos
sujeitos atingidos na sua gestão patrimonial, não se afigura desadequado que lhe
seja imposta temporariamente uma inabilitação para a prática de actos de
disposição de bens, mesmo próprios.
Com tal inabilitação pretende o legislador interromper a
insensibilidade valorativo-ponderatória do atingido para a disposição do seu
património que torne possível a manutenção do seu anterior nível pessoal de
vida, bem como obstar ao receio de que o atingido prossiga um certo modo de
actuação jurídico-economicamente distorcida com terceiros, com grave lesão dos
interesses gerais da confiança, da boa-fé e da segurança do comércio jurídico.
O funcionamento eficiente dos mercados, a equilibrada concorrência
entre as empresas, as práticas de actos lesivos do interesse geral e a segurança
do comércio jurídico em geral [art.º 81.º, alínea f)] justificam, assim,
amplamente uma inabilitação temporariamente estabelecida pelo juiz,
principalmente quando, como é o caso, o prazo para essa interrupção das
tendências de comportamento do atingido pode ser ajustado pelo juiz à
insensibilidade do visado para as consequências do seu incumprimento dos deveres
legais e das regras prudenciais.
Nesta perspectiva, a inabilitação civil em sentido estrito é algo
que é possível somar à inibição do insolvente para a prática de actos de
comércio ou de cargos em que eles acontecem regularmente que corporizam uma
restrição do campo da capacidade civil.
De resto, solução contrária (como parece estar implícita no
entendimento seguido no acórdão) conduz a que o âmbito da capacidade civil que
pode ser restringido aos não comerciantes declarados insolventes seja muito mais
ampla do que a possível de ser aplicada aos comerciantes por força da referida
alínea c) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE: enquanto os não comerciantes
ver-se-iam sujeitos a uma inabilitação para a prática dos actos de disposição de
bens, nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, os comerciantes
apenas seriam atingidos pela inibição prevista na alínea c) do mesmo número e
artigo.
Ora, quer num caso quer no outro, se impõem razões de cautela sobre
a existência de uma capacidade séria de avaliação e de ponderação das
consequências dos actos de disposição de bens, bem como de prevenção geral dos
interesses da confiança e da segurança do comércio jurídico.
Nesta perspectiva, a inabilitação não surge como uma limitação
legalmente estabelecida desadequada ao direito fundamental da capacidade civil
que extravase os limites consagrados no art.º 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.
Mas, mesmo quando entendida como importando uma capitis diminutio
temporária, de tipo sancionatório, não será diferente a conclusão a tirar.
Fundada que está na violação culposa de deveres legais, de
indiscutível relevância constitucional, bem se aceita que o legislador eleja a
aplicabilidade de uma medida restritiva da capacidade de exercício que se situe
ainda e só no plano axiológico em que se situam os deveres incumpridos. O
legislador entendeu não ser caso de previsão de uma medida de ultima ratio: de
previsão de uma sanção penal. Mas nem por isso está impedido de eleger outros
instrumentos jurídicos de prevenção e de reacção jurídicas e de poder graduar
essa medida, desde logo por imposição do princípio geral da proporcionalidade
ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no art.º 2.º da
Constituição.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Ao votar o ponto 7 do acórdão, distancio-me, após melhor estudo, de um passo da
fundamentação do Acórdão nº 424/2007, que subscrevi. Nesta decisão, afirmando-se
embora que tal questão era improcedente, havendo já sido unanimemente decidida
nesse sentido pelo Tribunal, entendeu-se que se não deveria conhecer da questão
de inconstitucionalidade orgânica invocada pela primeira vez pelo recorrente nas
alegações, limitando-se o objecto do recurso à inconstitucionalidade material
explicitada no requerimento de interposição do recurso e suscitada nos autos. Se
o ponto era de menor importância nesse caso, face à reconhecida improcedência de
tal questão de inconstitucionalidade orgânica, o facto é que as considerações
de ordem geral aí expendidas a este propósito (e que retomam a orientação que o
Tribunal havia sufragado, com votos de vencido, no Acórdão nº 139/2003) se me
afiguram agora não tomar em devida conta o disposto no artigo 79º-C da LTC.
Rui Manuel Moura Ramos