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Processo n.º 848/06
Plenário
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Requerente e objecto do pedido.
O Procurador-Geral da República vem, nos termos do disposto nos artigos 281.º,
n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa,
51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e 12.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto
do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, requerer ao
Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força obrigatória geral,
da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 11, do número 10.º da
Portaria n.º 1391/2002, de 25 de Outubro.
A norma em causa, cuja epígrafe é “Taxas pela concessão de zonas de caça”,
dispõe nos seguintes termos:
Número 10.º, 11:
Sempre que o pagamento das taxas tenha lugar fora dos prazos referidos no nº 1,
o valor das mesmas é agravado em 10% por cada mês ou fracção, até o pagamento
ser efectivado.
2. Fundamentos do pedido
Para fundamentar o seu pedido, o Procurador-Geral da República alegou o
seguinte:
– A norma a que se reporta o pedido em apreço – incluída no diploma regulamentar
acima assinalado – estabelece que “a falta de pagamento pontual das taxas
devidas pela concessão e manutenção das zonas de caça implica que o valor das
mesmas seja agravado em 10% por cada mês ou fracção, até o pagamento ser
efectuado”. Ao fazê-lo, agrava substancialmente a “responsabilidade patrimonial
do devedor, visando alcançar um ressarcimento acrescido para a mora,
relativamente ao que decorreria da aplicação do regime geral referente ao
vencimento e cômputo dos juros de mora, no caso de incumprimento de débitos ao
Estado e demais entidades públicas”.
Efectivamente, partindo da conjugação do artigo 44.º da Lei Geral Tributária,
aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro (doravante LGT), com os
artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março (que estabelece o
regime jurídico dos juros de mora por dívidas ao Estado), resulta “que a taxa de
juros moratórios seria de 1% ao mês.”
– O agravamento do valor da taxa estabelecido pelo diploma regulamentar em
análise foi “determinado exclusivamente em função da mora do devedor”, pelo que
“o valor da própria taxa devida pela concessão e manutenção das zonas de caça”
passa a resultar “não apenas da ponderação da área total da zona de caça
concessionada (...), mas também do âmbito temporal da mora do devedor, com
directa incidência na determinação do montante da taxa devida”. Assim sendo,
“não pode considerar‑se como enquadrável na figura jurídico-constitucional de
«taxa» o segmento ou parcela de débito, na parte em que visa tão-somente
ressarcir a Administração pelas consequências da mora no pagamento do valor da
taxa originariamente devida”. Isto porque, um dos elementos caracterizadores da
figura tributária das taxas é a sua estrutura bilateral, devidamente assinalada
pela doutrina, a qual implica que “o pagamento de uma qualquer taxa tem
necessariamente como contrapartida os custos globais da actividade
administrativa – consubstanciados, no caso, na fiscalização subjacente à
concessão ou manutenção de uma zona de caça – bem como a utilidade daquela
contraprestação para o respectivo beneficiário”. Ora, “a problemática do
ressarcimento da Administração Pública pelos danos associados à mora do devedor
no pagamento da quantia pecuniária devida a título de taxa extravasa totalmente
aquele plano de «cobertura de custos» de uma actividade administrativa e do
«valor de utilidade» alcançável pelo respectivo beneficiário, não se destinando
a satisfazer nenhuma das finalidades típicas que a Lei Geral Tributária assinala
às taxas no nº 2 do respectivo artigo 4º.”
– Além disso, “não se vislumbra fundamento material bastante para tão drástico
agravamento da responsabilidade patrimonial do devedor em mora, no âmbito de uma
determinada e peculiar taxa” A medida adoptada pelo diploma regulamentar em
apreço, manifestamente agravadora da taxa de juros de mora, configura-se como
violadora do “princípio constitucional da proporcionalidade, no que toca à
determinação do seu valor.”
– A disciplina relativa aos efeitos da mora do devedor constitui matéria de lei,
não podendo “um diploma de índole regulamentar (...) legitimamente inovar” neste
domínio. No que se refere à fixação das taxas de juros de mora, vale o princípio
“da primariedade ou precedência da lei sobre o regulamento, decorrente do artigo
112º da Constituição.”
3. A resposta do órgão autor da norma:
Notificado do pedido, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional – doravante, LTC), vem o Secretário de
Estado do Desenvolvimento Rural e das Florestas responder, invocando os
seguintes argumentos:
– O número 10.º, n.º 1, da Portaria n.º 1391/2002, de 25 de Outubro, estipula
que “«pela concessão e manutenção de ZCA e ZCT é devido o pagamento de uma taxa
anual, a efectuar no período de Janeiro a Maio»”;
– “A falta de pagamento da taxa no período acima referido tem como única
consequência directa a suspensão da actividade cinegética, podendo, no entanto,
a entidade gestora da ZC fazer cessar esta suspensão a qualquer momento, desde
que, no prazo de 90 dias, efectue o pagamento da taxa anual em falta, suportando
o consequente agravamento”;
“Tal significa que o pagamento da taxa anual no período compreendido entre Junho
a Dezembro do ano a que respeita implica o respectivo agravamento”;
– Um tal agravamento poderá ser determinado pelo Governo, o qual, “ «nos termos
do artigo 156º, nºs 1, al. a), e 2, do Decreto-Lei nº 227-B/2000, de 15 de
Setembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 338/2001, de 26 de Dezembro»”,
podendo “«fixar os valores das taxas devidas pela concessão de zonas de caça
dentro dos parâmetros estabelecidos na lei [vd. alíneas n) e o) do artigo 38º da
Lei nº 173/99, de 21 de Setembro], nada obsta a que o faça, como fez, fazendo
variar o seu valor consoante o momento em que o pagamento tenha lugar»”;
– A “taxa de juro” em questão “foi assim estabelecida ao abrigo da faculdade de
fixação da taxa legalmente conferida ao abrigo dos diplomas acima referidos”.
4. Elaborado o memorando a que alude o artigo 63.º, n.º 1 da Lei do Tribunal
Constitucional e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir nos termos do
artigo 65.º.
II – Fundamentação
a) Questão Prévia
5. A Portaria n.º 1391/2002, de onde consta a norma impugnada, foi expressamente
revogada pelo número 11.º da Portaria n.º 431/2006, de 3 de Maio. Por força do
princípio do pedido, consagrado no artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal
Constitucional e de acordo ainda com a jurisprudência reiterada do Tribunal
Constitucional, não pode operar-se a convolação do objecto do processo – o
mencionado n.º 11 do número 10.º – nas normas do diploma revogador que tenham um
conteúdo normativo correspondente ou semelhante ao da norma que constitui
objecto do presente controlo da constitucionalidade (cfr. Acórdãos nºs 57/95,
140/2000, 404/2003 e 19/2007 publicados, respectivamente, em Diário da
República, II Série, a 12 de Abril, 26 de Outubro, 20 de Novembro e 14 de
Fevereiro, e 531/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Não pode, deste modo, o Tribunal Constitucional apreciar idêntica norma contida
no número 8.º, 9, da Portaria n.º 431/2006.
Todavia, o facto de a norma em causa ter sido revogada não é suficiente para se
concluir de imediato pela inutilidade do pedido.
No que se refere aos efeitos temporais das declarações de inconstitucionalidade
proferidas em sede de fiscalização abstracta sucessiva rege o artigo 282.º, n.º
1, da Constituição, o qual estabelece, como regra, os efeitos retroactivos (ex
tunc) deste tipo de decisões, ou seja, os efeitos da decisão do Tribunal
Constitucional retroagem à data da entrada em vigor da norma que agora se
pretende declarar inconstitucional.
Já a revogação de uma norma tem, em princípio, eficácia prospectiva (ex nunc) –
eficácia para o futuro –, pelo que os efeitos que produziu enquanto esteve em
vigor não serão eliminados da ordem jurídica.
Dito isto, resulta claro que pode haver interesse ou utilidade na eliminação dos
efeitos produzidos pela norma revogada enquanto esteve em vigor. Isso mesmo foi
já por diversas vezes afirmado pelo Tribunal Constitucional, o qual sustenta que
se mantém o interesse numa declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral “desde que tal se mostre indispensável para corrigir ou
eliminar efeitos por elas entretanto produzidos durante o período da respectiva
vigência” (ver Acórdão nº 19/2007, já citado, e ainda, os Acórdãos nºs 497/97,
publicado em Diário da República, II Série, a 10 de Outubro, 531/2000, já
citado, 32/2002, publicado em Diário da República, II Série, a 18 de Fevereiro,
404/2003, já citado, e 76/2004, publicado em Diário da República, II Série, a 06
de Março).
Haverá, então, e antes de mais, que averiguar se existe interesse ou utilidade
no conhecimento do mérito do pedido de fiscalização abstracta sucessiva da
inconstitucionalidade da norma em apreciação, entretanto, como se viu, revogada.
6. Na esteira do que tem sido a jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal
Constitucional relativamente ao conhecimento de pedidos de fiscalização que
tenham por objecto normas já revogadas, a declaração com força obrigatória e
geral das mesmas só se justificará quando for evidente a sua indispensabilidade.
Mais concretamente, pode retirar-se do Acórdão n.º 497/97, citado, os termos em
que o conhecimento de um pedido de fiscalização de normas revogadas se afigura
pertinente:
Com efeito, pode haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos pela
norma revogada no período da sua vigência. De acordo com a jurisprudência,
reiterada e uniforme, deste Tribunal, face à revogação de uma norma, manter-se-á
o interesse na declaração da sua eventual inconstitucionalidade ‘toda a vez que
ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo
questionado, durante o tempo em que vigorou’ e essa indispensabilidade seja
evidente, por se tratar da eliminação de efeitos produzidos constitucionalmente
relevantes (por todos, citem-se os Acórdãos nºs 804/93, 806/93, 186/94 e 57/95,
publicados no Diário da República, II Série, de 31 de Março, 29 de Janeiro, 14
de Maio de 1994 e 12 de Abril de 1995, respectivamente).”
Já, porém, não existe – neste modo de ver – interesse jurídico relevante no
conhecimento de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, de uma norma entretanto revogada, naqueles casos em que não
se vislumbre nele qualquer alcance prático, atendendo à circunstância de o
Tribunal, a declarar eventualmente a inconstitucionalidade, não dever deixar de,
por razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional
relevo, limitar os seus efeitos, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da
Constituição, de modo a deixar incólumes os efeitos produzidos pela norma antes
da sua revogação. Em tais situações, como vem entendendo este Tribunal (e
acompanhamos de perto o citado Acórdão n.º 57/95), “em que é visível a priori
que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido
útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir,
bem se justifica que conclua, desde logo, pela inutilidade superveniente de uma
decisão de mérito”.
Para além disso, como se afirmou, nomeadamente no Acórdão n.º 413/2000,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt, não existe, do mesmo modo:
“um interesse jurídico relevante – um interesse prático apreciável – no
conhecimento do pedido, por exemplo, quando os meios concretos de defesa postos
à disposição dos interessados são suficientes para acautelar os seus direitos ou
interesses, impedindo a aplicação da norma inconstitucional”.
7. In casu, poder-se-ia admitir a existência de um interesse suficientemente
relevante no conhecimento do mérito do pedido de controlo, em sede de
fiscalização abstracta sucessiva, “se acaso se soubesse da pendência de um
número elevado de processos em que esta questão tivesse sido suscitada e fosse
decisiva para o respectivo desfecho” (cfr. Acórdão n.º 32/2002, já citado). Não
é este manifestamente o caso. Efectivamente, apesar do número significativo de
situações em que foi aplicada a norma objecto de controlo, a verdade é que,
segundo informações prestadas, essa aplicação não gerou grande litigiosidade,
apenas se tendo verificado um caso de contestação judicial.
E, de todo o modo, se ainda estiver pendente algum recurso contencioso em que a
questão da inconstitucionalidade da norma a que se reportam estes autos seja
decisiva, sempre restará aos interessados a via da fiscalização concreta (ver
Acórdãos n.ºs 531/2000, 32/2002 e 19/2007, já citados).
Se juntarmos à circunstância, acabada de demonstrar, de que uma eventual
declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, seria
inteiramente desprovida de qualquer alcance prático, aquela outra de que a
fixação de efeitos retroactivos (ex tunc) no caso em análise iria acarretar a
realização de inúmeras e custosas operações de natureza administrativa e
burocrática, certamente com acentuada repercussão a nível orçamental, forçoso é
admitir que o caso dos autos consubstancia uma daquelas situações em que é
previsível que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de alcance
prático a declaração de inconstitucionalidade que porventura viesse a proferir,
fixando, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, efeitos temporais
mais restritos (efeitos prospectivos ou ex nunc em vez dos efeitos
retroactivos). A limitação dos efeitos temporais seria justificada, ainda à luz
daquela disposição, pela existência de um interesse público de excepcional
relevância. Assim sendo, o prosseguimento do presente processo revelar-se-ia
desproporcionado.
8. Face ao exposto, há que concluir pela inexistência de interesse jurídico
relevante e a consequente inutilidade superveniente no conhecimento do mérito do
pedido.
III – Decisão
Pelos fundamentos expendidos, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma constante do n.º 11, do número 10.º da Portaria n.º
1391/2002, de 25 de Outubro de 2002.
Lisboa, 9 de Outubro de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos