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Processo n.º 730/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. propôs no Tribunal de Trabalho do Porto uma acção (proc. nº 139/07.1TTPRT, do
2º Juízo, 3ª sec.) contra a sua entidade patronal, B., Soc. Unipessoal,
Limitada, tendo pago uma taxa de justiça inicial no montante de € 86,40,
reduzida em virtude da Autora ter utilizado os meios electrónicos (artigos 23.º,
n.º 1, e 15.º, n.º 1, do C.C.J.).
Tendo sido designada data para a realização da audiência das partes, veio a
acção a terminar mediante transacção, que foi homologada judicialmente antes da
demandada ser sequer notificada para contestar.
As partes transigiram igualmente em matéria de custas judiciais, tendo ficado
então acordado que as custas seriam suportadas em partes iguais pelas partes.
Na elaboração da conta final de custas, em suposta observância da lei e da
sentença homologatória da transacção quanto a custas, apenas metade do valor da
taxa de justiça inicial paga pela Autora foi abatido ao valor final da taxa de
justiça por ela devida, tendo a restante metade sido abatida ao montante da taxa
de justiça final devida pela Ré.
A Autora reclamou da conta, tendo sido proferida decisão, deferindo a
reclamação, com a seguinte fundamentação:
“A autora veio reclamar da conta elaborada, pedindo que a mesma seja reformulada
por forma a que nela seja considerado o montante de € 86,40 que efectivamente
pagou a título de taxa de justiça inicial, nos termos do seu requerimento de
fls. 57 a 58 que aqui se dá por reproduzido.
O Senhor contador exarou a informação de fls. 59, referindo que os dados
introduzidos foram processados pelo programa informativo.
O Ministério Público pronunciou-se conforme consta a fls. 62.
Decidindo.
Resulta dos autos que as partes se conciliaram, tendo a autora e a ré B.
acordado que as custas seriam suportadas por ambas em partes iguais,
prescindindo de custas de parte e de procuradoria (cfr. acta de fls. 43 e 44).
Por outro lado, a autora procedeu ao pagamento do montante de € 86,40 a título
de taxa de justiça inicial (cfr. fls. 18 e 32), sendo que aquela ré nada pagou a
esse título.
Contudo, verifica-se que nas contas elaboradas a fls. 48 e 49 que cada uma das
partes pagou ao processo a quantia de € 43,20.
O art. 13º/2 do Código das Custas Judiciais prescreve que a taxa de justiça do
processo corresponde à soma das taxas de justiça inicial e subsequente pagas por
cada parte.
Por outro lado, decorre dos arts. 31º/1 e 33º/1 do mesmo Código que as taxas de
justiça pagas integram as custas de parte, significando que para delas ser
consignada, a parte terá de recorrer ao mecanismo previsto no art. 33º-A do
referido Código.
Da aplicação de tais normas ao caso em apreço resulta que a autora que pagou €
86,40, teria de pagar a quantia liquidada a fls. 48, omitindo-se metade daquele
pagamento.
Por seu lado, a ré que nada pagou, apenas teria de pagar a quantia de € 52,80
liquidada a fls. 49, como se tivesse pago já € 43,20.
Contudo, pelos fundamentos invocados no douto Acórdão do Tribunal Constitucional
de 23/01/2007 (DR., 2ª série, de 27/2/2007) aquele art. 13º/2 do Código das
Custas, na interpretação segundo a qual o autor que já suportou a taxa de
justiça inicial ainda ter de suportar metade da taxa de justiça devida, com o
ónus de mais tarde a reaver da parte contrária, é inconstitucional por violação
do princípio da proporcionalidade inerente ao princípio do Estado de Direito
democrático (art. 2º da Constituição da República).
Nestes termos, a conta terá de ser reformulada como pretendido, recusando-se a
aplicação daquele normativo.
Em conformidade, decide-se determinar a reforma da conta por forma a que nela
seja considerada a quantia efectivamente paga pela autora a título de taxa de
justiça inicial.”
O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do art.º 70.º, da
Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
suscitando a fiscalização da constitucionalidade concreta nos seguintes termos:
“O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal vem, nos autos supra
identificados, interpor recurso do despacho proferido a fls. 63 a 64 verso, para
o Tribunal Constitucional, nos termos e fundamentos e ao abrigo do art. 280º nº
1 alínea a) e nº 3 da Constituição da República Portuguesa e dos art. 70º nº 1
alínea a); 72º nº 1 alínea a) e nº 3; 75º nº 1 e 75º-A nº 1 da Lei do Tribunal
Constitucional, Lei 28/82 de 15.11 (com as alterações e redacção introduzidas
pelas Leis 143/85 de 26.11; 85/89 de 07.09; 88/95 de 01.09 e 13-A/98 de 26.02),
porquanto o despacho em causa recusou a aplicação da norma contida no art. 13º
nº 2 do Código das Custas Judiciais, por inconstitucionalidade da mesma, por
violação do princípio da proporcionalidade inerente ao princípio do Estado de
Direito democrático (art. 2º da C.R.P.).
Assim, e para os efeitos do art. 75º-A nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional, o
presente recurso é interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º de tal
diploma, e a norma cuja inconstitucionalidade se pretende apreciada pelo
Tribunal Constitucional é a contida no nº 2 do art. 13º do Código das Custas
Judiciais.”
O Ministério Público junto deste Tribunal apresentou posteriormente alegações,
culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª) É inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, a
interpretação normativa do artigo 13º, nº 2, do Código das Custas Judiciais,
segundo a qual, no caso de transacção judicialmente homologada, segundo a qual
as custas em dívida a juízo serão suportadas a meias, incumbe ao autor que já
suportou integralmente a taxa de justiça a seu cargo garantir ainda o pagamento
de metade do remanescente da taxa de justiça em dívida, com o ónus de sub
sequentemente reaver tal quantia do réu, a título de custas de parte.
2.ª) Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
formulado pela decisão recorrida.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
O Recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a norma
contida no art.º 13.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais aprovado pelo D.L.
n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção introduzida pelo D.L. n.º 324/2003,
de 27 de Dezembro, quando interpretada no sentido de que no caso de transacção
judicialmente homologada, segundo a qual as custas em dívida a juízo serão
suportadas a meias, incumbe ao autor, que já suportou integralmente a taxa de
justiça a seu cargo, garantir ainda o pagamento de metade do remanescente da
taxa de justiça em dívida, com o ónus de subsequentemente reaver tal quantia do
réu, a título de custas de parte.
O n.º 2, do art.º 13.º, do Código das Custas Judiciais de 1996, com a redacção
resultante das alterações introduzidas em 2003, dispõe que “a taxa de justiça do
processo corresponde ao somatório das taxas de justiça inicial e subsequente de
cada parte”.
É discutível que a referida norma legal permita a interpretação normativa ora
sob escrutínio constitucional, tanto mais que este resultado hermenêutico já foi
anteriormente alcançado por referência a outras normas, nomeadamente as
constantes dos artigos 31.º, n.º 1, 33.º, n.º 1, b), e 33.º-A, n.º 1, do mesmo
Código das Custas Judiciais (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º
643/2006, em “Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo”, ano
XLVI, nº 545, pág. 918, n.º 128/2007, no site www.tribunalconstitucional.pt, e
n.º 301/2007, no Diário da República, II Série, de 17-7-2007, pág. 20280).
Porém, não compete ao Tribunal Constitucional aferir da bondade da actividade
hermenêutica do tribunal a quo, havendo simplesmente que aceitar o respectivo
resultado e a ulterior recusa de aplicação como um dado de facto na economia do
presente recurso de constitucionalidade. Apenas interessa saber se o resultado
hermenêutico alcançado pelo tribunal a quo respeita as regras ou princípios
constitucionais.
Por outro lado, resulta expressamente da decisão recorrida que a referida
interpretação normativa não foi sustentada por qualquer sujeito processual, nem
foi imposta pelo tribunal a quo em momento anterior ao da execução do acto
processual da elaboração da conta final, tendo, afinal, essa interpretação
normativa resultado originária e exclusivamente do mero funcionamento da
aplicação informática adoptada pelo Ministério da Justiça para a contagem das
custas cíveis, na sequência da reforma do Código das Custas Judiciais aprovada
pelo referido D.L. n.º 324/2003.
A circunstância da referida interpretação normativa ter emergido com essa fonte
administrativa não afasta a admissibilidade de recurso de constitucionalidade no
caso concreto, na medida em que houve efectivamente lugar à recusa de aplicação
de uma determinada interpretação normativa em sede de decisão judicial de um
incidente de reclamação da conta, e isso é suficiente para abrir caminho para a
interposição de recurso constitucionalidade – aliás, obrigatório por parte do
Ministério Público – à luz do disposto no art.º 70.º, n.º 1, b), da LTC.
Assim sendo, o objecto do recurso passará efectivamente pela apreciação da
questão da inconstitucionalidade da referida interpretação normativa do artigo
13.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais aprovado pelo D.L. n.º 224-A/96, de
26 de Novembro, na redacção introduzida pelo D.L. n.º 324/2003, de 27 de
Dezembro.
2. Do mérito do recurso
O presente recurso versa a temática das custas judiciais e a questão da
inconstitucionalidade foi desencadeada a montante por uma conta final elaborada
na sequência de uma transacção judicial alcançada pelas partes no âmbito de um
processo laboral.
Importa recuperar os dados e a tramitação desse processo para melhor compreender
os contornos do presente recurso de constitucionalidade.
A Recorrida propôs na jurisdição laboral uma acção contra a respectiva entidade
patronal, tendo pago uma taxa de justiça inicial no montante de € 86,40,
reduzida em virtude da Autora ter utilizado os meios electrónicos (artigos 23.º,
n.º 1, e 15.º, nº 1, do C.C.J.).
Tendo sido designada data para a realização da audiência das partes, veio a
acção a terminar mediante transacção que foi homologada judicialmente antes da
demandada ser sequer notificada para contestar.
As partes transigiram igualmente em matéria de custas judiciais, tendo ficado
então acordado que as custas devidas em juízo seriam suportadas em igual medida
pelas partes.
O processo findou antes de ter ocorrido o momento processual em que seria
normalmente devido o pagamento da taxa de justiça inicial pela demandada,
encontrando-se, assim, a mesma ainda por liquidar no momento da referida
transacção (art.º 24.º, n.º 1, b), do C.C.J.).
Mercê dessa composição amigável e antecipada da lide, a taxa de justiça foi
reduzida a metade, não sendo, por isso, devida taxa de justiça subsequente por
qualquer das partes (art.º 14.º, n.º 1, a), do C.C.J.).
Uma vez que a taxa de justiça do processo em geral corresponde à soma das taxas
de justiça (inicial e subsequente) pagas por cada uma das partes (art.º 13.º,
n.º 2, do C.C.J.), a taxa de justiça correspondia, no caso sob análise, à soma
da taxa de justiça inicial da Autora, já paga nos autos, com a taxa de justiça
inicial da Ré, ainda por pagar, em virtude do processo ter conhecido o seu termo
antes do momento oportuno para o respectivo pagamento.
Na elaboração da conta final de custas o montante da taxa de justiça inicial já
paga pela Autora foi imputado na proporção de 1/2, na taxa de justiça final
devida pela Autora e na taxa de justiça final devida pela Ré, em suposta
observância da lei e da sentença homologatória da transacção quanto a custas.
Tudo se passou, efectivamente, como se em caso de transacção judicialmente
homologada, segundo a qual “as custas devidas serão suportadas a meias”,
incumbisse à autora suportar integralmente a taxa de justiça inicial a seu cargo
no momento da propositura da acção e ainda lhe incumbisse posteriormente
garantir o pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça ainda em
dívida, com o ulterior ónus de reaver tal importância da parte contrária, a
título de custas de parte.
Foi esta interpretação normativa que foi afastada pelo tribunal a quo, com
fundamento na violação do princípio da proporcionalidade ínsito no Estado de
Direito democrático, consagrado no art.º 2.º, da C.R.P..
Tal interpretação normativa já foi julgada inconstitucional pelos acórdãos do
Tribunal Constitucional n.º 643/2006 (em “Acórdãos Doutrinais do Supremo
Tribunal Administrativo”, ano XLVI, nº 545, pág. 918), n.º 40/2007 (no Diário da
República, II Série, de 27 de Fevereiro de 2007, pág. 5158), n.º 128/2007 (no
site www.tribunalconstitucional.pt) e n.º 301/07 (no Diário da República, II
Série, de 17-7-2007, pág. 20280).
Estes três últimos acórdãos adoptaram a fundamentação constante do primeiro (n.º
643/2006), e, mais uma vez, essa fundamentação, em virtude de ser mutatis
mutandis totalmente transponível para o presente caso, será igualmente aqui
reproduzida na sua parte relevante e nos seguintes termos:
“…8. O recorrente acusa ainda as normas em causa de inconstitucionalidade
material por violação do princípio da igualdade, 'na medida em que dão ao que é
igual – a situação das partes no processo judicial – um tratamento desigual
(onerando uma das partes com a correspondente desoneração da outra)'.
Entende-se, todavia, que não é nesse plano que a conformidade constitucional da
norma deve ser analisada, já que se poderia, justamente, encontrar na
diversidade de posição processual das partes e no momento da homologação da
transacção a justificação para a diferença de solução.
Quanto à alegação de violação da 'garantia do processo equitativo', a
justificação apresentada pelo recorrente não tem autonomia relativamente à que
utiliza para sustentar os outros motivos de inconstitucionalidade que aponta.
E a verdade é que o Tribunal entende que é com o princípio da proporcionalidade
que as normas em apreciação devem ser confrontadas”.
9. Como se explica no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 324/2003, uma das inovações
trazidas com a aprovação do novo Código das Custas Judiciais consistiu em
eliminar 'a restituição antecipada (independentemente de o vencido proceder ao
pagamento das custas de sua responsabilidade), pelo Cofre Geral dos Tribunais,
da taxa de justiça paga pelo vencedor no decurso da acção' (ponto 5.),
transferindo para o vencedor o ónus de reaver do vencido o que adiantou através
do mecanismo de custas de parte.
Este mecanismo, desenhado pelos artigos 31º, n.º 1, 32º, n.ºs 1 e 2, 33º, n.º 1
e 33º-A do Código das Custas Judiciais, e que começa por se traduzir numa
garantia de que a taxa é efectivamente paga, pode levar a que o vencedor, não
obstante ter ganho a lide, suporte o respectivo custo, por não conseguir o
respectivo pagamento pelo vencido, nem voluntariamente, nem em via de execução.
Diz-se no mesmo preâmbulo que com esta inovação no regime da taxa justiça se
pretende, 'sem colocar em causa o princípio da tendencial gratuitidade da
justiça para o vencedor', que o 'custo efectivo' do de processo 'não opere à
custa da comunidade e do Estado, mas sim de quem deu causa (em sentido amplo) à
acção', bem como 'introduzir um factor de racionalização e moralização no
recurso aos tribunais, desincentivando-o por parte de quem já saiba de antemão
que não irá obter quaisquer benefícios reais com o processo'.
10. Sucede, todavia, que o regime acabado de referir só vale – só tem sentido,
aliás, e com esta afirmação não vai implícito qualquer juízo de conformidade ou
desconformidade constitucional das normas que o compõem – quando há reembolsos a
fazer, pois que a garantia de pagamento das custas em dívida consegue-se, nesta
lógica, retendo o que foi pago a mais pela parte vencedora e impondo-lhe o ónus
de, pelo mecanismo das custas de parte, o reaver da parte contrária.
De nenhum preceito do Código das Custas Judiciais resulta que, tendo uma das
partes pago a totalidade da quantia que, a título definitivo, lhe incumbiria
pagar, e não tendo a parte contrária pago ainda nada, se deva cobrar a quantia
que a esta última cabe determinando o pagamento de metade por cada uma.
Tal solução seria, aliás, desde logo, contraditória com as razões que levaram à
definição do novo regime.
Em primeiro lugar, porque, não havendo qualquer quantia paga a mais e, portanto,
a reter, não alcançaria o objectivo da garantia.
Em segundo lugar, porque, contrariando a simplificação proclamada igualmente no
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 324/2003, conduziria a uma maior complexidade de
regime: em vez de notificar uma parte para pagar a taxa que (exclusivamente) lhe
competia, notificavam-se as duas, cada uma para pagar metade; se a que já pagou
viesse efectivamente adiantar a parte que cabia à outra, haveria depois que
desencadear o mecanismo conducente ao reembolso das custas de parte; se não
viesse, e para além de se tornar necessário julgar uma eventual reclamação da
parte – como sucedeu no caso presente –, ainda se abriria a eventualidade de uma
execução por falta de pagamento… para depois o executado ir reaver da outra
parte o que foi obrigado a desembolsar.
Basta ver, por exemplo, o regime definido pelo n.º 2 do artigo 25º do mesmo
Código para verificar que o legislador quer evitar pagamentos de taxa de justiça
que previsivelmente depois tenham de ser reembolsados. Com efeito, o referido
n.º 2 do artigo 25º do Código prevê que, em caso de pluralidade activa ou
passiva, se o montante pago pela 'parte' se revelar suficiente para cobrir o
valor correspondente à taxa de justiça subsequente, é dispensado o pagamento
deste última.
11. Está portanto em causa no presente recurso, como se viu e pelas razões já
apontadas, o conjunto normativo resultante dos artigos 31º, n.º 1, 33º, n.º 1,
b) e 33º-A, n.º 1 do Código das Custas Judiciais, quando interpretado no sentido
de que pode ser exigida da parte que já suportou a totalidade da taxa de justiça
pela qual é responsável o adiantamento de parte da taxa de justiça pela qual é
responsável a parte contrária, cabendo-lhe depois exigir a esta a devolução da
quantia correspondente nos termos aplicáveis às custas de parte, quando o
processo terminou por transacção, nos termos da qual as custas em dívida seriam
suportadas a meias, homologada antes de o réu ter procedido ao pagamento da
(sua) taxa de justiça inicial.
Ora, das considerações constantes dos pontos anteriores resulta que, se tal
regime decorre do conjunto das normas que integram o objecto do presente
recurso, quando interpretadas no sentido em apreciação, o Tribunal
Constitucional não pode deixar de as julgar inconstitucionais, por violação do
princípio da proporcionalidade.
Como se sabe, o significado e as exigências decorrentes do princípio da
proporcionalidade, enquanto princípio decorrente do Estado de Direito (artigo 2º
da Constituição) e, assim, imposto, em geral, como limite à liberdade de
conformação do legislador ordinário (e é nesta dimensão que este princípio está
agora em causa, naturalmente), foi já objecto de inúmeras considerações pelo
Tribunal Constitucional.
Recorrendo, a título de exemplo, ao acórdão n.º 187/2001 (Diário da República,
II série, de 26 de Junho de 2001), cabe recordar que «o princípio da
proporcionalidade, em sentido lato, pode (...) desdobrar-se analiticamente em
três exigências da relação entre as medidas e os fins prosseguidos: a adequação
das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade das medidas e a
proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”. Como se escreveu no
(...) Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:
'o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio
da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem
revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de
outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da
exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os
fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos
para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou
proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas,
desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).'»
A interpretação normativa de que nos ocupamos não é compatível com nenhuma
destas exigências, como resulta do que se disse atrás: não é adequada a alcançar
os objectivos de garantia e de celeridade do novo regime, não é necessária para
o mesmo efeito e traduz-se na imposição ao autor que já pagou a totalidade da
taxa de justiça que, definitivamente, lhe competia, de um ónus de desembolsar
parte do que cabe ao réu e de, posteriormente, ter de lançar mão das vias
previstas para obter o reembolso.
É, portanto, inconstitucional, por infracção do princípio da proporcionalidade…”
A jurisprudência constitucional acabada de citar não foi seguida por todos os
juízes deste Tribunal que tiveram a oportunidade de se debruçar sobre a presente
questão de inconstitucionalidade.
Efectivamente, no aludido acórdão n.º 128/2007, onde fez vencimento, mais uma
vez, a tese do Acórdão n.º 643/2006, as Conselheiras Maria Helena Brito e Maria
João Antunes divergiram da posição maioritária e fundamentaram os respectivos
votos de vencido da seguinte forma, na parte que ora releva:
“…No caso em apreço, quando se exige ao autor que garanta o pagamento de metade
do remanescente da taxa de justiça ainda em dívida, com o ónus de
subsequentemente reaver tal quantia do réu, a título de custas de parte, do que
se trata é de evitar que haja transferência da responsabilidade individual dos
sujeitos processuais para a comunidade, o que não é censurável do ponto de vista
jurídico-constitucional, precisamente por força da inexistência de um princípio
geral de gratuitidade da justiça.
De resto, foi este objectivo de evitar a transferência da responsabilidade
individual dos sujeitos processuais para a comunidade que norteou, nesta parte,
as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 324/2003. Lê-se na
Exposição de motivos do diploma que:
“[...] com o actual sistema de restituição de taxa de justiça são frequentes os
casos em que, no final do processo, não é arrecadada qualquer quantia a título
de taxa de justiça, bastando, para esse efeito, que a parte vencida não proceda
a qualquer pagamento no decurso da acção e que não possua bens penhoráveis.
Ora, sendo certo que o processo existiu, correu os seus termos e teve um custo
efectivo, tal significa que foi a comunidade, globalmente considerada, quem o
suportou, em detrimento de quem motivou o recurso ao tribunal.
Desta forma, e sem colocar em causa o princípio da tendencial gratuitidade da
justiça para o vencedor, o que se pretende é que o mesmo não opere à custa da
comunidade e do Estado, mas sim de quem deu causa (em sentido amplo) à acção.
[...]”.
Resulta do exposto, ao contrário do sustentado pela recorrente (cfr. alegações
produzidas no Tribunal Constitucional, n.º 7. do acórdão), que há razões,
constitucionalmente suportadas, para diferenciar o autor e o réu da acção no que
toca aos deveres perante o Estado, quando tal eventual “diferenciação” tem a
ver, exclusivamente, com a opção no sentido de o primeiro ter que garantir o
pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça, ainda que, no limite,
possa vir a suportar o pagamento de uma parcela da taxa de justiça que é afinal
da responsabilidade do réu. Ou seja, há razões que justificam a opção no sentido
de ser o autor, que deu causa (em sentido amplo) à acção, a suportar a
contrapartida do serviço público prestado e não a comunidade.
Deve também salientar-se, em abono da interpretação normativa em causa neste
recurso de constitucionalidade, que ao ónus que o autor tem de subsequentemente
reaver do réu a quantia paga, a título de custas de parte – um encargo que é
conatural ao dever que o autor tem de garantir o pagamento de metade do
remanescente da taxa de justiça – correspondem três formas de obter a
compensação respectiva: envio à parte responsável da respectiva nota
discriminativa e justificativa para que esta proceda ao pagamento (segunda parte
do n.º 1 do artigo 33°-A do CCJ); cobrança em execução de sentença (primeira
parte do n.º 1 do artigo 33°-A do CCJ); e execução por custas, instaurada pelo
Ministério Público, nos termos do n.º 3 do artigo 116° do mesmo Código (n.º 6 do
artigo 33°-A do CCJ). Na medida em que se prevêem diversas formas de obtenção da
compensação, ainda incluídas no âmbito do processo (não em acção autónoma), é
de concluir, por conseguinte, que a interpretação normativa questionada pela
recorrente não onera excessivamente aquele que tem de garantir o pagamento de
metade do remanescente da taxa de justiça, ainda em dívida.
Por outro lado, não pode deixar de se ter em conta que a interpretação
questionada no presente recurso assentou na existência de um acordo entre as
partes quanto à repartição das custas em dívida. Como salienta a própria decisão
recorrida (cfr. n.º 5. do acórdão), conhecendo a Autora, ora recorrente, as
disposições legais aplicáveis, que referiu expressamente na reclamação deduzida
a propósito da conta de custas e cuja inconstitucionalidade então suscitou,
“poderia ter acordado numa repartição de custas diferente, de modo a que nada
mais tivesse que pagar, para evitar ter que pagar ao Tribunal e reclamar da
parte contrária o que adiantou quando instaurou a acção”.
Finalmente, sublinhe-se que a interpretação que a decisão recorrida fez dos
artigos 31°, 33° e 33°-A do CCJ não abrangeria o autor em caso de insuficiência
económica do réu a quem tivesse sido concedido apoio judiciário, por si
requerido ou pelo Ministério Público em sua representação. O legislador
estabeleceu no n.º 3 do artigo 4° do mesmo Código que “se a parte vencida gozar
do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa total ou parcial do
pagamento de custas, o reembolso das taxas de justiça pagas pelo vencedor é […]
suportado pelo Cofre Geral dos Tribunais” (tal como quando a parte vencida for o
Ministério Público, segundo o n.º 2 do mesmo preceito) (...).”
E os Conselheiros Bravo Serra e Gil Galvão no acórdão n.º 643/2006 votaram
vencidos por considerarem que a interpretação normativa em causa, apesar de não
ser “o melhor direito”, não violava qualquer parâmetro constitucional,
nomeadamente o princípio da proporcionalidade, o que foi reafirmado pelo
Conselheiro Gil Galvão no voto de vencido aposto no acórdão n.º 301/07.
Os argumentos da posição dissidente são pertinentes, mas não são decisivos.
A respectiva refutação impõe uma brevíssima e complementar descrição do nosso
sistema legal de custas.
O sistema de custas português é informado por determinados princípios e valores
sedimentados ao longo dos tempos.
A parte vencida vem suportando o pagamento das custas dos processos desde a
Antiguidade Romana, mas o financiamento do sistema de custas não se explica nem
se esgota obviamente no plano sancionatório (cfr. SALVADOR DA COSTA, “Código das
Custas Judiciais anotado e comentado”, pág. 32, da 9.ª edição, da Almedina).
A reintegração estadual do direito associada à proibição genérica da autodefesa
postula a comparticipação da comunidade nos custos dos processos através dos
impostos, e a utilização pontual dos serviços de justiça por parte da
generalidade dos cidadãos e a necessária moderação da respectiva utilização
impõem a cobrança de taxas de justiça.
Por sua vez, a garantia do acesso ao Direito e aos tribunais pressupõe que a
justiça não possa ser denegada por insuficiência de meios económicos e reclama
um adequado sistema de apoio judiciário.
Pode-se afirmar, contudo, que vigora entre nós um princípio-regra da justiça
gratuita para o vencedor.
De acordo com o nosso sistema de custas, a responsabilidade pela dívida de
custas em sede cível assenta, a título principal, no princípio da causalidade e,
subsidiariamente, no da vantagem ou do proveito resultante do processo (art.º
446.º, n.º 1, do C.P.C.).
A lei processual civil estabelece algumas regras especiais em diversas
situações, nomeadamente no caso de transacção, sendo então as custas pagas a
meio, salvo acordo em contrário (art.º 451.º, n.º 1, do C.P.C.).
Por seu turno, as custas de parte compreendem o que a parte haja despendido com
o processo a que se refere a condenação e de que tenha direito a ser compensada
em virtude da mesma, designadamente as taxas de justiça pagas (art. 33.º, n.º 1,
b), do C.C.J). As custas de parte são objecto de nota discriminativa e
justificativa e remetidas à parte responsável para efeito de pagamento
voluntário, sem prejuízo da cobrança coerciva em sede de execução da sentença ou
mesmo através de execução por custas (artigos 33.º-A, n.º 1 e 6, e 116.º, n.º
3, do C.C.J.). Estes reembolsos à parte vencedora, a título de custas de parte,
não são prejudicados pelas isenções de custas (art.º 4.º, n.º 1, do C.C.J.).
Conforme acertadamente salientado no acórdão nº 643/2006, deste Tribunal, a
interpretação normativa afastada pelo tribunal a quo não corresponde sequer ao
novo regime de custas de parte introduzido pelo D.L. nº 324/2003, na medida em
que o mesmo só vale, na parte que ora releva, quando há lugar a reembolsos de
taxa de justiça paga em momento necessariamente anterior ao da própria contagem
das custas. A situação de recuperação de taxa de justiça paga num momento em que
a mesma era devida pela parte, em conformidade com o concreto estádio
processual, não pode obviamente ser equiparada à situação de pagamento pós-conta
de uma taxa de justiça que já é sabido ser da responsabilidade da parte vencida.
Para além deste argumento, dir-se-ia de alcance meramente infraconstitucional, a
verdade é que também não se pode aceitar a tese segundo a qual a interpretação
normativa ora posta em crise evitaria, em alguma medida, que a responsabilidade
pelo pagamento das custas fosse indesejavelmente transferida dos sujeitos
processuais para a comunidade.
Não é correcto entender-se que a comunidade não tem de suportar parte dos custos
da reintegração do Direito. Este raciocínio, levado ao limite, caucionaria
inclusivamente a solução normativa segundo a qual a parte vencedora seria
solidariamente responsável pelo pagamento da totalidade das custas devidas, sem
prejuízo do pertinente direito de regresso junto da parte vencida, o que não é
de todo admissível.
Por outro lado, a possibilidade de ulterior recuperação coerciva dessa taxa de
justiça, a título de custas de parte, não acautela suficientemente os interesses
da parte vencedora, perante uma eventual insolvência da parte vencida, a menos
que esta litigue com o benefício do apoio judiciário e a obrigação de reembolso
recaia sobre o Cofre Geral dos Tribunais, o que não sucede seguramente na
maioria das situações e, por isso mesmo, não pode ser erigida como a regra do
sistema.
Acresce a tudo isso que a aplicação da interpretação normativa repudiada pelo
tribunal a quo conduz a resultados manifestamente anómalos e desrazoáveis, que
não são toleráveis à luz das relações que devem existir entre os cidadãos e o
Estado.
Para além dos acima aludidos três vectores do princípio constitucional da
proporcionalidade (em sentido amplo) ou da proibição de excesso, a doutrina tem
autonomizado outros elementos, entre os quais avulta o subprincípio da
razoabilidade, segundo o qual “haveria inconstitucionalidade sempre que,
independentemente da adequação da relação de meio-fim sobre que incide o limite
da proporcionalidade das restrições aos direitos fundamentais, a quantidade ou
a qualidade dos encargos impostos excede o que é legitimamente tolerável pela
liberdade e autonomia pessoal em Estado de Direito” (cfr. JORGE REIS NOVAIS, em
“Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa”, págs.
187-190, da ed. de 2004, da Coimbra Editora).
Aqui chegados, no caso concreto, é possível concluir, com segurança, que não é
minimamente tolerável que o Estado, no caso de transacção judicialmente
homologada, segundo a qual as custas em dívida a juízo serão suportadas a meias,
imponha ao autor, que já suportou integralmente a taxa de justiça a seu cargo,
que garanta ainda o pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça em
dívida, da responsabilidade do réu, com o ónus de subsequentemente reaver tal
quantia do mesmo, a título de custas de parte.
Por isso, deve confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo
tribunal recorrido, julgando-se improcedente o recurso.
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Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma contida no art.º 13.º, n.º 2, do Código das
Custas Judiciais, aprovado pelo D.L. n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na
redacção introduzida pelo D.L. n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, quando
interpretada no sentido de que, no caso de transacção judicialmente homologada,
segundo a qual as custas em dívida a juízo serão suportadas a meias, incumbe ao
autor, que já suportou integralmente a taxa de justiça a seu cargo, garantir
ainda o pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça em dívida, com o
ónus de subsequentemente reaver tal quantia do réu, a título de custas de parte;
b) e, consequentemente, confirmar o juízo de inconstitucionalidade adoptado na
decisão recorrida, negando desta forma provimento ao recurso.
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Sem custas.
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Lisboa, 16 de Outubro de 2007
João Cura Mariano
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos