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Processo n.º 37/2011
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional :
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e outro, foi o recorrente, por sentença do Tribunal Judicial de Monção, condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, a uma pena de seis meses de prisão, suspensa pelo período de dezoito meses, subordinada à condição de proceder ao pagamento à segurança social das quantias em dívida, acrescidas de juros de mora. Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, no essencial, confirmou a decisão. Interpôs então recurso para o STJ alegando, para o que ora releva, o seguinte:
“1 - O presente recurso para o STJ tem, na sua essência, o facto de, em primeiro grau de jurisdição, o Tribunal da Relação de Guimarães ter apreciado, ainda que desfavoravelmente para o recorrente, a questão da descriminalização da conduta do recorrente face à nova redacção introduzida ao art. 105 do RGIT, pela Lei 64-A/2008, de 31.12.2008.
2 - Destarte, compete a esse alto tribunal apreciar em recurso a decisão do tribunal da Relação, assim assegurando o cumprimento do segundo grau de jurisdição tal qual configurado do art. 32ª da CRP e também positivado no artigo 432.º, n. ° 1, alínea a) do CPP.[...]”
E, em resposta ao parecer do Ministério Público junto daquele Tribunal, afirmou que:
“Não admitir, como defende o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto junto desse STJ, ser o presente recurso susceptível de ser apreciado por esse Alto Tribunal, em segunda instância, relativamente à matéria da descriminalização ou não decorrente da Lei 64-A/2008, de 31.12, é negar o duplo grau de jurisdição e, consequentemente, seguir um entendimento contrário ao art. 32.º, n.º 1 da CRP, facto que consubstancia uma inconstitucionalidade material que desde já vai invocada.
Ademais, por amor à verdade se diga, é o próprio CPP que prevê esta possibilidade no art. 432.º n.º 1 alínea a).
Pelo que outro qualquer entendimento distinto do aqui exposto padecerá sempre inconstitucionalidade nos termos já referidos. [...]”
2. O STJ, entendendo que a rejeição do recurso por inadmissível “é imposta pelo art.º 400.º, n.º 1 alínea e) do Código de Processo Penal, assumindo o entendimento que a pena aplicada não é uma pena privativa de liberdade” e que tal conclusão não é infirmada pelo artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, uma vez que a admissibilidade do recurso se afere em relação à decisão e não à sua fundamentação, rejeitou o recurso.
3. Desta decisão, interpôs o recorrente recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dizendo o seguinte:
“Das questões a conhecer no presente recurso (art.º 75-A, n.° 2 da LTC):
A): Em primeiro lugar, e como questão principal que se submete à apreciação do Tribunal Constitucional deverá dizer-se que, salvo o devido respeito, o recorrente considera que o entendimento perfilhado na decisão agora posta em crise – segundo o qual “a pena aplicada não é uma pena privativa de liberdade, igualmente é exacto que tal conclusão não é infirmada pelo art. 432.º, n.°1 alínea a) – do CPP – uma vez que a admissibilidade do recurso se afere em relação (à) á decisão e não em relação (à) á sua fundamentação” e que conclui pela “rejeição do conhecimento do recurso pelo STJ nos termos do art.º 400.º , n° 1, alínea e) do CPP” – viola o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente consagradas, no que tange ao duplo grau de jurisdição em matéria penal, tal como vem plasmando no art.º 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP). [...]
A primeira questão constitucional que se coloca é a de saber se, quando um Tribunal da Relação aprecia “ex novo” uma matéria de direito que, por via de uma alteração legislativa ocorrida na pendência dos autos naquela instância, tal decisão da Relação pode e deve ser apreciada por um tribunal superior, neste caso STJ, de forma a garantir o duplo grau de jurisdição nessa matéria particular, assim cumprindo o artigo 32.º, n.° 1 da CRP, Art° 432 - 1 a) do CPP e art. 32.º, 1.° da CRP. [...]
B): A segunda questão constitucional a apreciar é a de saber se o STJ deve, ou não, conhecer em recurso, um Acórdão da Relação no que tange a uma questão de direito introduzida no caso por força de uma alteração legislativa operada na pendência dos autos na Relação.[...]
Concluindo dizer que, o entendimento seguido no acórdão de que agora se recorre, segundo o qual nos termos do art. 400.º, 1 e) do CPP não cabe recurso para o STJ, de decisões proferidas em recurso pela Relação, quando a pena de prisão efectiva fique suspensa desde que cumprida a condição do pagamento num determinado prazo (4 meses) de uma quantia (avultada) acrescida de juros vencidos e vincendos à segurança social, já que esta pena não é privativa de liberdade e que, por conseguinte, mesmo que o Tribunal de Relação aprecie judicialmente por primeira vez (em primeira instância), por força de uma alteração legislativa, a aplicação ao caso em concreto de uma nova redacção da lei, eventualmente descriminalizadora, também não cabe recurso para o STJ nos termos do art. 432.º, 1 a) do CPP já que a admissibilidade do recurso se afere à sua decisão e não em relação à sua fundamentação, viola os princípios e garantias constitucionais plasmados nos artigos 13.º e 32.º da CRP, designadamente o princípio da igualdade e a garantia constitucional do segundo grau de jurisdição, em matéria criminal, mormente aquela que aprecia a eventual descriminalização da conduta do arguido aqui recorrente
Estas questões, de índole constitucional, foram suscitadas suficientemente e de forma explicita pelo aqui recorrente na segunda parte da resposta que, o aqui recorrente, ofereceu nos termos do art. 417º, n. ° 2 do CPP, junto do STJ, face ao parecer do Exmo. Senhor Procurador da Republica junto daquele tribunal.
Sem prescindir, e por mera cautela caso as questões supra indicadas não mereça vencimento, dizer que:
C): [...]
D): [...]”
4. Na sequência, foi proferida pelo relator, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, decisão sumária de não conhecimento do recurso. É o seguinte, na parte agora relevante, o respectivo teor:
“[...] Cumpre, antes de mais, decidir se se pode conhecer do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cf. art. 76º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional – LTC).
Nos termos do artigo 72.º, nº 2, da LTC, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70.º dessa Lei – o interposto pelo ora recorrente - respeita à constitucionalidade de normas aplicadas na decisão recorrida e só pode ser interposto “pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade […] de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida […]”. Quer isto dizer, em síntese, que a admissibilidade do recurso ali previsto depende de se tratar de uma questão de constitucionalidade normativa respeitante a uma norma aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida e de o recorrente ter confrontado o tribunal a quo, antes de ter sido proferida essa decisão, com a questão da inconstitucionalidade da norma – ou, se for o caso, da interpretação normativa – que, nos termos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pretende ver apreciada. Ora, nos presentes autos, é manifesto que tal se não verifica, como sumariamente se demonstrará já de seguida.
4.1. A decisão recorrida tem como ratio decidendi a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, pelo que apenas esta norma pode constituir objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade interposto do acórdão ora recorrido. O que, desde logo afasta a possibilidade de conhecimento das questões enunciadas, “por mera cautela” nos pontos C. e D. do requerimento de interposição do recurso.
4.2. Em relação à alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, utilizada como ratio decidendi do acórdão recorrido, acontece, porém, que basta ler o requerimento de interposição do recurso supra transcrito na parte que ora releva, para verificar que nenhuma questão de constitucionalidade normativa é colocada pelo recorrente. De facto, o que claramente ressalta desse requerimento é que o recorrente considera inconstitucional a própria decisão recorrida que entendeu não ser admissível o recurso. Mas assim sendo, é manifesto que também se não pode conhecer do recurso quanto a esta matéria, já que é jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo 280.º da Constituição e no artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões.
4.3. Mas, ainda que assim se não entendesse, o facto é que nunca poderia este Tribunal conhecer do recurso. Com efeito, conforme resulta dos autos e se pode verificar das transcrições supra efectuadas, o recorrente, ao contrário do que afirma, nunca colocou, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, como exige o n.º 2 do artigo 72.° da LTC, qualquer questão de constitucionalidade normativa respeitante à alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal. Tanto basta, igualmente, para que, se não possa conhecer do recurso interposto.
Há, assim, que concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso.”
5. Inconformado, o recorrente reclama para a conferência, dizendo, nomeadamente:
“[...] Salvo o devido respeito, diga-se, relativamente às conclusões da Douta decisão sumária de que se reclama para a conferência, ainda que sob pena de sermos repetitivos, que a ratio decidendi do STJ não é a aplicação da alínea e) do nº 1 do art. 400.º do CPP “tout court”, mas sim o entendimento segundo o qual o art. 432.º, n.º 1 alínea a) do CPP, em situações de aplicação de penas não privativas de liberdade, não afasta a aplicação da norma contida no art. 400.º, n.º 1 alínea e) do CPP, obstando o conhecimento do recurso.
Ora, tal como o aqui reclamante pensa ter expressado, já no recurso para o STJ, o aqui reclamante sustentou no caso que se aprecia que o afastamento, pelo tribunal, do art. 432.º, n.º 1, a), do CPP, viola o art. 32.º, n.º1 da CRP.E não se diga que a questão não foi colocada de forma suficientemente explícita junto do STJ antes do Acórdão que lá pôs fim ao processo. Na verdade, essa questão foi expressamente colocada no recurso interposto, pelo aqui reclamante para o STJ — pág. 3 — e, ainda, na resposta oferecida pelo mesmo interveniente processual, ao abrigo do art. 417.º, n.º 2 do CPP — págs. 6 e 7. Numa palavra, o aqui reclamante sempre defendeu, junto do STJ, que a negação do duplo grau de jurisdição (direito ao recurso), relativamente ao conhecimento em primeira instância, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, da eventual descriminalização da conduta era violar o artigo 32º, n.º1 da CRP. […]
O aqui reclamante, em todas as intervenções processuais, deixou claro que o afastamento, no caso concreto do art. 432.º, n.º.1 a) do CPP, impedindo-se por essa via, o conhecimento do recurso pelo STJ era, em si mesmo, uma interpretação inconstitucional da norma em causa e, por isso, violadora do art. 32.º, n.º 1 da CRP.
Não obstante, acresce o facto de, de forma surpreendente, o tribunal “a quo” ter entendido que a pena de prisão aplicada ao aqui reclamante não era de prisão efectiva. De facto não é desde que o aqui reclamante pague, em 4 meses uma quantia de cerca de 6.500,00€ à segurança social,
E se não tiver dinheiro-
Nesta parte, a decisão recorda é uma autêntica decisão surpresa[…]
Em consequência não poderá ser exigido ao aqui reclamante que tivesse suscitado esta questão no recurso e demais requerimentos que dirigiu ao STJ. Mas, se o tribunal “a quo” assim o considera – que a pena aplicada ao aqui reclamante não é efectiva –, fá-lo de forma totalmente surpreendente, repita-se até à exaustão e insólita. Por essa sorte, não pode aquela decisão, deixar de ser objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, que por imperativos de justiça material e acesso ao direito. [...]
Por ultimo e a respeito das alíneas C) e D) do recurso interposto para esse Tribunal: [...]
Diga-se que sobre esta matéria a decisão agora reclamada se limita a dizer que o conhecimento do recurso nestas matérias (C) e D) se encontra afastada. Explique-se que a expressão utilizada no recurso, pelo recorrente aqui reclamante, por mera cautela” não tem qualquer significado que retire a tais questões a dignidade constitucional para serem conhecidas.
Na verdade, caso os pedidos formulados em A) e B) do recurso interposto procedessem, sempre seria o STJ a ter de se pronunciar sobre aquelas questões alinhadas em C) e D) e, só por isso, tal expressão foi utilizada [...]”.
6. O Ministério Público reclamado sustenta o indeferimento da reclamação, sublinhando que o STJ acolheu a tese da irrecorribilidade sustentada no Parecer do Ministério Público e que, além da norma contida no artigo 400.º, n.º.1, alínea e), do CPP, as demais, “estranhas à matéria da admissibilidade do recurso, [...] não foram – nem podiam ser, uma vez que o recurso foi rejeitado – aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. A decisão sumária reclamada decidiu não conhecer do recurso interposto por entender que, sendo a ratio decidendi da decisão recorrida a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, apenas a norma nela contida poderia ser objecto idóneo do recurso de constitucionalidade e que, no caso, nenhuma questão de constitucionalidade normativa estava colocada em relação a essa norma no requerimento de interposição do recurso; e que, ainda que assim se não entendesse, nenhuma questão de constitucionalidade normativa relativa a essa norma tinha sido suscitada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, conforme exige o n.º 2 do artigo 72. ° da LTC. A presente reclamação procura infirmar tal juízo. Sem razão, porém, como se verá já de seguida.
7.1. A reclamação, ao invocar que o problema se colocaria também ao nível do não afastamento, pelo artigo 432.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, da aplicação da norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do mesmo Código, não só não infirma, como confirma, a definição da ratio decidendi do acórdão recorrido, tal como consta da decisão sumária ora reclamada, com as consequências aí expressas. Além disso, na medida em que reitera o conteúdo do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, é susceptível das mesmas considerações que, na altura, fundamentaram a decisão sumária e que permitiram concluir que, “o que claramente ressalta desse requerimento é que o recorrente considera inconstitucional a própria decisão recorrida que entendeu não ser admissível o recurso. Mas assim sendo, é manifesto que também se não pode conhecer do recurso [...]”.
7.2. Por outro lado, a argumentação do reclamante é contraditória. Na verdade, não é logicamente possível sustentar que a questão de constitucionalidade foi suscitada e, simultaneamente, defender que se está perante uma decisão surpresa, pelo que “não poderá ser exigido ao aqui reclamante que tivesse suscitado esta questão”. Além de que decisão surpresa, para efeitos de exoneração do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, é apenas aquela hipótese, de todo em todo excepcional ou anómala, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de suscitar tal questão, por ter sido confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, não bastando que o juízo decisório não coincida com a interpretação efectuada ou pretendida pelo interessado. Sendo certo que a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, quanto à inadmissibilidade do recurso para o STJ, feita pela decisão recorrida, nada tem de surpreendente, correspondendo não só à posição sustentada no parecer do Ministério Público, mas também a outras decisões daquele Tribunal.
III. Decisão.
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades.
Lisboa, 29 de Março de 2011.- Gil Galvão – José Borges Soeiro – Rui Manuel Moura Ramos.