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Processo n.º 721/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
I.Relatório
1.
A. e B recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro
(LTC), do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 12 de Outubro
de 2006, que rejeitou o recurso que haviam interposto da sentença da 1ª
instância.
No requerimento de recurso de constitucionalidade apresentado sustentaram que o
n.º 5 do artigo 678.º do Código de Processo Civil “se interpretado com o sentido
e alcance da revogação tácita do regime de garantia de tutela jurisdicional
efectiva de reapreciação em 2.ª instância, assegurado pelo artigo 57.º do RAU
para qualquer acção de despejo ou mesmo em processo que seja discutido um
qualquer regime de arrendamento vinculístico, independentemente do valor da
acção” é inconstitucional.
No Tribunal Constitucional (fls. 889 e ss.) foi proferida decisão sumária pelo
relator que decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A da LTC, negar
provimento ao recurso.
2.
Inconformados, reclamaram (fls. 898 e ss.) nos termos do disposto no n.º 3 do
artigo 78.º-A da LTC, fundamentando a reclamação apresentada nos seguintes
moldes:
“(…)
I. A questão:
§ 1.º: Em súmula, a questão concreta que foi suscitada no presente recurso é a
da constitucionalidade do preceituado no n.º 5 do art. 678.º, do CPC (redacção
dada pelo DL n.º 180/96, de 25/09), como normativo que, segundo a interpretação
e aplicação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, revogou tacitamente o
art. 57.º, n.º 1, do RAU (redacção dada pelo DL n.º 391.B/90, de 15/10), ao
abrigo do qual os ora recorrentes pretendiam apurar junto desta 2.ª instância (e
aqui lhes foi negado tal direito de recurso) a correcção da sentença, proferida
em Tribunal da 1.ª instância, acerca de uma acção de despejo sobre arrendamento
para o exercício de profissão liberal, cujo valor forçosamente se encontra
contido na alçada deste Tribunal.
§ 2.º: A redacção do n.º 5 do art. 678.º do CPC, ao tempo da prolação do
despacho judicial do TRL: que suscitou a subsequente reclamação e ulteriores
recursos até à presente reclamação, era a seguinte:
«Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível
recurso para a Relação nas acções em que se aprecie a validade ou a subsistência
de contratos de arrendamento para habitação».
3.º Por seu turno, no n.º 1 do art. 57.º do RAU (então em vigor) lia-se:
«A acção de despejo admite sempre recurso para a relação, independentemente do
valor da causa».
§ 4.º: É consabido que a revogação tácita decorre da «incompatibilidade entre as
novas disposições e as regras precedentes», cf. art. 7.º, n.º 2, do Código
Civil.
§ 5.º: À data em que foi proferido o Acórdão do TRL onde se reiterou a
aplicabilidade da norma cuja constitucionalidade foi invocada, verificou-se a
entrada em vigor do NRAU (cf. art. 65.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2006, de 27/02),
com aplicação imediata da alteração à redacção do n.º 5 do art. 678.º do CPC.
II. A decisão ora reclamada:
§ 1.º: De acordo com a douta decisão ora reclamada: a norma cuja interpretação e
aplicação se considerou estar em crise não merece qualquer juízo de censura
constitucional, porquanto, também em síntese: «...a interpretação do aludido
artigo 678.º n.º 5 não pode qualificar-se como arbitrária, excessiva ou
desprovida de justificação objectiva, pois se inclui na regra geral aplicável a
todas as demais acções, com excepção das relativas a arrendamentos
habitacionais...» (o sublinhado pertence-nos).
§ 2.º: Em rigor, analisada cuidadosamente a douta decisão reclamada, esta dá
como adquirida, sem mais, a constitucionalidade do art. 678º, n.º 5, do CPC
segundo a interpretação deste preceito que inviabiliza o pretendido recurso para
a 2.ª instância.
§ 3.º: E foi alicerçada o demais em extensa e reiterada invocação e citação de
jurisprudência desse Venerando Tribunal sobre a questão de que as limitações dos
recursos em função das alçadas não impõe ao legislador ordinário a garantia de
acesso a diferentes graus de jurisdição, nem ofende o direito de acesso ao
direito e aos tribunais;
O que — respeitosamente — se afigura meramente colateral ao problema que se
coloca...
§ 3.º: Já que tudo ficou exposto nesta decisão sem curar da subsistência no
ordenamento jurídico em vigor do preceituado no art. 57.º. nº 1, do RAU, que
fundamentou a apelação apresentada pelos recorrentes junto do TRL.
§ 4.º: Este aspecto — se bem entendemos a douta decisão — foi logo afastado
porquanto cairia no âmbito da apreciação da «correcção jurídica adoptada no
tribunal recorrido e da concreta aplicação do direito ao caso sub judice», o que
se encontra vedado ao Tribunal Constitucional.
Posto isto, desde já se torna possível constatar que na decisão ora reclamada:
i) Não se debruçou sobre a invocada inconstitucionalidade orgânica da Lei
habilitante (de autorização) da redacção ulterior dessa norma com o sentido e
alcance emprestado pelo Acórdão do TRL, aqui em causa;
ii) Não se ponderou se o art. 678.º, n.º 5, do CPC é aplicável ao caso concreto
dos autos, porquanto, não o sendo (subsistindo em vigor outras normas
específicas para o despejo) então a sua interpretação e aplicação pelo TRL
vedou, ao menos, o acesso ao Direito garantido constitucionalmente;
Com efeito,
§ 3.º: Não obstante a douta fundamentação (e referimo-nos à decisão ora
reclamada na sua íntegra), subsistem as — perdoe-se — obstinadas interrogações
que sempre motivaram as sucessivas reclamações e recursos dos autos sobre o
assunto, a saber:
O art. 685º, n.º 5, do CPC revogou ou não o preceituado no art. 57.º, n.º 1 do
RAU? São ou não as duas normas inconciliáveis, em vista da correspondente
revogabilidade tácita? E, mesmo aceitando por necessidade de raciocínio uma
resposta afirmativa, tal revogação poderia operar-se sem violação de qualquer
preceito constitucional?
III. As dúvidas que subsistem:
É que, salvo o enorme respeito por opinião contrária (que não vimos até agora
aprofundada de sorte a solver as dúvidas que afloram os recorrentes), é na
análise destas questões que se situa o cerne da decisão pretendida com o
presente recurso:
Em primeiro lugar:
§ 1.º: Porque a revogação em causa suscitaria fosse ponderada a questão da
inconstitucionalidade orgânica, decorrente do facto de tal sentido e alcance do
teor do art. 685.º, n.º 5, deveria ser a projecção das Leis de autorização
legislativa (Lei n.º 33/95, de 18/08 e, sobretudo, da Lei n.º 28/96, de 2/08)
que habilitaram o Governo a legislar (DL n.º 329-A/95, de 12/12 e, mais
concretamente, o DL n.º 180/96, de 25/09); necessidade esta decorrente dos arts.
l65.º, n.º 1, al. h) e n.º 2, e art. l98.º, n.º 1, al. b) da CRP);
§ 2.º: Tal foi expressamente invocado no requerimento de interposição de recurso
para esse Venerando Tribunal Constitucional (que se dá aqui por integralmente
reproduzido).
§ 3.º: Esquadrinhadas as citadas Leis de Autorização Legislativa, nada se vê que
permita ao Governo produzir uma norma como a do art. 678.º, n.º 5, do CPC com o
sentido de alterar (revogar) o regime em vigor para o despejo, reduzindo a
viabilidade de recurso para a 2.ª instância apenas à matéria do arrendamento
habitacional; neste sentido, cf. ARAGÃ0 SEIA (1)
§ 4.º: Acrescente-se apenas que o sentido hermenêutico extraído das Leis de
Autorização Legislativa parece ter sido bem entendido pelo Legislador ordinário;
com efeito, no Preâmbulo do DL n.º 180/96, de 25 de Setembro (2) (cf. § 45 do
respectivo texto), pode ler-se:
«No que se refere aos recursos, estabelece-se — em complemento e estrito
paralelismo com o regime instituído em sede de arrendamento urbano, quanto à
accão de despejo — que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é
sempre admissível recurso para a Relação nas acções em que se aprecie a validade
ou a subsistência de contratos de arrendamento para habitação (n.º 5 do artigo
678.º)».
§ 5.º: Não terá pretendido o Governo deixar de precisar o sentido e alcance com
que inseria a novidade de alargar o regime da admissão da dupla jurisdição em
matéria de arrendamento para habitação, a todas as matérias em que se suscitasse
a sua discussão em acções outras que não as de mero despejo, como, adiante
veremos, igualmente esse Venerando Tribunal Constitucional deixou já igualmente
consignado na fundamentação de um aresto que abordou também esta questão.
Em segundo lugar:
Será seguramente por estarmos eventualmente cegos perante a evidência da
necessidade de escalpelizar a questão da revogação tácita, como fundamento da
inconstitucionalidade apontada, que insistimos na pertinência do recurso
interposto.
Mas tanto se verifica pela sincera convicção dos seguintes raciocínios:
§ l.º: Não é a avaliação da interpretação e aplicação jurídica operada pelo
Acórdão do TRL sobre o direito infraconstitucional que é colocada em crise pelos
ora reclamantes, mas antes se a norma em causa, assim interpretada e aplicada,
se situa em oposição aos princípios ou preceitos da Constituição.
§ 2.º: E, sempre com respeito por opinião contrária, o art. 678.º, n.º 5, do
CPC, no sentido que lhe foi dado pelo Acórdão do TRL, não pode conviver com
outra norma que, estando em vigor, permite expressamente o acesso a uma
instância de apreciação de uma acção de despejo não habitacional (será o caso do
art. 57.º, nº 1, do RAU, para o caso concreto dos autos, como será também o caso
do art. 35.º, n.º 3, do Regime do Arrendamento Rural se, em abstracto, a acção
de despejo versasse sobre essa matéria), sob pena de aquela opção normativa,
assim interpretada e aplicada, violar preceitos constitucionais (direito à
igualdade tal como o acesso ao Direito e aos Tribunais), garantidos por outra
norma em vigor no ordenamento jurídico infraconstitucional;
§ 3.º Seguindo o raciocínio exposto na jurisprudência citada na douta decisão
reclamada: se nada, em termos Constitucionais, obriga o legislador ordinário a
garantir perante o mecanismo das alçadas um regime de dupla jurisdição às acções
cujos valores se encontram aquém dos respectivos limites, também nada impede que
o legislador ordinário trace regimes especiais (excepcionais) onde aqueles
mecanismos, por razões meramente formais (valor anual de uma renda) ou outras de
projecção constitucional, justifiquem uma especial protecção de bens
juridicamente relevantes (seja a protecção da habitação; seja a da iniciativa
privada, seja o do livre desenvolvimento da personalidade .etc.)
Concretizando:
§ 4.º: Uma vez que se conclua estar em vigor (ao tempo) o preceituado no art.
57.º, n.º 1, do RAU, a decisão que interprete a aplique o teor do n.º 5 do art.
678.º do CPC, no sentido da restrição da viabilidade do recurso em matéria de
despejo não habitacional, ofende — ao menos — a norma Constitucional de garantia
do acesso ao Direito e aos Tribunais, prevista no seu art. 20,º, estribada que
está a sua esfera de protecção naquela norma do RAU, quando em vigor e,
consequentemente, invocada e aplicável.
A segunda norma (aqui sob o foco da análise requerida) impede injustificadamente
o que a primeira permite em matéria para a qual esta é competente e aquela não.
§ 5.º: E esta premissa do silogismo fundamentante do recurso apresentado não
mereceu — mas, com o devido respeito, merece a atenção da douta decisão ora
reclamada.
§ 6.º: Da matéria sobre a verificação da revogação entre os preceitos citados —
entre outra jurisprudência e doutrina maioritárias: cf. Ac. STJ, de 5/11/1998,
Acórdãos de cada uma das Relações; ARAGÃO SEIA; PAIS DE SOUSA; RODRIGUES BASTOS;
LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES: TEIXEIRA DE SOUSA; AMÂNCIO FERREIRA;
PINTO FURTADO — tratou já esse Venerado Tribunal Constitucional em Acórdão em
que se pronunciou sobre a inconstitucionalidade material, então arguida sobre a
«...norma do n.º 5 do art. 687.º do Código de Processo Civil, entendida no
sentido de que não revogou tacitamente o n.º 1 do art. 57,º do RAU, por violação
do princípio da igualdade.», cf. Ac. n.º 77/2001 (Proc. n.º 415/2000 — 2.
Secção), in DR, II Série, 26/03, pp. 5353 e ss.).
§ 7.º: E se bem que a citação apenas seja aqui invocável no reduto próprio da
questão da revogação, pressupondo a premissa anterior exposta, não deixamos de
transcrever o seguinte excerto (Cf. DR cit. p. 5356, col. dt.ª):
«E se, como acima se referiu, o recurso previsto no art. 678.º, n.º 5, do Código
de Processo Civil é mais abrangente, no que ao arrendamento habitacional
respeita, que o recurso previsto no art. 57,0, n.º 1, do regime do Arrendamento
Urbano, isso só significa que, no confronto entre um recurso (o do art. 685.º,
n.º 5) e o outro (o do art. 57.º, n.º 1) o legislador quis conferir uma
acrescida garantia quando em causa estava um arrendamento habitacional...».
§ 8.º: Insistimos que, ao contrário do que se pode deduzir do teor da douta
decisão ora reclamada, não está em causa:
i) a censura concreta da decisão judicial sub judice, mas a norma colocada em
crise pela interpretação e aplicação inconstitucional do aludido e inexistente
sentido revogatório; este sim a ser forçosamente analisado;
ii) pelo menos, o fundamento de que o direito constitucional de acesso ao
Tribunais impõe ao Legislador ordinário para a acção de despejo dos autos uma
garantia permanente de acesso a mais do que um grau de jurisdição, para o qual
se esgrima, até, o regime de igualdade não acalentado pelo mecanismo das
alçadas...
iii) Ou (mais discutível, é certo) que este mecanismo, em determinadas
circunstâncias, distorça a protecção de interesses mais relevantes do que os que
resultam da sua restrição formal (em rigor: em um escritório para o exercício de
profissão liberal, um singelo processo pode significar um valor muito superior
ao do valor anual da sua renda... e a iniciativa privada possui similar respaldo
Constitucional, cf. art. 6l.º, n.º 1, tal como a liberdade de exercício
profissional corresponderá a uma manifestação do livre desenvolvimento da
personalidade...).
§ 9.º: Pelo contrário:
O que está igualmente em causa, é apurar se a excepcionalidade do regime de
acesso a segundo grau de jurisdição em matéria da cessação dos arrendamentos
(não habitacionais ou rurais, como já se exemplificou), ao menos por despejo
(como é o caso dos autos), objecto da protecção do regime do RAU, no citado art.
57.º, n.º 1, podia ser afastada sem que tal ofendesse o regime constitucional:
i) do princípio de garantia do acesso ao Direito e aos Tribunais, por outro
preceito que — tanto quanto se alcança — visa tão só alargar o regime de
protecção a outras realidades análogas em matéria de habitação
(inconstitucionalidade material);
ii) ou admitindo (por raciocínio) a revogação, que tal fosse possível sem a
prece dente autorização legislativa (inconstitucionalidade orgânica);
Mais:
§ 10.º: Se pensarmos ainda na nova redacção que a Lei n.º 6/2006, de 27/02
(NRAU), forneceu ao n.º 5 do art. 678.º do CPC, mais convictos ficamos de que o
Legislador, com o Dec-Lei n.º 180/96, de 25/09, neste aspecto concreto,
pretendia apenas retomar a protecção do valor social da habitação que o RAU
colocara em crise ao revogar expressamente o art. 980.º do Código Civil.
Pois,
§ 11.º: Com o novo regime de 2006, o alargamento do espectro da protecção dos
interesses espartilhados no mecanismo formal das alçadas abrange agora não
apenas as acções de despejo (habitacionais ou não), mas igualmente as demais
acções em que os arrendamentos (habitacionais ou não) estejam em causa,
garantindo a todos o acesso a um duplo grau de jurisdição.
§ 12.º: E face ao regime da entrada em vigor da citada Lei n.º 6/2006 (cf. art.
65.º, n.º 2), à data em que foi proferido o Acórdão do TRL, não podemos até
deixar de consignar aqui também uma última questão sobre se a admissibilidade do
recurso não ficou nesse momento garantida?
IV. Em síntese (concluindo):
l.ª Analisada cuidadosamente a douta decisão reclamada, esta dá como adquirida,
sem mais, a constitucionalidade do art. 678.º, n.º 5, do CPC segundo a
interpretação deste preceito que inviabiliza o pretendido recurso para a
instância. Mas,
2.ª Não se debruçou sobre a invocada inconstitucionalidade orgânica da Lei
habilitante da redacção dessa norma com o sentido e alcance emprestado pelo
Acórdão do TRL, aqui em causa;
3.ª Não ponderou se o art. 678.º, n.º 5, do CPC é aplicável ao caso concreto dos
autos, porquanto, não o sendo (subsistindo outras normas específicas para o
despejo em vigor) então a sua interpretação e aplicação pelo TRL veda, ao menos,
o acesso ao Direito garantido constitucionalmente”.
Cumpre decidir.
II.
Fundamentação.
3.
É o seguinte o teor da decisão reclamada:
“ (…)
Importa todavia começar por fazer notar que o presente recurso, submetido à
disciplina da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, tem uma característica
especial; o seu objecto consiste apenas em norma ou normas jurídicas, não sendo
lícito que, no seu âmbito, o Tribunal aprecie a correcção jurídica da decisão
adoptada no tribunal recorrido e da concreta aplicação do direito ao caso sub
judice.
Há, assim, que aceitar a opção adoptada na decisão recorrida quanto à escolha do
direito aplicável, que não é sindicável por este Tribunal. Isto é: a Relação de
Lisboa entendeu ser aplicável ao caso o artigo 678º n.º 5 do Código de Processo
Civil e este Tribunal não pode alterar essa decisão; o que está dentro do âmbito
do presente recurso é saber se essa norma, tal como foi aplicada, ofende a
Constituição.
A norma foi aplicada com o sentido de ser apenas admissível recurso para a
relação independentemente do valor da causa e da sucumbência, 'nas acções em que
se aprecie a validade ou a subsistência de contratos de arrendamento para
habitação', razão pela qual os processos relativos a arrendamentos não
habitacionais – como é o caso presente – a que foi atribuído valor inferior à
alçada dos tribunais de comarca não admitem recurso para a relação.
Tal normativo inscreve-se no artigo 678º do Código de Processo Civil (na
redacção resultante do Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro e do
Decreto-Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro, o primeiro editado no uso da
autorização legislativa concedida pela Lei n.º 28/96 de 2 de Agosto e nos termos
das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição, e o segundo no uso
da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 28/96 de 2 de Agosto e nos
termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição), do seguinte
teor:
Artigo 678.º
Decisões que admitem recurso
1 - Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do
tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis
para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal; em
caso, porém, de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atender-se-á
somente ao valor da causa.
2 - Mas se tiver por fundamento a violação das regras de competência
internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa de caso julgado,
o recurso é sempre admissível, seja qual for o valor da causa.
3 - Também admitem sempre recurso as decisões respeitantes ao valor da causa,
dos incidentes ou dos procedimentos cautelares, com o fundamento de que o seu
valor excede a alçada do tribunal de que se recorre.
4 - É sempre admissível recurso, a processar nos termos dos artigos 732.º-A e
732.º-B, do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de
diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não
caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a
orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência já
anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
5 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível
recurso para a Relação nas acções em que se aprecie a validade ou a subsistência
de contratos de arrendamento para habitação.
6 - É sempre admissível recurso das decisões proferidas contra jurisprudência
uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Sobre a questão de saber se a Constituição impõe ao legislador ordinário que
garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para
defesa dos seus direitos, já este Tribunal tem jurisprudência firme, conforme
reconhece, por exemplo, o Acórdão nº 431/02 (www.tribunalconstitucional.pt):
“De facto, é jurisprudência firme deste Tribunal que a Constituição, maxime, o
direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta
sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa
dos seus direitos, destacando-se os Pareceres da Comissão Constitucional nºs.
8/78 (5º vol.) e 9/82 (19º vol.) e o Acórdão nº 65/88, de 23 de Março, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 653 a 670.
Mais recentemente, ilustram esse entendimento, entre muitos outros, o Acórdão nº
149/99, de 9 de Março, de que se transcreve:
«De resto e já em termos gerais, na interpretação do disposto no artigo 20º, nº
1 da C.R.P., o Tribunal Constitucional vem reiteradamente entendendo que a
Constituição não consagra um direito geral de recurso das decisões judiciais,
afora aquelas de natureza criminal condenatória e, aqui, por força do artigo
32º, nº 1 da Lei Fundamental (cfr., por todos, Acórdão nº 673/95 in DR, II
Série, de 20/3/96); e no mesmo sentido aponta a maioria da doutrina (cfr.
Ribeiro Mendes “Direito Processual Civil” AAFDL, vol. III pp. 124 e 125 e Vieira
de Andrade “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976” pp. 332
e 333)».
Também no Acórdão nº 239/97, de 12 de Março, se disse:
«A existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do
estabelecimento de alçadas (de limites de valor até ao qual um determinado
tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do
sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática,
posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da
esmagadora maioria) das acções aos diversos ‘patamares’ de recurso.
Na situação aqui em causa, do que se trata, essencialmente, é do funcionamento
da regra das alçadas: as acções que nunca chegariam ao Supremo Tribunal, e
consequentemente ao pleno, por não disporem de alçada, são subtraídas – ou dito
de outra forma, não são abrangidas – pela legitimação especial de recurso
contida no artigo 764º
Ora, sendo certo que as alçadas, bem como todos os mecanismos de ‘filtragem’ de
recursos, originam desigualdades (partes há que podem recorrer e outras não),
estas não se configuram como discriminatórias, já que todas as acções contidas
no espaço de determinada alçada são, em matéria de recurso, tratadas da mesma
forma.
Significa isto que a regra básica de igualdade, traduzida numa exigência de
tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, proibindo,
designadamente a chamada ‘discriminação intolerável’, não é afectada pelo
específico aspecto do recurso para o pleno dos acórdãos da Relação, questionado
pelo recorrente».
Por seu turno, no Acórdão nº 72/99, de 3 de Fevereiro de 1999, que acompanha
este último acabado de transcrever, destacam-se outros acórdãos demonstrativos
desta jurisprudência:
«A limitação do recurso em função das alçadas não ofende também o princípio
constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da
Constituição da República Portuguesa. Nesse sentido se tem pronunciado a
jurisprudência constante do Tribunal Constitucional. Assim, vejam-se, como mais
significativos, os acórdãos nºs 163/90 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16º vol., p. 301 ss); 210/92 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 22º vol., p. 543 ss); 340/94 e 403/94 (não publicados); 95/95
(publicado no Diário da República, II Série, nº 93, de 20.4.1995); 377/96
(publicado no Diário da República, II Série, nº 160, de 12.7.1996)»”.
Importa, assim, ter presente que o artigo 678º do Código de Processo Civil,
enquanto limita o recurso às causas de valor superior à alçada do tribunal de
que se recorre, não ofende a Constituição.
A questão que se pode colocar nos presentes autos é a de saber se a mesma
doutrina é de manter quanto ao seu n.º 5, ou seja, quando em causa está uma
acção de valor inferior à da alçada do tribunal de comarca, mas relativa a
arrendamento não habitacional, como no caso presente. Mas é bem patente que a
especial protecção de que goza o arrendamento habitacional – traduzida no
aludido n.º 5 – radica no artigo 65º da Constituição, preceito que não tem
paralelo quanto ao arrendamento não habitacional. Acha-se, nestes termos,
justificado o regime especial de que beneficia o arrendamento habitacional,
regime que não abrange o caso dos autos.
Em suma, uma vez que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador
ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de
jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos,
assistindo-lhe, no âmbito do processo civil, ampla margem de liberdade na
conformação do direito ao recurso e que a interpretação do aludido artigo 678º
nº 5 não pode qualificar-se como arbitrária, excessiva ou desprovida de
justificação objectiva, pois se inclui na regra geral aplicável a todos as
demais acções, com excepção das relativas a arrendamentos habitacionais, importa
reafirmar aqui a jurisprudência deste Tribunal acima referida, concluindo pela
não inconstitucionalidade da norma sindicada”.
Não houve resposta à reclamação.
4.
Cumpre analisá-la.
Contestam os reclamantes a decisão sumaria essencialmente por três ordens de
razões que sintetizam da seguinte forma:
'O art. 685º, n.º 5, do CPC revogou ou não o preceituado no art. 57.º, n.º 1 do
RAU? São ou não as duas normas inconciliáveis, em vista da correspondente
revogabilidade tácita? E, mesmo aceitando por necessidade de raciocínio uma
resposta afirmativa, tal revogação poderia operar-se sem violação de qualquer
preceito constitucional?'
Impõe-se começar por reafirmar que, apesar da relevância que a questão assume no
caso em presença, não cabe ao Tribunal Constitucional esclarecer se o artigo
685º n.º 5 do Código de Processo Civil revogou, ou não revogou, o preceituado no
artigo 57º n.º 1 do RAU.
Conforme se afirmou na decisão sumária ora em reclamação – e tal afirmação é
inteiramente de manter –, não cabe a este Tribunal a tarefa de sindicar as
decisões jurisdicionais propriamente ditas, o que inevitavelmente aconteceria se
pretendesse determinar, no caso presente, qual das duas normas em confronto, de
direito infraconstitucional, deveria ser aplicada na resolução concreta do caso.
É o que resulta do disposto no artigo 70º n.º 1 alínea b) e n.º 1 do artigo
75º-A, ambos da LTC, conforme tem sido pacificamente entendido pela
jurisprudência do Tribunal.
Questão diversa consiste em saber se tal revogação determinou a violação de
preceito constitucional, tal como pretendem os recorrentes ora reclamantes.
Decidiu a Relação de Lisboa no seu acórdão que a norma do artigo 57º do RAU foi
substituída pela constante do artigo 685º n.º 5 do Código de Processo Civil,
regra esta que aplicou ao caso; entendeu, portanto, que só será sempre
admissível recurso para a Relação, independentemente do valor da causa e da
sucumbência, nas acções em que se aprecie a validade ou a subsistência de
contratos de arrendamento para habitação.
Dois problemas de constitucionalidade, no entanto, se podem colocar: o primeiro,
de natureza material, consiste em saber se é constitucionalmente admissível
distinguir os casos de arrendamento habitacional dos demais casos de
arrendamento, fazendo incluir estes na regra geral de alçada para efeito de
recurso, e conferindo àqueles a já referida garantia de recurso,
independentemente do valor da causa e da sucumbência.
A esta questão, a decisão sumária reclamada respondeu no sentido da não
desconformidade constitucional da norma, sufragando-se na jurisprudência do
Tribunal quanto à liberdade de conformação do legislador ordinário em matéria de
recursos de decisões não penais.
E também quanto a esta decisão nada há a censurar pois, conforme abundantemente
se explicou na decisão em análise, não ocorre aqui violação intolerável do
direito de acesso aos tribunais.
Mas uma outra questão surge suscitada no presente recurso, e também atinente à
desconformidade constitucional da mesma norma aplicada pela Relação de Lisboa na
decisão recorrida.
É a seguinte: uma vez que o regime geral do arrendamento rural e urbano
constitui matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia de República, por força do disposto no artigo 165º n.º 1 alínea h) da
Constituição, e que a alteração do artigo 678º do Código de Processo Civil, que
(tal como aceita a Relação) modificou o regime de recursos quanto ao
arrendamento não habitacional decorreu através de diploma governamental –
Decreto-Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro – não antecedido da específica
autorização legislativa para alterar o dito regime de arrendamento, pese embora
aprovado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 28/96 de 2
de Agosto, estar-se-ia em presença de um caso de inconstitucionalidade orgânica.
Aliás, esta questão foi, com estes contornos, adequadamente suscitada perante o
Tribunal recorrido.
Ora, sobre o assunto a decisão sumária em reclamação nada diz. Importa, por
isso, reconhecer que não tendo havido resposta a esta matéria, que concretiza
questão que não pode ser tida como simples, para os efeitos do artigo 78º-A da
LTC, nem manifestamente infundada, haverá que fazer seguir – restrito a esta
questão – o recurso para julgamento.
III.
Decisão.
5.
Nestes termos, e sem necessidade de outras considerações, decide-se revogar
parcialmente, nos termos sobreditos, a decisão sumária em reclamação,
ordenando-se a notificação das partes para apresentarem, em 30 dias, as suas
alegações quanto à questão que constitui o objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 14 de Novembro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos