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Processo nº 1225/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Em 1 de Fevereiro de 2008 foi proferida decisão sumária em que se decidiu
não tomar conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por A..
A decisão de não conhecimento do recurso assentou nos seguintes fundamentos:
3. Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que
admitiu o recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal
Constitucional, entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso
de proferir decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da referida
Lei.
Como é sabido, para se poder conhecer de um recurso intentado ao abrigo do
disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários, que a
inconstitucionalidade das normas impugnadas tenha sido suscitada durante o
processo e que estas normas tenham sido aplicadas como ratio decidendi pelo
tribunal recorrido.
Este último requisito não é mais do que expressão da necessária utilidade da
intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso, pois, se a norma
impugnada não foi ratio decidendi – mas antes é apenas mencionada num obiter
dictum –, ou se existe outro fundamento, só por si bastante para se chegar a
decisão idêntica à recorrida, a decisão do Tribunal Constitucional sobre a sua
constitucionalidade, qualquer que ela fosse, sempre seria insusceptível de
alterar o sentido da decisão do tribunal recorrido. Nestas condições, o Tribunal
Constitucional não pode tomar conhecimento do recurso.
4. Ora, consultando a decisão de que se pretende recorrer verifica-se que a
norma impugnada não foi aí aplicada, nem expressa nem implicitamente, e muito
menos como ratio decidendi da decisão. Isso mesmo resulta da seguinte passagem:
O acórdão proferido neste tribunal em Julho esgotou o poder jurisdicional que
lhe estava cometido, pelo que por tal não poderá ser apreciado senão em 1.ª
instância.
No tocante à aplicação ao caso do artigo 50.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de
Setembro, nos termos do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, não se tomou
conhecimento, por ter sido requerida a tribunal incompetente em razão da
hierarquia.
E por aqui se vê que qualquer que fosse a decisão sobre a
(in)constitucionalidade da norma impugnada, ela em nada poderia alterar o
sentido da decisão recorrida.
Relembre-se que num recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade
normativa não tem cabimento vir discutir a forma como o direito ordinário foi ou
deveria ter sido aplicado. Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente
observado, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que
implica, como se sabe, que é condição de conhecimento do respectivo objecto a
possibilidade de repercussão do julgamento que nele venha a ser efectuado na
decisão recorrida.
Ora, no caso, nenhuma repercussão teria o julgamento da questão de
constitucionalidade da norma definida pelo recorrente, ainda que o Tribunal
viesse a concluir no sentido da inconstitucionalidade.
Não se encontram, pois, preenchidos os pressupostos para se poder tomar
conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, dizendo o
seguinte:
1. Salvo o respeito, parece-nos que a decisão em causa não atendeu ao que
verdadeiramente está em causa no recurso interposto para o Tribunal
Constitucional.
2. Com efeito, a Relação entendeu que não se podia pronunciar quanto ao teor do
requerimento apresentado pelo recorrente, na sequência da entrada em vigor do
novo Código Penal na pendência do processo em causa, formulado ao abrigo do n° 4
do art. 2 do CP, conjugado com o n° 4 do art. 29° da CRP.
Na verdade, a Relação julgou que:
“O acórdão proferido neste tribunal em Julho esgotou o poder jurisdicional que
lhe estava cometido, pelo que por tal não poderá ser apreciado senão em 1ª
instância.”
3. O recorrente (e ora reclamante) recorreu dessa interpretação restritiva do
nº 4 do art 2° do CP, que (em nosso entender) deve ser aplicado à luz do n° 4 do
art. 29° da CRP.
Não obstante,
4. O recorrente foi notificado da decisão sumária que entendeu:
“no tocante à aplicação ao caso do artigo 50° da Lei 110 59/2007, de 4 de
Setembro, nos termos do nº 4 do artigo 2° do Código Penal, não se tomou
conhecimento, por ter sido requerida a tribunal incompetente em razão da
hierarquia. (...)
Relembre-se que num recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade
normativa não tem cabimento vir discutir a forma como o direito ordinário foi ou
deveria ter sido aplicado.(...)”
5. Mas (repete-se) o que se pretendia (e pretende) com este recurso não é obter
a aplicação ao caso do art. 50 da Lei n° 59/2007, de 4 de Setembro mas que a
Relação conheça a questão, nos termos do que dispõe o art. 2 n° 4 do Código
Penal, que mais não é do o corolário lógico e necessário do nº 4 do art. 29 da
CRP.
Em síntese, a Relação não pode (nesta sede, de aplicação retroactiva de lei mais
favorável ao arguido) julgar que se encontra esgotado o poder jurisdicional.
6. Na verdade, se é certo que, em regra, proferida a sentença fica esgotado o
poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (como dispõe o art. 666 n°
1 do CPC), a Constituição, no n° 4 do art. 29, manda aplicar retroactivamente as
leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, preceito que está em conexão
com o artigo 2° do Código Penal que, no seu n° 2, não respeita o caso julgado.
7. Na situação em causa, os poderes jurisdicionais para intervir na matéria
são-lhe conferidos por lei e pela Constituição, constituindo um caso em que pode
intervir sem que possa afirma-se estar a dispor de poderes esgotados.
E esses poderes tinham de se fazer reflectir no processo, desde logo e ainda
pela Relação; que é o que se pretende, a final com este recurso.
Aliás, o art. 2 n° 4 da (nova) redacção do Código Penal, manda observar o
seguinte:
“quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível
das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado, o regime que
concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação,
ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais,
logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da
pena prevista na lei posterior.”
8. Em síntese, a interpretação acolhida pela Relação de Lisboa, do art. 2 nº 4
do CP é restritiva e materialmente inconstitucional, porque viola o n° 4 do art.
29° da CRP.
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
respondeu à reclamação nos seguintes termos:
1°
A presente reclamação é, a nosso ver, improcedente.
2°
Na verdade – e como nota a decisão reclamada – o acórdão proferido pela Relação
não se pronunciou sobre a questão da aplicação da lei penal mais favorável ao
arguido, limitando-se a dirimir uma questão de competência (em razão da
hierarquia) para apreciar a matéria constante do requerimento apresentado.
3º
E sendo evidente que a repartição de competências entre a 1ª e 2ª instâncias,
para valorarem tal tipo de requerimento, nada tem seguramente que ver com a
“norma” elencada como objecto do recurso de constitucionalidade interposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. Adiante-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento, por
não abalar os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada.
Como foi já dito na decisão reclamada, para se poder conhecer de um recurso
intentado ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos
ordinários, que a inconstitucionalidade das normas impugnadas – no caso, a norma
referida à “interpretação restritiva do art.º 2.º, n.º 4, do Código Penal, na
redacção da Lei n.º 59/2007, de 04/09, constante do acórdão recorrido, que
estipula «quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto
punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores é sempre aplicado
o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver
condenação ainda que transitada em julgado (…)», por ser materialmente
inconstitucional pois viola o disposto no art.º 29.º, n.º 4, da CRP, que manda
aplicar retroactivamente as leis de conteúdo mais favorável ao arguido” - tenha
sido suscitada durante o processo e que estas normas, no sentido interpretativo
impugnado, tenham sido aplicadas como ratio decidendi pelo tribunal recorrido.
Ora, este último requisito não se verifica, no presente caso, como se afirmou na
decisão reclamada e se reitera.
4. O reclamante insurge-se contra a decisão reclamada afirmando, entre o mais,
que “o que se pretendia (e pretende) com este recurso não é obter a aplicação ao
caso do art.º 50.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, mas que a Relação
conheça a questão, nos termos do que dispõe o art.º 2.º, n.º 4, do Código Penal,
que mais não é do que o corolário lógico e necessário do n.º 4 do art.º 29.º da
CRP.” Diz, mesmo, que “a Relação não pode (nesta sede, de aplicação retroactiva
de lei mais favorável ao arguido) julgar que se encontra esgotado o poder
jurisdicional.” “Na verdade”, defende, “se é certo que, em regra, proferida a
sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa
(como dispõe o art.º 666.º, n.º 1, do CPC), a Constituição, no n.º 4 do art.º
29.º, manda aplicar retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável
ao arguido, preceito que está em conexão com o artigo 2.º do Código Penal que,
no seu n.º 2, não respeita o caso julgado.” “Na situação em causa”, continua,
“os poderes jurisdicionais para intervir na matéria são-lhe conferidos por lei e
pela Constituição, constituindo um caso em que pode intervir sem que possa
afirmar-se estar a dispor de poderes esgotados.” “E esses poderes”, conclui,
“tinham de se fazer reflectir no processo, desde logo e ainda pela Relação; que
é o que se pretende, a final, com este recurso.”
Admite-se que o reclamante discorde da recondução da ratio decidendi, no acórdão
recorrido, à incompetência em razão da hierarquia da Relação para conhecer da
requerida aplicação da lei penal mais favorável ao arguido. Mas tal
discordância, ou censura em relação à correcção na aplicação do Direito pelo
tribunal recorrido, não é algo que compita ao Tribunal Constitucional apreciar.
Como se tem salientado em abundante jurisprudência, ao Tribunal Constitucional a
norma que foi, bem ou mal, aplicada pelo tribunal recorrido como ratio decidendi
chega já como um dado, cuja escolha e interpretação, independentemente de
questões de constitucionalidade normativa, não compete a este Tribunal
controlar.
Independentemente da correcção da decisão recorrida, na parte em que considera
que “(o) acórdão proferido neste tribunal em Julho esgotou o poder jurisdicional
que lhe estava cometido, pelo que por tal não poderá ser apreciado senão em 1.ª
instância” - que, repete-se, não cumpre ao Tribunal Constitucional controlar –,
o que é certo é que, portanto, a decisão recorrida não fez aplicação, expressa
ou implícita, da norma do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, na interpretação
“restritiva” impugnada no requerimento de interposição do recurso, intervenção
processual que fixa o respectivo objecto.
E por aqui se vê, como também já ficou dito, que qualquer que fosse a decisão
sobre a questão de constitucionalidade da norma impugnada, ela em nada poderia
alterar o sentido da decisão recorrida.
5. Verdadeiramente, o que se pretendeu trazer à apreciação deste Tribunal não
foi a conformidade constitucional de uma norma, mas antes uma alegada violação
da Constituição por uma actuação judicial concreta, sendo ilustrativo que o
reclamante se reporte várias vezes ao “que se pretende, afinal com este
recurso”.
O recurso não foi, pois, admitido por não se verificar um seu pressuposto
indispensável: a aplicação, pela decisão recorrida, da norma enunciada pelo
recorrente no respectivo requerimento de interposição. E a presente reclamação
tem de ser desatendida, confirmando-se a decisão sumária reclamada.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 12 de Março de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão