Imprimir acórdão
Processo nº 718/07
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I - RELATÓRIO
1. Requerente e pedido
O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira veio
requerer, ao abrigo do artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da
República Portuguesa (CRP), a declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade e da ilegalidade da norma contida no artigo 126.º da Lei
n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2007).
O preceito em questão estabelece, no quadro das relações financeiras entre o
Estado e as Regiões Autónomas, os montantes de que estas beneficiarão, durante o
ano económico de 2007, a título de transferência. É do seguinte teor:
«Nos termos e para os efeitos do artigo 88.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de
Agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 48/2004, de 24 de Agosto, as
transferências para as Regiões Autónomas em 2007 são determinadas nos termos
seguintes:
a) € 223 436 000 para a Região Autónoma dos Açores, sendo € 167 436 000 a
título de solidariedade e € 56 000 000 do Fundo de Coesão;
b) € 170 895 000 para a Região Autónoma da Madeira, sendo € 139 195 000 a
título de solidariedade e € 31 700 000 do Fundo de Coesão.»
2. Fundamentos do pedido
2. 1. De inconstitucionalidade
O requerente alicerça o pedido de inconstitucionalidade nos seguintes
fundamentos:
a) Violação do dever de solidariedade do Estado para com as Regiões Autónomas
Invoca-se, em síntese, que foi violado o princípio constitucional da
solidariedade do Estado para com as Regiões Autónomas, ancorado nos artigos
225.º, n.º 2, 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 1, da CRP, ao ser reduzido o
montante a transferir de 2006 para 2007 e que essa situação é «tanto mais
gritante e escandalosa quanto é certo por ela se acentuarem as disparidades
derivadas do carácter insular do território do arquipélago da Madeira».
b) Violação do direito de audição das Regiões Autónomas
A este respeito, é alegado um vício procedimental pelo facto de «a Região
Autónoma da Madeira não ter sido devidamente auscultada na instrução do
procedimento legislativo de elaboração da Lei do Orçamento do Estado para 2007»,
o que configuraria a violação do direito de audição consagrado no artigo 229.º,
n.º 2, da CRP, e concretizado nos artigos 90.º e seguintes do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (doravante, EPA-RAM),
aprovado pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto, e na Lei n.º 40/96, de 31 de
Agosto.
Argui-se que um tal direito constitucional e legalmente consagrado não foi
respeitado no caso em apreço, «dado que a Assembleia da República, no decurso do
prazo concedido para a emissão de parecer por parte da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma da Madeira e sem esperar por ele, inopinadamente efectuou a
votação na generalidade e iniciou a votação na especialidade da futura Lei do
Orçamento do Estado para 2007». E acrescenta-‑se que o «comportamento da
Assembleia da República infringiu por completo o núcleo essencial deste direito
de audição, ao não ter esperado pela emissão daquele parecer antes de começar a
tomar decisões sobre a configuração definitiva da Lei do Orçamento do Estado
para 2007, pondo em questão a utilidade daquele direito de audição».
2. 2. De ilegalidade
São apontados três fundamentos para a ilegalidade da norma em questão:
a) Violação da norma do não retrocesso financeiro consagrada no Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira
Alega-se que foi desrespeitado o artigo 118.º, n.º 2, do EPA-RAM, o qual
estabelece que as verbas a transferir pelo Estado não podem ser inferiores ao
montante transferido pelo Orçamento do ano anterior multiplicado pela taxa de
crescimento da despesa pública corrente no Orçamento do ano respectivo, visto
que o montante agora transferido para a Região Autónoma da Madeira foi inferior
ao montante no ano anterior, tendo passado de € 204 888 536, em 2006,
para € 170 895 000, em 2007.
Argumenta-se que aquele preceito estatutário, configurando uma norma legal
imperativa mínima, de legalidade reforçada, impede que possa ser desvirtuada
pela lei que aprova o Orçamento do Estado, que é uma lei comum. E que a
obediência da lei orçamental às leis reforçadas decorre, também, da própria
força, procedimento, conteúdo e função dos estatutos político-administrativos e,
no caso, até está expressamente mencionada, dado que qualquer orçamento se deve
sujeitar às vinculações impostas por leis e contratos.
Prosseguindo, o autor do pedido afasta o argumento de que «o único padrão
aferidor das relações financeiras entre o Estado e as Regiões Autónomas é o
constante da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, Lei Orgânica n.º 1/2007, de
19 de Fevereiro», por considerar, em suma, que «é a própria Lei de Finanças das
Regiões Autónomas a colocar-se num patamar inferior e complementar àquele que é
primariamente definido pela Constituição e logo a seguir por cada Estatuto
Político-Administrativo das Regiões Autónomas», o que resulta, nomeadamente, dos
artigos 1.º, 4.º e 59.º, n.º 1, alínea c), desta lei financeira.
E conclui que «o mesmo raciocínio deve ser feito em relação a uma pretensa
justificação para a diminuição do valor transferido em 2007 por comparação com o
valor transferido em 2006 que se fundasse no artigo 88.º, n.º 2, da Lei do
enquadramento do Orçamento do Estado», por esta não ser uma lei reforçada em
relação aos Estatutos Político‑Administrativos, que sobre ela devem prevalecer
pela sua especificidade na regulação dos direitos regionais e, em especial, da
autonomia financeira regional.
b) Violação da norma da Lei de enquadramento orçamental que apenas admite o
retrocesso nas transferências financeiras para as Regiões Autónomas em
circunstâncias excepcionais
A norma cuja violação forneceria uma segunda razão de ilegalidade do artigo
126.º da Lei do Orçamento do Estado seria a contida no n.º 2 do artigo 88.º da
Lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto,
alterada e republicada pela Lei n.º 48/2004, de 24 de Agosto, nos termos da
qual, a redução das transferências do Orçamento do Estado, determinadas na lei
do Orçamento, dependem da verificação de circunstâncias excepcionais
imperiosamente exigidas pela rigorosa observância das obrigações decorrentes do
Programa de Estabilidade e Crescimento e dos princípios da proporcionalidade,
não arbítrio e solidariedade recíproca e carece de audição prévia dos órgãos
constitucionais legalmente competentes dos subsectores envolvidos.
No entender do requerente, a quebra do não retrocesso em matéria de
transferências financeiras anuais do Estado para as Regiões Autónomas não
obedeceu às condições fixadas no n.º 2 do preceito.
O carácter arbitrário da diminuição de verbas transferidas para a Região
Autónoma da Madeira seria evidenciado pelo confronto com o tratamento conferido,
nesta matéria, à Região Autónoma dos Açores: esta Região beneficiou de um
aumento da verba a transferir, que, de € 210 066 000, em 2006, passou para € 223
436 000, em 2007.
Tal desigualdade de tratamento violaria «uma ideia de solidariedade
recíproca, neste caso entre as próprias Regiões Autónomas e o Estado», atentando
também contra a identidade de estatuto jurídico-político das duas regiões, do
ponto de vista constitucional.
A redução seria ainda desproporcionada «porque se pretende cumprir os objectivos
do Programa de Estabilidade e Convergência à custa das transferências para as
Regiões Autónomas, quando é manifesto que o próprio Estado – o primeiríssimo
destinatário desses apertados critérios e que deveria dar o exemplo – não mostra
capacidade de os cumprir, bastando dizer, para o justificar, que para 2007 e em
relação a 2006, as despesas de funcionamento do Estado aumentam 9,4%, as
despesas correntes do Estado sobem 3,1%, o serviço da dívida aumenta 16% e os
encargos financeiros da dívida pública aumentam 8,1%».
c) Falta de base legal prévia na determinação do montante a transferir em 2007
para a Região Autónoma da Madeira
No que respeita a este último fundamento do pedido de declaração de ilegalidade,
o cerne da questão é o facto de «ter sido erroneamente determinado o montante da
verba a transferir para a Região Autónoma da Madeira por aplicação da Lei das
Finanças das Regiões Autónomas então vigente».
Invoca o requerente que «a Lei das Finanças das Regiões Autónomas na altura em
vigor – a Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro – determinava como método de cálculo
da verba a transferir do estado para as Regiões Autónomas o constante do seu
art. 30.º, n.º 2. […] Simplesmente, não foi esse o método seguido, mas um
qualquer outro método sem qualquer respaldo em lei que no momento se aplicasse».
Esse método não poderia, designadamente, corresponder àquele que veio a ser
posteriormente acolhido pela nova Lei de Finanças das Regiões Autónomas,
entretanto aprovada, uma vez que a norma em apreço, como todo o Orçamento do
Estado para 2007, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2007, enquanto que a Lei
Orgânica n.º 1/2007, que aprovou a nova Lei de Finanças das Regiões Autónomas,
apenas foi publicada em 19 de Fevereiro de 2007, pelo que a sua aplicação ao
caso constituiria uma retroactividade inadmissível e violaria o princípio da
tutela da confiança, «aplicável aos indivíduos como às instituições, constante
do artigo 2.º da Constituição Portuguesa».
3. Resposta do autor da norma
Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei
do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República apresentou
uma defesa do exercício das suas competências, rejeitando a alegação de ter sido
violado o direito constitucional e legal de audição das Regiões Autónomas. No
que respeita a todos os outros fundamentos de inconstitucionalidade e
ilegalidade invocados pelo requerente, deu por reproduzido o parecer da Comissão
de Orçamento e Finanças relativo à Proposta de Lei n.º 99/X, o qual considerara
que essa Proposta «preenche as condições para subir a Plenário da Assembleia da
República para apreciação na generalidade».
Como prova da observância do direito de audição das Regiões Autónomas, o
Presidente da Assembleia da República forneceu a datação precisa dos passos mais
relevantes do procedimento legislativo conducente à aprovação da Lei do
Orçamento do Estado de 2007.
Desse circunstanciado relato, há a destacar, no que à Região Autónoma da Madeira
interessa, que a Proposta de Lei n.º 99/X foi enviada, por via electrónica, ao
Presidente da Assembleia Legislativa Regional dessa Região Autónoma, em 8 de
Novembro de 2006. Essa Proposta foi votada, na generalidade, no dia seguinte,
tendo a discussão na especialidade, pelo Plenário da Assembleia da República,
decorrido nos dias 29 e 30 de Novembro de 2006. Neste último dia, após o
encerramento da discussão na especialidade, processou-se a votação, também na
especialidade, pelo Plenário, tendo a votação final global ocorrido na mesma
data.
Em face destes dados, entende o Presidente da Assembleia da
República que não é correcto considerar extemporâneo o pedido de parecer, como
fez a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, alegando que este
«não aproveitaria à Assembleia da República em nenhum efeito».
Citando jurisprudência da Comissão Constitucional e do Tribunal Constitucional,
afirma que o direito de audição incide sobre normas específicas da Proposta, e
não sobre a globalidade do diploma, pelo que a audição pode ser desencadeada
antes do início da discussão na especialidade.
Conclui que «o Presidente da Assembleia da República não violou qualquer direito
de audição da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira que,
querendo, poderia ter enviado o seu parecer sobre a Lei do Orçamento do Estado
no prazo de 15 dias, prazo que decorre do artigo 6º da Lei nº 40/96, de 31 de
Agosto, uma vez que o seu contributo, conforme se provou, ainda viria em tempo
para poder ser analisado no debate na especialidade que decorreu vinte e um dias
após o pedido de consulta».
4. Memorando
Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação
do Tribunal, cumpre agora decidir em harmonia com o que então se estabeleceu.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Questão prévia quanto à legitimidade do requerente
Nos termos do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da CRP, os
presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas podem requerer ao
Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, com
força obrigatória geral, quando o pedido “se fundar em violação dos direitos das
regiões autónomas”.
Este pressuposto está realizado, no caso vertente, pelo que, no que se refere às
duas questões de constitucionalidade suscitadas, não se suscitam dúvidas quanto
à legitimidade do requerente.
No que toca à declaração de ilegalidade, aquela norma restringe a legitimidade
para a requerer das entidades nela mencionadas, entre as quais os presidentes
das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, a pedidos que se fundem “em
violação dos respectivos estatutos”.
Há que indagar, pois, se as normas invocadas como fundamento da ilegalidade da
norma contida no artigo 126.º da Lei n.º 53-A/2006 possuem natureza estatutária.
Quanto à regra do não retrocesso financeiro, é patente que ela se inscreve no
EPA-‑RAM estando contida no seu artigo 118.º De um ponto de vista formal, não
pode, pois, negar-se que esta norma é susceptível da qualificação habilitante do
requerimento de declaração de ilegalidade apresentado.
Já o mesmo se não diga do disposto no artigo 88.º, n.º 2, da Lei de
enquadramento orçamental. Ainda que este diploma seja uma lei de valor
reforçado, com valência paramétrica da legalidade das normas constantes das Leis
anuais do Orçamento (artigo 106.º, n.º 1, da CRP), a verdade é que ele não cai
dentro da esfera de legitimidade restringida, quanto a iniciativas de
fiscalização abstracta da legalidade, consagrada na alínea g) do n.º 2 do artigo
281.º da CRP.
Encontra-se subtraída à legitimidade dos órgãos enumerados nesta alínea
qualquer pedido de declaração de ilegalidade que não apresente o fundamento aí
mencionado. É manifesto que tal é o caso presente.
Idêntico juízo merece o último dos fundamentos de ilegalidade invocados,
concernente à falta de base legal prévia na determinação do montante a
transferir em 2007 para a Região Autónoma da Madeira.
Das considerações do requerente, no que ao vício de ilegalidade estritamente diz
respeito, pode deduzir-se que, na sua óptica, esse vício resulta de um facto
negativo: a não aplicação do critério consagrado na Lei n.º 13/98, de 24 de
Fevereiro – a Lei de Finanças das Regiões Autónomas vigente à data da aprovação
da Lei do Orçamento do Estado para 2007.
Cingindo-nos, pois, à apreciação da ilegalidade decorrente da aplicação de «um
qualquer outro método» de transferência financeira que não o consagrado na Lei
de Finanças Regionais de 1998, é também de primeira evidência que a respectiva
declaração não poderia ser requerida pelo Presidente da Assembleia Legislativa
da Região Autónoma da Madeira, pela razão simples de que aquela Lei não integra
o estatuto desta região.
É de concluir, em face do que fica dito, que, por falta de legitimidade do
requerente, este Tribunal não pode conhecer do pedido de declaração de
ilegalidade, na parte em ele se funda na violação do artigo 88.º, n.º 2, da Lei
de enquadramento orçamental, e na falta de base legal prévia na determinação do
montante a transferir em 2007 para a Região Autónoma da Madeira.
6. Da alegada inconstitucionalidade por violação do direito, constitucional e
legal, de audição das Regiões Autónomas
Nos termos do artigo 229.º, n.º 2, da CRP, «os órgãos de soberania ouvirão
sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões
autónomas, os órgãos de governo regional».
No plano infraconstitucional, o mesmo direito é consagrado na Lei n.º 40/96, de
31 de Agosto, cujo artigo 2.º, n.º 1, reza assim:
«A Assembleia da República e o Governo ouvem os órgãos de governo próprio das
Regiões Autónomas sempre que exerçam poder legislativo ou regulamentar em
matérias da respectiva competência que às Regiões digam respeito».
O artigo 89.º, n.º 1, do EPA-RAM praticamente reproduz este preceito.
Mas, embora o requerente filie o seu direito em todas estas disposições, é
evidente que, sendo alegado um vício de inconstitucionalidade, apenas a norma
constitucional pode servir de parâmetro de aferição.
E, em face do teor do artigo 229.º, n.º 2, da CRP, nenhuma dúvida se pode
suscitar de que, quanto à norma sobre que especificamente incide o pedido de
declaração de inconstitucionalidade – o artigo 126.º da Lei do Orçamento do
Estado – estão preenchidos os pressupostos aplicativos do referido preceito
constitucional. A Lei do Orçamento do Estado é da competência da Assembleia da
República (artigo 161.º, alínea g), da CRP) e a norma em questão estabelece o
montante das transferências financeiras entre o Estado e as regiões autónomas da
Madeira e dos Açores. Trata-se, pois, indiscutivelmente, de uma disposição que
se situa no núcleo central da previsão constitucional do dever de audição.
Mas, no caso vertente, o que se questiona não é a omissão de cumprimento desse
dever, pois o órgão legiferante tomou a iniciativa de ouvir os órgãos regionais.
O que o requerente argui é que o momento em que o fez inutilizou por completo a
eficácia prática do parecer a emitir sobre a matéria.
Em seu entender, a Assembleia da República deveria «ter esperado pela emissão
daquele parecer antes de começar a tomar decisões sobre a configuração
definitiva da Lei do Orçamento do Estado para 2007». Como não foi isso que se
passou, uma vez que a Proposta foi enviada já em fase de aprovação, aquele órgão
de soberania «infringiu por completo o núcleo essencial deste direito de
audição».
Para se avaliar se esta arguição procede, recordemos os factos e as datas da sua
verificação, correlacionando-as com o faseamento do processo legislativo
parlamentar.
De acordo com o Regimento da Assembleia da República (aprovado pela Resolução da
Assembleia da República n.º 4/93, de 2 de Março, com as alterações posteriores,
então em vigor), este processo atravessa três fases. Começa com a discussão e
aprovação na generalidade (n.º 1 do artigo 158.º), a que se segue a discussão e
votação na especialidade, em comissão (artigo 159.º), salvo avocação pelo
Plenário (artigo 164.º), finalizando com a votação final global (artigo 165.º).
Apurou-se que a discussão na generalidade da Proposta de Lei n.º 99/X se iniciou
no dia 7 de Novembro de 2006, prolongando-se pelos dois dias seguintes. A
votação na generalidade teve lugar no último desses dias, a 9 de Novembro. Na
sequência da aprovação na generalidade, baixou à Comissão de Orçamento e
Finanças, para discussão e votação na especialidade.
A Proposta de Lei foi enviada ao Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira em 8 de Novembro de 2006. Tendo seguido por via electrónica,
é de presumir que foi recebida nesse mesmo dia.
O Relatório da discussão e votação na especialidade foi publicado no Diário da
República de 29 de Novembro de 2006. Nos dias 29 e 30 desse mês decorreu a
discussão na especialidade, pelo Plenário da Assembleia da República. Após o
encerramento da discussão, foi também no dia 30 de Novembro que teve lugar a
votação na especialidade e a votação global final, pelo Plenário.
Retira-se destes dados que a consulta à Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira ocorreu quando já estava em curso a discussão na
generalidade, um dia antes da respectiva votação, mas 21 dias antes do início do
debate que antecedeu a votação final global.
É o momento da consulta e o prazo disponível para o órgão regional se pronunciar
que levam a questionar a observância do dever de audição da Assembleia
Legislativa Regional.
Para aferirmos se o procedimento adoptado corresponde ao cumprimento perfeito
daquele dever, há que atentar se ele preservou ou não o sentido útil da
imposição constitucional. O que, naturalmente, só acontecerá, como se afirma no
Acórdão n.º 670/99, «se puder considerar-se alcançado o objectivo com que a
Constituição consagra tal dever. Ou dito de outra forma, se a Região Autónoma,
através dos órgãos competentes, tiver disposto do tempo necessário para se
pronunciar cabalmente sobre as questões que lhe respeitam e se o parecer que
eventualmente houvesse sido emitido ainda poderia ser considerado na sua
aprovação final, por ser conhecido na Assembleia da República em tempo útil».
Idêntica orientação se pode colher no Acórdão n.º 130/2006: «Entende o Tribunal
que – sob pena de se esvaziar o direito de audição, convertendo a
obrigatoriedade de audição numa formalidade sem sentido útil – a oportunidade da
pronúncia do titular do direito deve situar-se numa fase do procedimento
legislativo adequada à ponderação, pelo órgão legiferante, do parecer que aquele
venha a emitir, com a possibilidade da sua directa incidência nas opções da
legislação projectada».
Determinante para o resultado da aplicação deste critério, nos casos como o sub
iudice, é a prévia definição do objecto e extensão do dever de audição. De
facto, se for de entender que esse dever incide sobre todas as normas do
Orçamento do Estado, na sua globalidade, para apreciação dos seus “princípios e
sistema”, forçoso é concluir liminarmente que ele foi desrespeitado: sendo essa
matéria objecto do debate e votação na generalidade, é manifesto que à
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não terá sido dada
oportunidade de sobre ela se pronunciar, em tempo útil.
Já o mesmo se não dirá (ou não se dirá de forma imediata) na hipótese inversa,
de o dever de audição abranger apenas as normas do Orçamento do Estado
respeitantes à Região Autónoma, pois então ganha sentido a tese de que a fase
relevante do processo legislativo é a da discussão e votação na especialidade.
Não é a primeira vez que se apresenta neste Tribunal a questão do objecto do
dever de audição dos órgãos regionais, quando está em causa o Orçamento do
Estado. E firmou-se como jurisprudência constante, que aqui se reafirma, a de
que o direito de audição não tem por objecto o Orçamento do Estado, na sua
totalidade, abrangendo tão-somente, dos seus preceitos, aqueles que lhes digam
especificamente respeito.
Como se afirma no já citado Acórdão n.º 670/99:
«Seguro é que a Lei do Orçamento do Estado, globalmente considerada, não é,
manifestamente, uma “questão” respeitante às Regiões Autónomas, ou, em especial,
à Região Autónoma da Madeira. Melhor dizendo, nem todas as suas normas se podem
considerar respeitantes às Regiões Autónomas, no sentido relevante». A razão
deste entendimento pode buscar-se no Parecer n.º 26/78 da Comissão
Constitucional, aí se podendo ler que está em causa «uma lei que, pela sua
natureza e pelo seu objecto, se destina a todo o País, sem excepção de regiões
ou parcelas».
Justifica-se, assim, plenamente, no caso da presente lei do orçamento, a
distinção entre a globalidade da proposta e as normas especificamente
respeitantes às regiões autónomas, limitando às segundas o dever de audição das
regiões autónomas.
O que, por sua vez, leva a que se conclua que o simples facto de já se ter
iniciado o debate na generalidade, quando a comunicação para audição foi
emitida, não acarreta, contrariamente ao alegado, qualquer desrespeito daquela
exigência constitucional. É verdade que, nesse momento, se encontram já “a
consumar-se votações irreversíveis” – as concernentes aos princípios gerais
informadores das opções do orçamento −, como se alega no pedido do Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira. Simplesmente, essas
votações decidem matéria que não é respeitante às regiões autónomas, no sentido
relevante para a aplicação do artigo 229.º, n.º 1, da CRP.
O momento em função do qual se há-de ajuizar se ao órgão regional foi dada
oportunidade efectiva de se pronunciar em tempo útil é outro: é o início do
debate na especialidade, no âmbito do qual serão discutidas as normas sobre que
incide o dever de audição, só então podendo ser considerada a pronúncia sobre
elas eventualmente emitida pelo órgão consultado. Nesse momento, as questões
sobre as quais os órgãos regionais têm o direito de ser ouvidos – o conteúdo das
normas que especificamente respeitam às regiões autónomas – ainda estão em
aberto, pelo que a decisão definitiva pode ser influenciada pelo parecer
formulado pelos órgãos regionais.
Desta forma se dá cumprimento ao que o Acórdão n.º 130/2006 justificadamente
considera exigível:
«O cabal exercício do direito de audição pressupõe, assim, que, além de um prazo
razoável para o efeito, ele se exerça (ou possa exercer) num momento tal que a
sua finalidade (participação e influência na decisão legislativa) se possa
atingir, tendo sempre em conta o objecto possível da pronúncia.»
O que importa, como condição infringível da compatibilidade constitucional dos
termos em que foi dado cumprimento ao dever de audição, é que a consulta se faça
com a antecedência suficiente sobre aquela data, por forma a propiciar ao órgão
regional o tempo necessário para um estudo e ponderação das implicações, para os
interesses regionais, dos preceitos em causa.
É este último ponto que cumpre agora apreciar.
A questão gira em torno de saber sobre o que deve entender-se, para este efeito,
como um prazo razoável, padrão normativo a que o Tribunal tem lançado mão, nesta
matéria, desde o Acórdão n.º 403/89.
É sempre espinhosa a tarefa de concretização e quantificação precisa de um
critério normativo indeterminado, de base teleológica.
A Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto, ao regular o direito de «audição dos órgãos de
governo próprio das Regiões Autónomas», não hesitou em lançar mãos a essa
tarefa. Fê-lo no seu artigo 6.º, neste termos:
«Os pareceres devem ser emitidos no prazo de 15 ou 10 dias, consoante a emissão
do parecer seja da competência respectivamente da assembleia legislativa
regional ou do governo regional, sem prejuízo do disposto nos estatutos
político-administrativos das Regiões Autónomas ou de prazo mais dilatado
previsto no pedido de audição ou mais reduzido, em caso de urgência.»
Como não faz sentido que o legislador submeta os órgãos regionais a um ónus de
cumprimento impossível, ou gravosamente pesado, é manifesto que, no seu
entender, aqueles prazos são suficientes para o exercício cabal do direito de
audição. Mas, muito embora se trate de uma concretização qualificada, ela não
tem o valor firme de um parâmetro de constitucionalidade, como oportunamente
adverte o Acórdão n.º 529/2001. De todo o modo, o que não pode negar-se é que
aqueles prazos têm um forte valor indicativo de compatibilidade constitucional,
pois, pelo menos na generalidade das situações, eles propiciam um lapso de tempo
objectivamente apropriado à participação efectiva – e não meramente formal – dos
órgãos regionais no processo legislativo. Em condições de normalidade, e tendo
sempre em conta o objecto da pronúncia, esses prazos permitem alcançar a
finalidade que levou à consagração constitucional do dever de audição – o ponto
de vista valorativo verdadeiramente decisivo para ajuizar do cumprimento desse
dever.
Ora, no caso vertente, verifica-se que a Proposta de Lei n.º 99/X foi enviada à
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em 8 de Novembro de 2006,
tendo-se dado início ao debate e votação na especialidade no dia 29 do mesmo
mês. Aquele órgão dispôs, pois, de 21 dias para se pronunciar. Tendo presente o
âmbito circunscrito da audição, é de entender que a Assembleia da República
respeitou integralmente o dever consagrado no artigo 229.º, n.º 1, da
Constituição da República.
7. Da alegada inconstitucionalidade por violação do dever de solidariedade do
Estado para com as regiões autónomas
É também invocada, para fundar a inconstitucionalidade do artigo 126.º da Lei do
Orçamento do Estado, a violação do dever de solidariedade do Estado para com as
regiões autónomas.
O simples modo de formulação deste fundamento de inconstitucionalidade enfatiza
a subjectivação da solidariedade, entendida isoladamente como fonte de uma
relação entre o Estado e as regiões autónomas, no quadro da qual o primeiro
assume uma posição debitória, uma vinculação a prestações financeiras, em
benefício das segundas.
Ora, as referências da nossa Lei Básica a essa ideia regulativa perspectivam-na,
mais amplamente, como um princípio norteador da acção do Estado, tendo em conta
o todo nacional e o conjunto das populações que o integram. No campo valorativo
dessa ideia, e na realização dos objectivos programáticos que dela se inferem,
projecta-se seguramente uma intenção normativa de equilibrada ponderação e
satisfação, no âmbito de todo o território nacional, das aspirações de bem-estar
de todos os portugueses.
A solidariedade como factor integrativo da comunidade nacional é uma concepção
que transparece claramente dos próprios enunciados normativos presentes no
quadrante da autonomia regional. É assim que a cooperação dos órgãos de
soberania e dos órgãos regionais, «visando, em especial, a correcção das
desigualdades derivadas da insularidade» (artigo 229.º, n.º 1), se inscreve nas
finalidades genéricas do reconhecimento da autonomia das regiões, como
instrumento do «reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre
todos os portugueses» (artigo 225.º, n.º 2). Em consonância, a participação das
regiões nas receitas tributária do Estado deve ser estabelecida «de acordo com
um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional» (alínea j) do n.º 1
do artigo 227.º).
No Acórdão n.º 11/2007, cujo entendimento aqui se retoma, assinala-se que «o
princípio, dito da solidariedade nacional, não pode ser perspectivado por forma
a dele se extrair uma só direccionalidade, qual seja a da solidariedade
representar unicamente a imposição de obrigações do Estado para com as Regiões
Autónomas, pois que, sendo uma das tarefas fundamentais do Estado a de promover
o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta,
inter alia, o carácter ultraperiférico dos Açores e da Madeira (cfr. alínea g)
do artigo 9.º da Constituição), visando a autonomia das Regiões, a par da
participação democrática dos cidadãos, do desenvolvimento económico-social e da
promoção e defesa dos interesses regionais, o reforço da unidade nacional e dos
laços de solidariedade de todos os portugueses (n.º 2 do artigo 225.º), torna-se
inequívoco que, neste ponto, não poderão deixar de ser ponderados também os
interesses das populações do território nacional no seu todo, consequentemente
aqui se incluindo as próprias populações do território “historicamente definido
no continente europeu”».
A ideia de solidariedade coenvolve a de reciprocidade, sob pena de se negar a si
própria. Não pode ser de sentido único, pelo que qualquer pretensão específica
de apoio, em correcção de assimetrias e desigualdades, deve sempre dispor-se à
permanente consideração de pretensões e necessidades concorrentes de outros
sectores da comunidade nacional.
Como «indicador de sentido e de medida» dos programas de acção estadual, na sua
dimensão objectiva de parâmetro constitucional de decisões políticas, o
princípio solidarístico impõe a ponderação mutuamente reflexiva e a gradação de
interesses, nacionais e regionais, contrastantes. Só assim o Estado cumpre
adequadamente a tarefa fundamental que lhe cabe de promoção da «igualdade real
entre os portugueses» (alínea d) do artigo 9.º da CRP) e do «desenvolvimento
harmonioso de todo o território nacional» (alínea g) do mesmo artigo).
O que não obsta, antes impõe, (a)o atendimento das particularidades das regiões
autónomas, decorrentes da insularidade e da localização ultraperiférica, em
obediência a comandos constitucionais explicitados na 2.ª parte da alínea g) do
artigo 9.º e no artigo 229.º, n.º 1.
Mas, mesmo as decisões que se fundam nesta específica dimensão parcelar e
territorialmente situada do princípio da solidariedade não podem ser tomadas com
abstracção de outros objectivos constitucionalmente legitimados. Ainda que a
situação justificativa de medidas de apoio específicas, por assentar em factores
de ordem geográfica, seja dotada de permanência, a manifestação concreta da
solidariedade para com as regiões autónomas, em cada momento histórico, não pode
ser imune às variáveis conjunturais e às exigências que delas decorrem, no
contexto do todo nacional.
Não se infere, designadamente, do princípio da solidariedade, em qualquer das
suas projecções, uma imperatividade, de cunho apriorístico, de deveres
prestacionais com um conteúdo mínimo rigidamente prefixado. Há que respeitar as
competências políticas próprias da Assembleia da República, a quem cabe, em
matéria orçamental, ajuizar anualmente da melhor distribuição de meios
financeiros escassos. E nisso vai reconhecida uma larga margem de liberdade de
conformação legislativa, de acordo com o princípio democrático.
Sem esquecer as causas estruturais específicas de carências que afectam as
populações das regiões autónomas, é à escala global de toda a comunidade
nacional que devem ser apreciados e comparativamente correlacionados os níveis
de necessidades e a disponibilidade de recursos para as satisfazer.
Daí que transferências financeiras passadas não forneçam uma medida
jurídico-‑constitucionalmente vinculativa de um montante mínimo de
transferências futuras, em termos de ficar vedada qualquer redução, em
detrimento de uma região. Para além das flutuações económico-financeiras gerais
e da prossecução dos objectivos de política nacional neste campo traçados, há
que valorar actualizadamente a evolução económica e social de cada região, para
definir a justa medida, em cada exercício orçamental, da actuação do princípio
de solidariedade.
Não basta, pois, invocar a redução de verbas transferidas para a Região Autónoma
da Madeira, ainda quando acompanhada de uma alteração de sentido inverso, no que
se refere à Região Autónoma dos Açores, para fundar a violação daquele
princípio. Independentemente do juízo que, em termos de apreciação política,
essa opção mereça, do estrito ponto de vista da conformidade constitucional só
uma redução manifestamente irrazoável e arbitrariamente desproporcionada se
mostraria incompatível com os parâmetros que decorrem da Lei Fundamental.
Entende o Tribunal que esse limiar não foi ultrapassado, pelo que não deve ser
julgado inconstitucional, com este fundamento, o artigo 126.º da Lei do
Orçamento de Estado de 2007.
8. Da alegada ilegalidade por violação da regra do não retrocesso financeiro
consagrada no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira,
aprovado pela Lei nº 130/99, de 21 de Agosto
A cláusula de não retrocesso consta da norma contida no n.º 2 do artigo 118.º
(transferências orçamentais) do EPA-RAM, a qual é do seguinte teor:
«Em caso algum, as verbas a transferir pelo Estado podem ser inferiores ao
montante transferido pelo Orçamento do ano anterior multiplicado pela taxa de
crescimento da despesa pública corrente no Orçamento do ano respectivo.»
Vem arguido que a Lei do Orçamento do Estado, ao determinar um montante de
transferência financeira, para 2007, inferior ao do ano anterior, viola aquela
norma estatutária, norma de legalidade reforçada, que não pode ser desvirtuada
por uma lei comum, como o é a lei orçamental.
Em abono desta tese, desenvolvem-se considerações tendentes a demonstrar a
prevalência hierárquica de cada Estatuto Político-Administrativo das Regiões
Autónomas sobre a Lei de Finanças das Regiões Autónomas (Lei Orgânica n.º
1/2007, de 19 de Fevereiro) e sobre a Lei de enquadramento orçamental (Lei n.º
91/2001, de 20 de Agosto).
Importa reconhecer, na verdade, que uma definição rigorosa da natureza e âmbito
normativo dos Estatutos das Regiões Autónomas é determinante do juízo a emitir
sobre o facto de o n.º 2 do artigo 118.º do EPA-RAM não ter sido obedecido.
A Constituição não nos indica, pela positiva, quais as matérias que devem
constituir objecto de reserva de lei estatutária. Mas daí não pode concluir-se
que ganham necessariamente essa qualidade, à margem de qualquer predicado
material objectivo do seu conteúdo, todas as normas que constam dos Estatutos,
por simples decorrência dessa formal localização sistemática.
Essa conclusão já foi rejeitada, com toda a clareza, pelo Acórdão n.º 162/99, em
doutrina plenamente acolhida e desenvolvida pelo Acórdão n.º 567/2004.
Pode ler-se neste último aresto:
«Todavia, o âmbito dessa reserva de estatuto não se determina em função do
conteúdo concreto de um estatuto vigente; não ocorre violação da “reserva de
estatuto” sempre que uma norma o contrarie. Escreveu-se no mesmo Acórdão n.º
162/99:
“Não basta, pois, que uma determinada norma conste de um estatuto regional para
que a sua alteração por um decreto-lei importe violação da reserva de estatuto
[…] Essa violação só existirá se essa norma constante do estatuto pertencer ao
âmbito material estatutário – ou seja: se ela regular questão materialmente
estatutária.”
Ora, fora da reserva de estatuto está necessariamente “o regime de finanças das
regiões autónomas” – alínea t) do artigo 164.º da Constituição – e nomeadamente
a matéria das “relações financeiras entre a República e as regiões autónomas” –
n.º 3 do artigo 229.º da Constituição –, que é matéria reservada à competência
legislativa da Assembleia da República.»
Compete a este órgão de soberania definir, em cada ano, na Lei do Orçamento do
Estado, o montante a transferir para os Açores e para a Madeira. Por isso mesmo,
no artigo 106.º, n.º 3, alínea e), da CRP, se determina que a proposta de
Orçamento seja acompanhada de relatórios sobre «as transferências de verbas para
as regiões autónomas».
Não pode, pois, uma regra formalmente integrada nos Estatutos impor um limite
aos poderes parlamentares de fixação do montante das verbas a transferir,
restringindo a competência da Assembleia da República para efectuar os
ajustamentos anuais que entenda justificados.
A tese contrária implicaria uma constrição da competência parlamentar na
regulação das relações financeiras entre o Estado central e as regiões autónomas
que não estaria constitucionalmente sufragada.
Por isso mesmo, é seguro concluir que, seja qual for o significado a atribuir
aos termos literais da proibição peremptória de retrocesso, cominada no n.º 2 do
artigo 118.º do EPA-RAM, esta norma não pode prevalecer-se de um estatuto que
não possui – o de integrante da reserva material de estatuto – para suplantar o
regime instituído por uma Lei do Orçamento do Estado.
Daí que o facto de o comando contido naquela norma não ter sido observado não
representa uma violação estatutária, inexistindo a ilegalidade que daí
decorreria.
III – DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer, por falta de legitimidade do
requerente, do pedido de declaração de ilegalidade do artigo 126.º da Lei n.º
53-A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007), na parte em ele se
funda na violação do artigo 88.º, n.º 2, da Lei de enquadramento orçamental, e
na falta de base legal prévia na determinação do montante a transferir em 2007
para a Região Autónoma da Madeira;
b) Não declarar a inconstitucionalidade nem a
ilegalidade da norma contida no artigo 126.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de
Dezembro (Orçamento do Estado para 2007).
Lisboa, 21 de Novembro de 2007
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes (com declaração anexa)
Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Apesar de acompanhar o acórdão quanto à conclusão de que a norma em
apreciação não enferma de ilegalidade por violação da regra consagrada no n.º 2
do artigo 118.º do Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma da
Madeira, não perfilho inteiramente a fundamentação contida no n.º 8 do acórdão
para recusar ao parâmetro invocado a força jurídica específica das normas
estatutárias. E, no caso presente, nem é apenas pelas reservas que, noutra
ocasião, já sumariamente expus ao entendimento do Tribunal que, de um modo geral
e sem distinção, nega consequências invalidantes à inclusão em lei de valor
reforçado pelo procedimento de normas que constitucionalmente não devam ser
sujeitas a tal procedimento ou forma externa (cfr. declaração de voto aposta ao
acórdão n.º 428/2005, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de
Setembro; desenvolvidamente, carlos blanco de morais, As Leis Reforçadas – As
leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das
relações ente actos legislativos, pág. 914 e segs.) e que valem de modo
especialmente intenso relativamente aos Estatutos das regiões autónomas, face ao
seu especial valor paramétrico. Com efeito, essa inclusão traduz-se na
preterição frontal da forma legislativa constitucionalmente prescrita para
regular a matéria. A regra de não retrocesso contida no n.º 2 do artigo 118.º do
Estatuto respeita às “relações financeiras entre a República e as regiões
autónomas ” que o n.º 3 do artigo 229.º expressamente reserva para a lei a que
se refere a alínea t) do nº 1 do artigo 164.º da Constituição, como o acórdão
salienta. Com a sujeição expressa da regulação da matéria a este acto
legislativo, que aliás reveste a forma de lei orgânica (n.º 2 do artigo 166.º),
a Constituição pretendeu subtrair as relações financeiras entre o Estado e as
regiões autónomas à rigidificação inerente à sua inserção nos estatutos
político‑administrativos, evitando a restrição aos poderes da Assembleia da
República que adviria da sua atracção para o âmbito dos estatutos (cfr. n.º 4 do
artigo 226.º). Deste modo, parece-me que, em vez de a considerar meramente
irrelevante o Tribunal deveria ter recusado ex officio aplicação à norma
estatutária por violação do n.º 3 do artigo 229.º da Constituição – desvio de
forma –, por essa via improcedendo a arguição de ilegalidade da norma orçamental
submetido à apreciação quanto ao fundamento de violação da referida regra da
proibição do retrocesso financeiro.
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanho a decisão tomada pelo Tribunal e, genericamente, a sua fundamentação.
Todavia, quanto ao Ponto 8. do Acórdão, divirjo do entendimento de que é
possível ultrapassar a norma contida no n.º 2 do artigo 118º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira por via da simples
desqualificação da sua natureza de norma estatutária, mas sem a confrontar
directamente com o n.º 3 do artigo 229º da Constituição. O certo, porém, é que a
referida norma estatutária se mostra abertamente desconforme com este preceito
constitucional, o que implicaria, a meu ver, um juízo de inconstitucionalidade,
formulado a título incidental, que melhor habilitaria o Tribunal a desconsiderar
a norma e, por esta via, a solucionar o problema.
Quanto à definição do objecto do dever de audição das regiões, entendo que a
jurisprudência do Tribunal anterior à revisão constitucional de 2004 deve ser
lida à luz do novo figurino de competências legislativas das regiões; com
efeito, não me parece possível continuar a defender que o citado dever se
reporta apenas aos preceitos que digam 'especificamente' respeito à regiões. A
redacção conferida ao artigo 228º da Constituição pela 6ª revisão constitucional
impõe um entendimento mais amplo desse dever; o de que 'as questões respeitantes
às regiões autónomas' – como diz o n.º 3 do artigo 229º –, também abrangem as
matérias que os Estatutos regionais incluem na competência legislativa de cada
uma das regiões. Deste modo, afigura-se-me que, para solucionar este tipo de
problema, não é mais possível adoptar um critério fundado apenas na incidência
especifica da norma, sem ter em atenção a matéria que regula e a verificação de
que ela se inclui, ou não, na competência legislativa regional.
Finalmente, quanto ao dever de solidariedade do Estado para com as regiões: a
Constituição impõe um dever especial de cooperação, visando 'a correcção das
desigualdades derivadas da insularidade' (artigo 229º n.º 1). Este comando
permite compreender, na sua justa dimensão, o dever de solidariedade nacional
que, no que concerne às regiões autónomas, se explicita no artigo 225º n.º 2 da
Constituição. Sendo certo que, como se afirma no Acórdão, a solidariedade é um
'factor integrativo da comunidade nacional', já não será, no caso, tão certo que
'a ideia de solidariedade coenvolve a de reciprocidade', pois estamos perante
uma realidade em que, reconhecidamente, as partes não são iguais, uma vez que a
insularidade constitui, por si só, um factor de debilidade.
Carlos Pamplona de Oliveira