Imprimir acórdão
Processo n.º 1019/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. A. intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal
de Lisboa, acção administrativa especial contra a Caixa de Previdência dos
Advogados e Solicitadores (doravante CPAS), pedindo a anulação da deliberação
da Direcção da CPAS, de 17 de Março de 2005, que indeferiu o pedido do
recorrente de isenção do pagamento de contribuições, e a condenação da ré a
isentá‑lo das contribuições vencidas e vincendas, “em igualdade de
circunstâncias com o que é praticado aos restantes trabalhadores independentes
reformados e do que é feito aos advogados que têm mais de 65 anos à data da
inscrição”.
O autor aduziu, em síntese, que, tendo‑se licenciado em
Direito já depois de reformado e tendo posteriormente efectuado a inscrição na
Ordem dos Advogados, após frequência do respectivo estágio, devia ser
considerado isento do pagamento de contribuições uma vez que, ao atingir a
idade de reforma (aos 65 anos), nunca poderia ver os anos de contribuições para
a CPAS considerados na sua pensão de reforma, por falta do preenchimento do
“prazo de garantia mínimo” de 15 anos.
1.2. Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de
Lisboa, de 4 de Setembro de 2006, foi a acção julgada improcedente e a ré
absolvida do pedido, com a seguinte fundamentação jurídica:
“Na análise da presente situação, que se entende linear, importa ter
presente o seguinte quadro normativo, constante do Regulamento da Caixa de
Previdência dos Advogados e Solicitadores (RCPAS):
«Artigo 1.º
(Natureza e regime aplicável)
1 – A Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores é uma
instituição de previdência reconhecida pela Lei n.º 2115, de 18 de Junho de
1962, e pertence à 2.ª categoria prevista no n.º 3 da base III da mesma lei.
2 – A Caixa rege‑se pelo presente diploma e, na parte em que este
for omisso, pelas disposições em vigor do Decreto n.º 46 548, de 23 de Setembro
de 1965, e demais legislação aplicável às caixas de reforma ou de previdência.
Artigo 5.º
(Inscrições ordinárias)
1 – São inscritos obrigatoriamente como beneficiários ordinários todos os
advogados inscritos na Ordem dos Advogados e todos os solicitadores inscritos na
Câmara dos Solicitadores, desde que não tenham mais de 60 anos de idade à data
da inscrição.
Artigo 72.º
(Contribuições dos beneficiários ordinários)
1 – Os beneficiários pagarão até ao último dia de cada mês
contribuições calculadas pela aplicação da taxa de 17% a uma remuneração
convencional, escolhida pelo beneficiário de entre os seguintes escalões
indexados à remuneração mínima mensal mais elevada garantida por lei:
(…)
Artigo 8.º
(Princípio da cumulação de inscrições obrigatórias)
1 – A obrigatoriedade de inscrição na Caixa dos Advogados e
Solicitadores mantém‑se nos casos de vinculação simultânea a outro regime de
inscrição obrigatória, desde que resulte do exercício cumulativo de actividades
que determinem uma e outra inscrição.
2 – A cumulação de actividades determina a inscrição para cada uma
delas, mantendo‑se as respectivas situações autonomizadas quando correspondam a
diferentes regimes de incidência contributiva.
Artigo 111.º
(Cumulação de benefícios)
Os benefícios referidos neste diploma serão acumuláveis com os
recebidos de outros regimes de segurança social pelos quais os advogados e
solicitadores estejam abrangidos.»
Por outro lado, importa também ter presente o disposto no artigo
13.º do Decreto‑Lei n.º 328/93, de 25 de Setembro, que procedeu à revisão do
regime de segurança social dos trabalhadores independentes:
«Exclusão do regime
Artigo 13.º
Advogados e solicitadores
Os advogados e solicitadores que, em função do exercício de
actividade profissional, estejam integrados obrigatoriamente no âmbito pessoal
da respectiva caixa de previdência, mesmo quando a actividade em causa seja
exercida na qualidade de sócios ou membros das sociedades referidas na alínea
b) do artigo 6.º, são excluídos do regime dos trabalhadores independentes.»
Bem como o disposto no artigo 126.º da Lei n.º 32/2002, de 20 de
Dezembro, que aprova as bases da segurança social:
«Artigo 126.º
Aplicação às instituições de previdência
Mantêm‑se autónomas as instituições de previdência criadas
anteriormente à entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º 549/77, de 31 de Dezembro,
com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando
subsidiariamente sujeitas às disposições da presente lei e à legislação dela
decorrente, com as necessárias adaptações.»
De regresso ao caso em apreço, estabelecido que ficou o quadro
normativo de referência, temos desde logo que a CPAS está sujeita a um regime
jurídico específico, assumindo aqui, portanto, a natureza de lei especial a
aplicar ao caso em concreto, considerando que o autor é advogado (aliás,
beneficiário da CPAS). Donde, deve esta lei prevalecer, quer no sentido da sua
aplicação – subsunção normativa –, quer no sentido de a regra interpretativa
para os casos omissos ou duvidosos dever ser encontrada dentro do quadro
normativo especial.
Ora, atento o disposto nos artigos 5.º e 72.º do RCPAS, dúvidas não
há em como o autor está sujeito ao pagamento de contribuições.
E a tal não obsta o alegado pelo autor na sua petição inicial. Com
efeito, o artigo 8.º do RCPAS, bem como os artigos 13.º do Decreto‑Lei n.º
328/93, de 25 de Setembro, e 126.° da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro,
permitem concluir pela autonomia do regime privativo de previdência aqui em
causa, sendo que o referido artigo 8.º expressa e claramente prevê a
obrigatoriedade de inscrição na Caixa dos Advogados nos casos de vinculação
simultânea a outro regime de inscrição obrigatória, desde que resulte do
exercício cumulativo de actividades que determinem uma e outra inscrição e o
artigo 111.º do RCPAS estabelece a regra da acumulação de benefícios.
Por outro lado, o RCPAS não consagra apenas o benefício do direito à
reforma, concretizado no pagamento da pensão. Prevê igualmente a atribuição de
subsídio de invalidez (artigo 27.º), subsídio por morte (artigo 34.º), subsídio
de sobrevivência (artigo 41.º), subsídio por doença (artigo 52.º) e acção de
assistência (artigo 58.º). Donde, não se estar perante sistema de capitalização,
imperando, portanto, uma regra – aliás estrutural no sistema de previdência – de
solidariedade (universo dos beneficiários, em si considerado).
Deste modo, sendo a inscrição na CPAS obrigatória, como o é para o
autor, nada há que obste ou limite o dever de pagamento das respectivas
contribuições. Não procede, pois, o alegado em 25.º a 28.º da petição inicial.
Quanto à alegada violação do princípio da igualdade, diga‑se que o
vertido no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa não consagra uma
exigência de igualdade de tratamento. O que se exige é que as medidas de
diferenciação sejam materialmente fundadas. Com efeito, a situação objecto dos
autos está, como se disse já, sujeita a um regime especial, regime especial esse
que é aplicável à globalidade dos advogados e solicitadores. Desse modo, não é
operada qualquer discriminação relativamente ao autor. Mais, tratando‑se de
situação diferente, como é o caso dos advogados, não pode aqui buscar‑se
parâmetro ou regra cuja fonte seja o regime geral da segurança social ou a dos
trabalhadores independentes. Aqui opera sim a regra constitucional da
diferenciação («tratar igual o que é igual e de modo desigual o que não é
igual»). E, como se viu, o RCPAS constitui um diploma especial, relativamente a
advogados e solicitadores, no respeitante à previdência.
Quanto ao mais, em face do que vem provado, não se vislumbra a
ocorrência de vícios de forma ou de substância que afectem a validade da
deliberação impugnada.
Tudo visto, não sendo a actuação da entidade demandada merecedora da
apontada censura jurídica que lhe vem assacada pelo autor, improcede, em
consequência, também, a condenação na prática de acto que vem pedida.”
1.3. É contra esta sentença que pelo recorrente vem
interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada “a ilegalidade e inconstitucionalidade da interpretação dada à alínea
a) do n.º 1 do artigo 13.º da Portaria n.º 487/83, de 27 de Abril, com a
redacção da Portaria n.º 884/94, de 1 de Outubro – Regulamento da Caixa de
Previdência dos Advogados e Solicitadores, na parte em que obriga os reformados
com mais de quinze anos de serviço ao prazo de garantia”, considerando violados
o artigo 34.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro – Lei de Bases
da Segurança Social –, aplicável por força da parte final do artigo 126.º do
mesmo diploma, e o artigo 63.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa
(CRP).
No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho que
determinou a apresentação de alegações, consignou que as partes deviam
pronunciar‑se, querendo, “sobre o eventual não conhecimento da questão da
ilegalidade (por pretensa violação de lei com valor reforçado) por se poder vir
a entender que essa questão não terá sido adequadamente suscitada perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida”.
O recorrente apresentou alegações, que terminam com a
formulação das seguintes conclusões:
“1 – A norma da qual se pretende aferir a legalidade e
constitucionalidade é a prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 13.º do
Regulamento da CPAS, na parte em que aplica a mesma com o sentido de que são
necessários 15 anos de inscrição, para ser reconhecido o direito à reforma,
mesmo aos advogados, já anteriormente reformados e que em consequência já
possuem esse prazo de garantia noutras caixas nacionais de previdência social.
2 – No caso de a interpretação vir a ser a que consta do artigo
34.º, n.ºs 1 e 2, da Lei de Bases de Segurança Social, aplicada por remissão do
artigo 126.º do mesmo diploma e pela parte final do artigo 1.º, n.º 2, do
Regulamento da CPAS, aliás, como prescreve o artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, do
Decreto‑Lei n.º 329/93, de 25 de Setembro, legislação decorrente da Lei de Bases
da Segurança Social e que mantém a sua redacção mesmo com as alterações que
sofreu este diploma, não haverá dúvida que a contribuição para a Caixa de
Previdência dos Advogados e Solicitadores deverá considerar‑se obrigatória na
medida em que a reforma estará sempre garantida, embora proporcional aos anos de
inscrição e calculada nos termos do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do
Regulamento da CPAS.
3 – Não sendo esta a interpretação, e salvo o devido respeito,
entende o requerente, que será aplicada norma que viola a lei com valor
reforçado, como defendido nas alegações e no processo, ou seja, o artigo 34.º,
n.ºs 1 e 2, da Lei de Bases da Segurança Social.
4 – Tendo sido assim aplicada norma cuja ilegalidade foi suscitada
no processo, de acordo com o previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea f), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Setembro, com os fundamentos na ilegalidade por violação de
lei de valor reforçado, que é a Lei de Bases da Segurança Social, nos termos do
n.º 3 do artigo 112.º da CRP.
5 – Não sendo assim entendido, o que sempre se respeita, ou seja,
com a interpretação da entidade requerida e da decisão do Tribunal a quo, que
obrigam ao prazo de 15 anos de inscrição para ser reconhecido o direito à
reforma aos advogados já com prazo de garantia noutras caixas nacionais,
cairemos, salvo o devido respeito, na situação prevista na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como foi suscitado no processo.
6 – E não se venha dizer, para contornar a inconstitucionalidade,
que o requerente se pode reformar aos 70 ou 80 anos, para ter direito à reforma,
direito que está legalmente previsto aos 65 anos, no artigo 22.º, n.º 1, do
Decreto‑Lei n.º 9/99 de 8 de Janeiro, idade aliás coincidente com a que o
requerente pretende deixar de exercer a advocacia.
7 – Efectivamente e salvo o devido respeito, em tal situação, a
norma prevista no Regulamento da CPAS, no artigo 13.º, n.º 1, alínea a), como
interpretada ou aplicada, viola o artigo 63.º, n.º 4, da CRP, na medida em que
«independentemente do sector de actividade em que foi prestado o trabalho», no
caso do requerente como advogado, o tempo de trabalho prestado, mesmo
contribuindo para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, não
conta para o cálculo da sua pensão por velhice, a qual é legalmente atingida aos
65 anos de idade.
8 – Tendo como consequência a inconstitucionalidade que se espera
venha a ser doutamente declarada por desconformidade com a Lei Fundamental, o
que sempre consome a ilegalidade da mesma norma, por desconformidade com lei
inferior, embora de valor reforçado, uma vez que esta é «[pressuposto]
normativo necessário de outras leis».”
A recorrida CPAS contra‑alegou, concluindo:
“1.ª – Não existe qualquer interpretação ilegal, na sentença
recorrida, da alínea a) do n.º 1 do artigo 13.º do Regulamento da CPAS quando
confrontada com os n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º da Lei n.º 32/2002, de 20 de
Dezembro (Lei de Bases da Segurança Social).
2.ª – Pois, a exigência constante da alínea a) do n.º 1 do artigo
13.º do Regulamento da CPAS está perfeitamente enquadrada nos termos previstos
no n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º 32/2002, já que esta, para a atribuição das
prestações sociais de reforma, obriga à inscrição num subsistema previdencial,
bem como ao decurso de um período mínimo de tempo ou situação equivalente com
contribuições pagas.
3.ª – Nada se alterando pelo facto de o recorrente ser já reformado
de outro sistema de segurança social, uma vez que o disposto no n.º 2 do artigo
34.º da Lei 32/2002 apenas faculta a possibilidade de esse período mínimo de
tempo de contribuições ser alcançado com o «recurso à totalização de períodos
contributivos ou equivalentes, registados no quadro de regimes de protecção
social...».
4.ª – Todavia, esse recurso à «totalização de períodos
contributivos» não é uma obrigação, mas uma mera faculdade concedida ao
legislador interno, como facilmente se alcança pela inclusão do termo «pode» no
referido n.º 2 do artigo 34.º da Lei n.º 32/2002.
5.ª – E, no caso concreto, não existe a possibilidade de recurso à
«totalização de períodos contributivos ou equivalentes, registados no quadro de
regimes de protecção social, nacionais...», uma vez que a CPAS mantém a sua
autonomia em relação aos outros sistemas de segurança social.
6.ª. – Pois, nos termos do artigo 126.º da referida Lei n.º 32/2002,
de 20 de Dezembro, a CPAS manteve‑se autónoma, com o seu regime jurídico
próprio e forma de gestão privativa.
7.ª – Não existindo, igualmente, qualquer interpretação
inconstitucional, dada pela sentença recorrida, à alínea a) do n.º 1 do artigo
13.º do Regulamento da CPAS quando confrontada com o artigo 63.º, n.º 4, da
Constituição da República Portuguesa, mesmo «... na parte em que obriga os
reformados com mais de quinze anos de serviço ao prazo de garantia».
8.ª – Pois o regime da CPAS não se confunde com o regime de
segurança social pelo qual o recorrente está já reformado, sendo dele
completamente autónomo.
9.ª – Assim, tendo o recorrente iniciado mais tarde o exercício da
advocacia, só mais tarde terá direito à pensão de reforma a atribuir pela CPAS,
ou seja, já depois dos 65 anos de idade.
10.ª – Uma vez que nem o regime geral de segurança social, nem o
regime da CPAS, obrigam à reforma aos 65 anos de idade, sendo antes a idade
mínima a partir da qual o beneficiário poderá aceder à reforma.
11.ª – A exigência do prazo de garantia (15 anos de inscrição),
prevista na alínea a) do n.º 1 artigo 13.º do Regulamento da CPAS, funda‑se na
necessidade de assegurar um período mínimo de contribuições tendo como
objectivo garantir a sustentabilidade do regime.
12.ª – Mas essa exigência do prazo de garantia não conflitua com o
previsto no artigo 64.º, n.º 3, da CRP.
13.ª – Dado que o artigo 63.º, n.º 4, da CRP dispõe que «todo o
tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo da pensão de
velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido
prestado».
14.ª – O que significa que, ao mesmo tempo que é assegurado que o
direito a que todo o tempo de trabalho contribua para o cálculo da pensão,
também o subordina aos «termos da lei».
15.ª – E, no presente caso, a lei aplicável é o Regulamento da CPAS.
16.ª – Ora, nos termos do Regulamento da CPAS, todo o tempo de
trabalho desenvolvido pelo recorrente como advogado contribuirá para o cálculo
da sua pensão de velhice (e invalidez) a atribuir pela CPAS, pois nos termos do
previsto no artigo 111.º do Regulamento da CPAS o recorrente poderá acumular a
sua pensão de reforma actual com a pensão de reforma a atribuir pela CPAS.
15.ª – Assim, a sentença recorrida não merece qualquer censura, uma
vez que a interpretação dada à alínea a) do n.º 1 do artigo 13.º do Regulamento
da CPAS (Portaria n.º 487/83, de 27 de Abril, com a redacção da Portaria n.º
884/94, de 1 de Outubro) não padece de qualquer ilegalidade quando confrontada
com o artigo 34.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro, nem de
qualquer inconstitucionalidade em face do artigo 63.º, n.º 4, da Constituição da
República Portuguesa.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. De acordo com o requerimento de interposição de
recurso, o recorrente pretende ver apreciada a ilegalidade (por violação do
artigo 34.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro – Lei de Bases da
Segurança Social (LBSS) –, aplicável por força da parte final do artigo 126.º do
mesmo diploma) e a inconstitucionalidade (por violação do artigo 63.º, n.º 4, da
CRP) da “interpretação dada à alínea a) do n.º 1 do artigo 13.º da Portaria n.º
487/83, de 27 de Abril, com a redacção da Portaria n.º 884/94, de 1 de Outubro –
Regulamento da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, na parte em
que obriga os reformados com mais de quinze anos de serviço ao prazo de
garantia”.
Dispõe o aludido artigo 13.º, n.º 1, alínea a), do
RCPAS, na referida redacção, que “O direito à reforma é reconhecido: a) Aos
beneficiários que tenham completado 65 anos de idade e tenham, pelo menos, 15
anos de inscrição”.
Por seu turno, o artigo 126.º da LBSS prescreve que
“Mantêm‑se autónomas as instituições de previdência criadas anteriormente à
entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º 549/77, de 31 de Dezembro, com os seus
regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente
sujeitas às disposições da presente lei e à legislação dela decorrente, com as
necessárias adaptações”. E consta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º da mesma Lei:
“1 – A atribuição das prestações depende da inscrição no subsistema
previdencial e, nas eventualidades em que seja exigido, do decurso de um
período mínimo de contribuição ou situação equivalente.
2 – O decurso do período previsto no número anterior pode ser
considerado como cumprido pelo recurso à totalização de períodos contributivos
ou equivalentes, registados no quadro de regimes de protecção social, nacionais
ou estrangeiros, nos termos previstos na lei interna ou em instrumentos
internacionais aplicáveis.”
Por último, o n.º 4 do artigo 63.º da CRP determina que
“todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das
pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em
que tiver sido prestado”.
Pareceria, à primeira vista, mais coerente com a tese
defendida pelo recorrente – no sentido de que o período de garantia de inscrição
na CPAS se considerasse já preenchido pelo cumprimento do período de garantia no
sistema pelo qual se reformou – que o pedido por ele formulado na acção de que
emerge o presente recurso consistisse na pretensão da concessão e cálculo da
nova pensão (ou recálculo da já concedida) como se esse período de garantia já
tivesse sido cumprido, e não na pretensão de isenção de pagamento de
contribuições para a CPAS, com a inerente renúncia a obter qualquer nova pensão
(ou complemento da anterior). Foi, no entanto, esta última a pretensão pela qual
o recorrente optou, o que seria susceptível de pôr em dúvida a utilidade no
conhecimento do presente recurso, por não surgir como seguro que o seu eventual
provimento, com emissão de juízo de ilegalidade e/ou inconstitucionalidade da
interpretação normativa questionada, pudesse conduzir ao provimento da acção,
isto é, ao reconhecimento da inexigibilidade das contribuições. Competirá,
porém, ao tribunal a quo, nessa hipótese, determinar as repercussões que poderá
ter para o desfecho da acção a emissão de um tal juízo, pelo que, não sendo de
afastar peremptoriamente a possibilidade de entendimento diverso por parte
desse tribunal, entende‑se não considerar, à partida, inútil o conhecimento do
presente recurso.
2.2. No despacho do relator que determinou a elaboração
das alegações, foram as partes alertadas para a eventualidade de não se conhecer
da questão de ilegalidade por não ter sido adequadamente suscitada pelo
recorrente perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Nos termos em que o recorrente a colocou, a questão de
ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado (no caso, a subordinação
às bases gerais dos regimes jurídicos por parte dos decretos‑leis que as
desenvolvam – artigo 112.º, n.º 2, da CRP), radicaria em oposição entre a
interpretação normativa do artigo 13.º, n.º 1, alínea a), do RCPAS questionada
e o comando do artigo 34.º, n.º 2, da LBSS.
Acontece, porém, que nem na petição inicial (fls. 3 a 7)
nem nas alegações (fls. 90 a 92) apresentadas perante o tribunal recorrido, o
recorrente suscitou uma questão de oposição entre uma norma constante de uma
lei de bases e uma norma constante de um diploma de desenvolvimento daquelas
bases. Sendo óbvio, face ao teor do artigo 126.º da LBSS, que se manteve em
vigor o regime jurídico específico da CPAS, o que o recorrente, em rigor,
sustenta é que, sendo este regime omisso quanto à situação dos pensionistas de
outros regimes de segurança social, deveria, por força da parte final do mesmo
artigo, considerar‑se subsidiariamente aplicável o regime do n.º 2 do artigo
34.º da LBSS, que permite que o decurso do período de garantia seja considerado
como cumprido pelo recurso à totalização de períodos contributivos ou
equivalentes anteriores. E, por isso, acusa a deliberação impugnada e a decisão
judicial ora recorrida de, ao não seguirem esse entendimento, terem violado os
citados preceitos da LBSS.
Ora, a imputação directa às decisões em causa de erro de
direito por, uma vez que não reconheceram no regime do RCPAS a alegada lacuna de
regulamentação, não terem aplicado subsidiariamente uma norma de lei de bases
que o recorrente reputava aplicável não configura uma questão de ilegalidade
normativa por violação de lei com valor reforçado, pois não se imputa qualquer
desrespeito de princípio ou regra constante de lei de bases por parte de uma
norma de diploma que lhe esteja subordinado. [Aliás, do n.º 2 do artigo 34.º da
LBSS não consta nenhum princípio imperativo a ser seguido pelos diplomas de
desenvolvimento, mas uma mera possibilidade que se lhes abre no sentido de virem
a considerar cumprido o período de garantia pelo recurso à totalização de
períodos anteriores].
Por estas razões, não se conhecerá da questão de
ilegalidade suscitada pelo recorrente.
2.3. A questão de inconstitucionalidade que cumpre
apreciar respeita a alegada violação do n.º 4 do artigo 63.º da CRP, que dispõe:
“Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das
pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que
tiver sido prestado”. Esta regra foi introduzida na revisão constitucional de
1989, como n.º 5 do artigo 63.º da CRP, tendo transitado para o n.º 4 pela
revisão constitucional de 1997.
No Acórdão n.º 366/2006, emitido em sede de fiscalização
abstracta sucessiva da constitucionalidade, foi recordada a anterior
jurisprudência do Tribunal sobre o sentido e alcance desta prescrição
constitucional, que, nos termos do Acórdão n.º 1016/96, integra “uma norma
portadora de um sentido inovador (que naturalmente não teria se se limitasse a
remeter para a lei), consubstanciado no aproveitamento integral do tempo de
trabalho para efeitos de pensões de velhice e invalidez, o que implica o direito
de acumulação dos tempos de trabalho que tenham sido prestados, mesmo que em
regimes distintos, respeitado que seja o limite máximo de 36 anos”.
Mais desenvolvidamente, o Acórdão n.º 411/99 analisou a
génese e o alcance dessa norma constitucional do artigo 63.º, n.º 4, da CRP,
concluindo que “a alteração constitucional de 1989 pretendeu, assim, promover
um aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador,
independentemente do sistema de segurança social a que ele tenha aderido, e
desde que tenha efectuado os descontos legalmente previstos”. E, quanto à
questão de saber se a remissão para a lei, constante do preceito constitucional,
conferia ao legislador credencial para introduzir restrições ao princípio do
aproveitamento total do tempo de trabalho para efeitos de cálculo das pensões de
velhice e de invalidez, ponderou‑se nesse Acórdão n.º 411/99 que “quando o texto
constitucional remete para «os termos da lei», fá‑lo para efeitos de
concretização do direito, não a título de cláusula habilitativa de restrições”,
e, por isso, “a utilização da expressão «todo o tempo de trabalho...», em
conjugação com o segmento «independentemente do sector de actividade em que
tiver sido prestado», impõe, nesta matéria, a obrigação, para o legislador
ordinário, de prever a contagem integral do tempo de serviço prestado pelo
trabalhador, sem restrições que afectem o núcleo essencial do direito”.
Também a doutrina tem assinalado que, com a introdução
do preceito constitucional em causa, se pretendeu salientar o princípio do
aproveitamento total do tempo de trabalho para efeitos de pensões de velhice e
invalidez, acumulando‑se os tempos de trabalho prestados em várias actividades
e respectivos descontos para os diversos organismos da segurança social (cf.
Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra,
2005, pp. 638‑639, e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, p. 819).
No aludido Acórdão n.º 366/2006 – que não declarou a
inconstitucionalidade, face ao artigo 63.º, n.º 4, da CRP, das normas do artigo
80.º, n.º s 1 e 2, do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º
498/72, de 9 de Dezembro, na redacção da Lei n.º 30‑C/92, de 28 de Dezembro, que
determinam que, quando o aposentado, que tenha voltado a exercer funções
públicas, findo este novo período, opte pela aposentação correspondente ao mesmo
período, não é de considerar, para cômputo da nova pensão, o tempo de serviço
anterior à primeira aposentação – ponderou‑se ainda, com especial relevância
para o presente caso, que:
“Na verdade, o princípio do aproveitamento integral do tempo de
trabalho, consagrado no artigo 63.º, n.º 4, da CRP, não foi directamente
concebido para situações que, pela sua natureza, possuem uma configuração
excepcional, em que se permite a um trabalhador aposentado voltar a exercer
funções e, no exercício destas, acumular a pensão que vinha auferindo e uma
parcela do vencimento correspondente às novas funções.
Antes com ele se pretendeu designadamente evitar, como resulta da
discussão parlamentar referida no relatório do Acórdão n.º 411/99, que, no
cômputo da pensão de aposentação que um trabalhador receba ao concluir a sua
vida laboral, existam parcelas de tempo de serviço que não sejam
contabilizadas. Trata‑se, portanto, de um princípio que não foi gizado para
situações, como a que ora se nos depara, em que é concedida ao trabalhador uma
opção que se situa à margem da lógica global do sistema e que representa
inequivocamente um plus em face dessa lógica, e sim para aquelas situações (a
que chamaríamos comuns, ou regra) em que, ao calcular a pensão de um
trabalhador no termo do seu período normal de trabalho, há que considerar
diversos sub-períodos em que aquele cotizou para distintos sistemas de pensões.
Em tal caso, o preceito constitucional em questão impede que no cômputo do tempo
de trabalho a proceder seja desconsiderado qualquer daqueles sub-períodos, assim
se realizando, para efeitos de cálculo de pensão, o aproveitamento integral do
tempo de trabalho.”
A consideração, constante do Acórdão n.º 366/2006, de
que “o princípio do aproveitamento integral do tempo de trabalho, consagrado no
artigo 63.º, n.º 4, da CRP, não foi directamente concebido para situações que,
pela sua natureza, possuem uma configuração excepcional, em que se permite a um
trabalhador aposentado voltar a exercer funções”, é reforçada, no presente
caso, pela circunstância de o regresso à actividade do trabalhador reformado
respeitar ao exercício de uma profissão liberal, dotada de um específico regime
previdencial.
Não se afigura que afronte a regra do n.º 4 do artigo
63.º da CRP a exigência de “períodos de garantia”, isto é, a exigência do
decurso de um período mínimo de contribuição ou situação equivalente para ao
interessado, inscrito no subsistema previdencial, serem atribuídas as
prestações de segurança social. Esta exigência constava do n.º 1 do artigo 34.º
da LBSS, invocado pelo recorrente, sendo esse prazo de garantia de 15 anos, no
caso de pensão de velhice do regime geral (artigo 21.º do Decreto‑Lei n.º
329/93, de 25 de Setembro), tal como o é no questionado artigo 13.º, n.º 1,
alínea a), do RCPAS, já que não se trata de uma exigência que afecte o “núcleo
essencial” do direito em causa. E, similarmente, não se considera que seja
constitucionalmente imposto pelo mesmo comando aquilo que, de acordo com o n.º 2
do citado artigo 34.º da LBSS, constitui uma mera faculdade deixada à opção do
legislador de desenvolvimento dessa lei de bases: considerar o período de
garantia cumprido pelo recurso à totalização de períodos contributivos ou
equivalentes.
Conclui‑se, assim, pela não verificação da alegada
inconstitucionalidade.
Sublinhe‑se ainda que – como, aliás, consta da sentença
recorrida – as contribuições de que o recorrente pretendia ser considerado
isento não se destinam apenas ao financiamento do pagamento das pensões de
reforma dos beneficiários da CPAS, mas também à atribuição de subsídio de
invalidez (artigo 27.º), subsídio por morte (artigo 34.º), subsídio de
sobrevivência (artigo 41.º), subsídio por doença (artigo 52.º) e acção de
assistência (artigo 58.º). E que, por outro lado, se o recorrente não pretender
continuar a exercer a profissão de advogado, antes de perfazer o período de
garantia para ter direito a uma pensão de reforma, poderá sempre requerer, a
todo o tempo, o resgate das contribuições pagas, com excepção apenas das
destinadas à acção de assistência e da percentagem afecta a despesas de
administração, deduzidas dos benefícios recebidos (artigo 10.º, n.º 3, do RCPAS,
na redacção da Portaria n.º 884/94, de 1 de Outubro).
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não conhecer da questão de ilegalidade, por alegada
violação de lei com valor reforçado;
b) Não julgar inconstitucional a norma constante do
artigo 13.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento da Caixa de Previdência dos
Advogados e Solicitadores (Portaria n.º 487/83, de 27 de Abril, com a redacção
da Portaria n.º 884/94, de 1 de Outubro), interpretada no sentido de que o
período de garantia de 15 anos de inscrição, para reconhecimento do direito à
reforma dos beneficiários que tenham completado 65 anos, se não se considera
preenchido pelo cumprimento do período de garantia em anterior sistema pelo qual
se reformaram; e, em consequência;
c) Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Outubro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos