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Processo n.º 188/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é
recorrente A., Lda. e recorrido o Ministério Público, a Relatora proferiu a
seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A., Lda. e recorrido o Ministério
Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da
CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação
de Évora, proferido em 11 de Dezembro de 2007 (fls. 241 e 242), para efeitos de
apreciação da constitucionalidade da “norma contida no art.º 342.º, do Cód.
Civil, quando interpretada na dimensão normativa de que apreendidas mercadorias
em armazéns arrendados à requerente esta tem de provar para lhe serem
restituídas título válido da sua aquisição” (fls. 245).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Apesar de o recorrente afirmar que havia suscitado de modo processualmente
adequado a questão de inconstitucionalidade que ora pretende ver apreciada,
conforme lhe era imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC, torna-se evidente que
assim não foi. Ao analisar a alegada invocação de inconstitucionalidade,
constante da alínea F) das suas conclusões de recurso perante o Tribunal da
Relação de Évora, constata-se que o ora recorrente nunca imputou qualquer
inconstitucionalidade ao artigo 342º do Código Civil – que, aliás, nem sequer é
expressamente mencionado –, tendo-se limitado a afirmar que o “M. Juiz «a quo»”
teria violado “os direitos de defesa e do exercício ao contraditório,
constitucionalmente consagrados no artº. 32º nº 5 do C.R.P.” (fls. 26).
Daqui decorre que o recorrente nunca colocou ao tribunal recorrido qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, tendo-se limitado a invocar um
preceito constitucional para fundamentar a sua discordância com a interpretação
acolhida pela decisão de primeira instância.
3. Aliás, a própria forma como o recorrente configura o objecto do recurso
apresentado nos presentes autos demonstra que aquele apenas discorda do juízo
interpretativo que a decisão recorrida formulou, subsumindo os factos ao Direito
infra-constitucional aplicável. Ora, este Tribunal não dispõe de poderes para
sindicar, em sede de recurso, decisões dos tribunais comuns que versem
exclusivamente sobre juízos subsuntivos que envolvam a determinação do Direito
infra-constitucional aplicável. No caso em apreço, o recorrente não consegue
demonstrar que a norma em causa – ou seja, a que decorre do artigo 342º do
Código Civil e que fixa o regime geral de distribuição do ónus da prova –
contrarie normas ou princípios constitucionais, limitando-se a discordar da
interpretação levada a cabo pela decisão recorrida.
Tal discordância não legitima, porém, a apreciação do recurso por este Tribunal.
Em suma, quer por não ter sido suscitada de modo processualmente adequado, quer
porque o recorrente não coloca qualquer questão relativa à inconstitucionalidade
de determinada norma, não pode este Tribunal conhecer do objecto do presente
recurso, por força do n.º 2 do artigo 72º e do artigo 79º-C da LTC.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro, e pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conhecer do objecto
do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro»
2. Inconformado com esta decisão, vem a recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, nestes precisos termos:
«1. A douta decisão proferida decidiu não tomar conhecimento do objecto do
recurso por duas ordens de razões:
a) não ter sido suscitada de modo processualmente adequada;
b) não ser colocada questão relativa à inconstitucionalidade de uma norma;
2. A decisão proferida a fls. 2439 tem o seguinte teor: “Perante tais
factos documentados nos autos a fls. 299 e seguintes e a fls. 1982, considera-se
inexistir prova válida da propriedade lícita de tais mercadorias, pelo que se
indefere ao requerido”
3. Da decisão não consta a invocação de nenhuma norma jurídica.
4. A ora reclamante arguiu a irregularidade da decisão por falta de
fundamentação.
5. A fls. 2499 veio o Tribunal de primeira instância a fundamentar a
decisão com base “nas disposições conjugadas dos art°s. 109°/1 e 2/ do Código
Penal e 110º/1 e 111°/2 — ambos, a contrario — do mesmo diploma”
6. Constata-se, assim, que o Tribunal de primeira instância não aplicou,
nem invocou sequer, a norma contida no art. 342° do Código Civil.
7. Assim a ora reclamante no recurso interposto para o Tribunal da
Relação de Évora alegou que a decisão era obscura “por não indicar o preceito
legal que impõe a prova à requerente da propriedade lícita das mercadorias.
8. E na alínea f) das conclusões do recurso se referiu que na decisão
proferida não tinha sido invocado “o preceito legal que impõe a prova à
requerente da propriedade lícita das mercadorias, violando, assim os direitos de
defesa e do exercício ao contraditório, constitucionalmente consagrado no art°.
32°, nº. 5 da C.R.P.
9. E a mais não conseguia ir, a ora reclamante, nem era exigível que o
fosse, em virtude de a decisão proferida não se sustentar no art°. 342° do
Código Civil.
10. Assim só com o douto Acórdão da Relação de Évora que arredou por
completo a fundamentação jurídica invocada na primeira instância e invoca como
fundamentação para a manutenção do decidido a norma contida no art°. 342° do
Código Civil foi a recorrente confrontada com tal aplicação e interpretação
dessa norma.
11. Com efeito, atente-se no teor das fundamentações do douto Acórdão a
pág. 8:
“No caso concreto, foram apreendidas as bebidas que se encontravam no interior
dos armazéns contíguos ao entreposto fiscal da B., cuja arrendatária era a
A.(constituída pelos mesmos sócios daquela firma), no entanto, não foi acusada
da prática de qualquer ilícito, logo não é aplicável o disposto no art. 109°/l e
2 nem o disposto nos art°s 110º/1 e 111°/2 a contrario uma vez que, não foi dado
como provado qualquer dos factos que possam levar à aplicação destes preceitos.
A recorrente possuía os armazéns onde se encontravam as bebidas tal facto não
faz presumir a titularidade do direito de posse sobre as mercadorias, face às
irregularidades já acima descritas, que as facturas apresentavam, pelo que cabe
à recorrente apresentar título válido de aquisição de mercadorias, como resulta
do disposto no art.1259° no 2 do Código Civil que estabelece que, “o título não
se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca”, além
de que, nos termos do art. 342° do mesmo diploma, aquele que invoca um direito
cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
A recorrente não apresentou título válido da posse ou da propriedade lícita das
mercadorias, cujo ónus lhe incumbia, pelo que se deve manter o despacho
recorrido.”
12. Deste modo não era exigível à ora reclamante que antevisse a
possibilidade de aplicação da norma contida no art° 342° do Código Civil no caso
dos autos e na interpretação normativa que foi efectuada.
13. Pelo que a recorrente julga ter cumprido o ónus de suscitar a questão
de inconstitucionalidade ao invocar que a imposição de ter de efectuar a prova
da propriedade lícita das mercadorias que lhe foram apreendidas, violava os seus
direitos de defesa e do exercício do contraditório, constitucionalmente
consagrados no art.32°, nº. 5 do C.R.P.
14. Finalmente refira-se que sempre, salvo melhor opinião a recorrente
coloca efectivamente uma questão de inconstitucionalidade da norma contida no
art° 342° do Código Civil na dimensão normativa que foi efectuada no Acórdão do
Tribunal da Relação de Évora, interpretação essa que ainda não tinha sido
efectuada nos autos.
Termos em que, e nos que doutamente serão supridos deverá ser dado provimento à
presente reclamação» (fls. 257 a 260)
3. Notificado da reclamação, o Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal pronunciou-se no seguinte sentido:
«1º
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
sumária, no que respeita à evidente inverificação dos pressupostos do recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Importa afastar os argumentos da reclamante segundo os quais seria
imprevisível a aplicação da norma extraída do artigo 342º do Código Civil a uma
questão jurídico-processual relativa à prova de factos, como aquela que foi
apreciada nos autos recorridos. Na verdade, no despacho recorrido perante o
Tribunal da Relação já se afirmava que inexistia “prova válida da propriedade
lícita de tais mercadorias”, pelo que, ao menos implicitamente, tem de
considerar-se que, como ratio decidendi para o caso concreto, se fez aí
aplicação da regra do artigo 342º, nº 1, C. C.
Assim sendo, não constitui qualquer surpresa a sua expressa invocação pela
decisão recorrida, pelo que, não se verificando os pressupostos de
admissibilidade do recurso – suscitação perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida da questão de inconstitucionalidade que agora pretende ver
apreciada – improcede a presente reclamação.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 6 de Maio de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão