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Processo nº 860/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e B. reclamam para a conferência ao abrigo do disposto no n.º
3 do art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(LTC), da decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional,
que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto das decisões proferidas
pelo Presidente da Relação de Lisboa, de 17/04/2007 e de 22/05/2007, que lhes
indeferiram, respectivamente, a reclamação deduzida, nos termos do art.º 688.º
do Código de Processo Civil (CPC), contra o despacho proferido pelo juiz do
Tribunal Judicial da Comarca de Faro que não lhes admitiu o recurso interposto
para o Tribunal da Relação de despacho do mesmo tribunal e o pedido de reforma
da mesma decisão.
2 – Sustentando a sua reclamação, as reclamantes desenvolvem a
seguinte argumentação:
«1. Na Decisão Sumária sub judice, o Exmo. Senhor Conselheiro Relator deste
Venerando Tribunal decidiu não conhecer do recurso, por as Recorrentes não terem
suscitado a questão de inconstitucionalidade atempadamente.
De facto, entendeu-se aí que as Recorrentes deveriam ter invocado a questão da
inconstitucionalidade logo na Reclamação que, nos termos do art. 688° do CPC,
dirigiram em 23.10.2006 ao Presidente do Tribunal da Relação de Évora, do
Despacho do Tribunal Judicial de Faro que não admitiu o recurso aí interposto, e
não apenas na reforma da Decisão proferida por aquele Presidente (04.05.2007):
“Assim sendo, a interpretação seguida pelo Presidente da Relação corresponde a
uma interpretação meramente declarativa dos preceitos aplicados e cuja
constitucionalidade se pretendeu sindicar no pedido de reforma. Mas a destempo,
como resulta do acima expendido.
Ao reclamar, pedindo a aplicação de tais preceitos legais, as recorrentes
estavam obrigadas a antecipar uma interpretação dos mesmos preceitos no sentido
de o órgão decisor poder verificar a efectiva existência do alegado pressuposto
de admissibilidade do recurso: a existência de ofensa de caso julgado.
Não estamos assim perante qualquer interpretação insólita ou imprevisível. (…)
Dito de outro modo, não pode considerar-se insólita ou surpreendente uma decisão
que, mediante uma interpretação declarativa do texto legal, faça aplicação de
uma norma potencial e previsivelmente mobilizável para a resolução do caso
concreto, porquanto instituinte de um possível desfecho para uma determinada
controvérsia” – pág. 7, parágrafos 3, 4 e 7.
2. No entanto, salvo o devido respeito, tal entendimento não pode
proceder, pelas seguintes razões:
3. Em primeiro lugar, quanto ao momento temporal e oportunidade processual
da invocação da inconstitucionalidade aqui em discussão, as Recorrentes,
conforme explicitaram no seu requerimento de recurso para este Venerando
Tribunal, só suscitaram a questão de inconstitucionalidade na Reforma de
04.05.2007 e não antes (na Reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da
Relação de Évora), porque as normas cuja inconstitucionalidade foi arguida só
foram efectivamente aplicadas nessa Decisão e não antes.
Na verdade, essa questão (a interpretação/aplicação da normas nos termos que
reputamos inconstitucionais) nunca foi colocada em momento anterior no processo,
nem era previsível que o fosse, pois a Decisão da 1ª Instância, de 26.09.2006,
que não admitiu o recurso e que justificou a Reclamação para o Presidente do
Tribunal da Relação de Évora, nos termos do art. 688° do CPC, fê-lo, não por
considerar que não havia ofensa de caso julgado (apesar de este fundamento ter
sido invocado, desde logo, pelas Recorrentes, no seu requerimento de
interposição de recurso), mas sim com fundamento no valor da sucumbência.
Assim, foi só naquela Decisão do Senhor Presidente do Tribunal da Relação de
Évora que efectivamente foi apreciada a questão de o recurso ter sido interposto
com fundamento em ofensa de caso julgado. Antes desse momento e decisão
processual nunca se abordou esta questão, razão pela qual as Recorrentes não
puderam, sequer, prever a interpretação e aplicação que a final foi feita da
norma do art. 678°, nº 2, do CPC (conjugada com as dos arts. 687°, nºs. 1 e 3, e
689°, nº 1, do CPC).
4. Em segundo lugar, não pode proceder o argumento de que a
interpretação/aplicação feita pelo Presidente do Tribunal da Relação de Évora
das normas em causa era previsível, por resultar de uma interpretação meramente
declarativa do preceito legal, conforme se decidiu na Decisão sub judice.
5. As Recorrentes não pretendem discutir aqui a bondade deste critério de
admissibilidade de recursos para o Tribunal Constitucional. O que se pretende
demonstrar é que, in casu, essa situação não se verifica.
6. Relembre-se, com todo o respeito, que o elemento literal, gramatical ou
filológico da interpretação consiste na utilização das palavras da lei,
isoladamente e na sua unidade sintáctica, com vista a inferir o possível sentido
da norma que terá que ser compatível com o teor literal da lei, ou que
reflectir-se, de algum modo, no texto legal. Esta conclusão resulta
expressamente do art. 9°, nº 2, do CC, no qual se refere que “Não pode, porém,
ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra
da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”
Conforme refere, doutamente, Mário Bigotte Chorão[1] 1 “A busca de soluções
jurídicas que não se contenha nas fronteiras do sentido literal da lei já não
pertencerá, em rigor, à interpretação da lei, mas a actividade
ultra-interpretativa do direito”
7. No entanto, da letra da lei (seja do art. 678°, nº 2, seja do art. 687°,
nº 3, ou do art. 689°, nº 1, do CPC) não resulta que, interposto um recurso com
fundamento em violação de caso julgado, o tribunal, para aferir da
admissibilidade do mesmo, pode desde logo conhecer e decidir sobre o respectivo
mérito e não admitir esse recurso por considerar que, no caso concreto, não
existe a invocada violação de caso julgado.
Salvo o devido respeito (por este Venerando Tribunal e pela interpretação do CPC
defendida na Decisão sub judice), essa interpretação não é declarativa, isto é,
não resulta da letra da lei.
Pelo contrário, num necessário apelo ao elemento sistemático da interpretação
normativa, é o próprio art. 678°, nº 2, do CPC, que vem prescrever que no caso
de o recurso ser interposto com fundamento em ofensa de caso julgado, o mesmo é
sempre admissível, seja qual for o valor da causa, sem se fazer qualquer alusão,
indirecta, implícita ou imperfeita, ao facto de a sua admissão depender,
necessariamente, de uma prévia verificação judicial da violação do caso julgado
que se invoca.
O mesmo se diga relativamente aos arts. 687°, nº 3, e 689°, nº 1, do CPC, dos
quais também não resulta que um dos motivos de não admissão do recurso
interposto com fundamento em ofensa de caso julgado seja o de o Tribunal com
competência para admitir o recurso poder concluir que no caso concreto não se
verifica essa ofensa que se invoca.
8. Assim (sem necessidade, ainda, de optar pela interpretação mais adequada
do CPC), importa concluir que das normas invocadas não resulta a possibilidade
de o Tribunal agir conforme agiu (conhecer da efectiva existência de ofensa de
caso julgado no momento da admissão do recurso, antes mesmo de as Recorrentes
apresentarem as suas Alegações e defenderem a solução que entendem resultar do
Direito aplicável), pelo que, ao contrário do que se considerou na Decisão sub
judice, a interpretação seguida pelo Presidente do Tribunal da Relação de Évora
não foi uma interpretação meramente declarativa dos preceitos aplicados, pelo
que as Recorrentes, ao contrário do que aí também de entendeu, não estavam
obrigadas a antecipar essa interpretação dos referidos preceitos.
9. Em terceiro lugar, a interpretação que o Presidente do Tribunal da
Relação de Évora fez dos arts. 678°, nº 2, 687°, nºs 1 e 3 e 689°, nº 1, do CPC,
não era previsível, designadamente pelo facto de, na nossa opinião, essa
interpretação contrariar o regime de recursos do CPC e a própria Constituição.
De facto, para além de não resultar da letra da lei (como se viu no nº 7 deste
Requerimento), esse entendimento também não resulta do espírito deste regime
jurídico-processual, nem da história destes preceitos[2]
9.1 Esta interpretação dos preceitos em causa viola, de facto, o
espírito/sistema da lei, pois:
a. Permite uma decisão sobre o mérito do recurso (o efectivo conhecimento
da violação do caso julgado invocado e a conclusão que essa violação não se
verifica) sem que as Recorrentes tenham tido a oportunidade de apresentar as
suas Alegações, sendo certo que é aí que se pode demonstrar a violação do caso
julgado que se invoca e apresentar os argumentos jurídicos que suportam essa
posição.
b. Permite, materialmente, uma decisão sobre o mérito do recurso antes
mesmo de este ter sido admitido, quando, nesta fase de admissão do recurso, o
poder jurisdicional se esgota na verificação dos requisitos e pressupostos
processuais da sua admissibilidade (art. 687°, nº 3, ia parte, do CPC), isto é,
na verificação de que o fundamento do recurso é aquele ou não. É certo que o
Tribunal ad quem, conforme se refere na Decisão sub judice (pág. 7, 2°
parágrafo), pode sempre discordar do entendimento do Tribunal a quo e considerar
que o recurso interposto com fundamento em caso julgado não deveria ter sido
admitido, indeferindo-o liminarmente ou não o conhecendo. No entanto, essa é uma
situação absolutamente diferente da que aqui se discute, pois, nesse caso, as
Recorrentes já tiveram oportunidade de apresentar as suas Alegações (no Tribunal
a quo) e demonstrar as razões de facto e de direito que suportam o seu
entendimento, ao contrário do caso que nos ocupa.
c. Permite que o recurso seja materialmente decidido, não pelo Tribunal
competente para o efeito – secções do Tribunal recorrido, nos termos do art.
36°, a), da LOFTJ, enquanto Tribunal de estrutura colectiva –, mas sim por quem
apenas tem o poder para admitir esse recurso (Juiz singular).
d. Permite a inexistência de qualquer fronteira entre a fase da
admissibilidade do recurso e a fase da sua procedência ou julgamento, que é
absolutamente essencial ser estabelecida, não só por uma questão de separação de
poderes/competências dos Tribunais, mas também para evitar decisões surpresa,
proibidas pelo art. 3° do CPC e pelo direito fundamental a uma tutela
jurisdicional efectiva e participada (art. 20° da Constituição).
e. Permite a violação do art. 6870, nº 3, do CPC, que estabelece
taxativamente os fundamentos de inadmissibilidade dos recursos, pois nesse
preceito não se faz qualquer referência à possibilidade de um recurso interposto
com fundamento em violação de caso julgado poder não ser admitido por não se
verificar essa violação que fundamenta o recurso.
Em suma, não resulta das normas legais em causa (designadamente do art. 678°, nº
2, do CPC), nem do espírito deste sistema normativo, ao contrário do que se
refere na Decisão sub judice, a possibilidade de o Tribunal (neste caso, o
Presidente do Tribunal da Relação de Évora) conhecer desde logo da ofensa do
caso julgado que se invoca como fundamento do recurso, pelo que não era exigível
às Recorrentes que previssem essa interpretação/Decisão e se antecipassem no
tempo quanto à invocação da respectiva inconstitucionalidade.
9.2 Quanto ao elemento histórico da interpretação, importa
relembrar que a exigência legal (art. 687°, nº 1, do CPC) de o recorrente
indicar no seu requerimento de recurso que recorre com fundamento em ofensa de
caso julgado apenas se impôs com a revisão do CPC em 1986 (Decreto-Lei nº
180/96, de 25 de Setembro), onde se pretendeu resolver, em definitivo, as
dificuldades que existiam nesta matéria e que se prendiam com a questão de
saber, mesmo na ausência de uma exigência legal nesse sentido, como se
distinguia a fase da admissibilidade do recurso da fase do julgamento do mesmo,
isto é, se para o recurso ser admitido bastava que se referisse que se recorria
com fundamento em ofensa de caso julgado ou se era também necessário que se
indicassem os elementos pelos quais se mostrasse ser séria a afirmação de ter
sido ofendido um caso julgado.
Perante esta questão e dificuldade, o legislador considerou e consagrou ser
apenas exigível ao recorrente indicar no seu requerimento de interposição de
recurso que o faz com aquele fundamento específico de violação de caso julgado,
e não que demonstre também a efectiva violação que invoca. Se tivesse sido esta
a solução que o legislador pretendia teria sido essa a solução consagrada. Este
entendimento, aliás, era já o defendido pela jurisprudência e doutrina antes
desta revisão da lei processual em 1996[3].
Assim, se o legislador não quis ir mais além do que foi, quando poderia ter ido,
não deve agora o intérprete fazê-lo, principalmente sem que exista qualquer
fundamento ou reflexo no teor da norma ou no espírito do sistema, conforme se
demonstrou.
10. Em quarto e último lugar, se efectivamente releva, conforme se refere na
Decisão sub judice (pág. 2, ponto 3.1, 2° e 3° parágrafos), para efeito da
determinação do momento em que deve ser suscitada a questão da
inconstitucionalidade, o facto de essa invocação ser feita em momento em que o
tribunal a quo ainda pudesse conhecer dessa questão, isto é, antes de se esgotar
o seu poder jurisdicional, então nada obsta a que este recurso seja admitido,
pois o Presidente do Tribunal da Relação de Évora, na decisão sobre a reforma aí
apresentada pelas Recorrentes, teve a efectiva oportunidade de se pronunciar
sobre a inconstitucionalidade que se pretende submeter ao conhecimento deste
Venerando Tribunal Constitucional.
Deste modo, salvaguardada que estava a possibilidade de o Presidente do Tribunal
da Relação de Évora se pronunciar e conhecer da questão da inconstitucionalidade
suscitada pelas Recorrentes, bem como a competência e função deste Venerando
Tribunal Constitucional enquanto instância superior que, nos processos de
fiscalização concreta, procede apenas ao reexame ou reapreciação dessa mesma
questão, deveria o recurso interposto pelas Recorrentes ter sido admitido e não
rejeitado liminarmente, nos termos do art. 78°-A, nº 1, da Lei do Tribunal
Constitucional.
Nestes termos,
Pelo exposto, requer-se a este Venerando Tribunal se digne revogar a Decisão
Sumária sub judice e admitir o recurso interposto pelas Recorrentes,
notificando-as para a apresentação das respectivas Alegações, nos termos do art.
79° da Lei do Tribunal Constitucional».
3 – A recorrida E.P. Estradas de Portugal, E.P.E. não respondeu.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
1 – A. e B. recorrem para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto nos arts. 70.º, n.º 1, alínea b), e 75.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), das decisões proferidas pelo
Presidente da Relação de Lisboa, de 17/04/2007 e de 22/05/2007, que lhes
indeferiram, respectivamente, a reclamação deduzida, nos termos do art.º 688.º
do Código de Processo Civil (CPC), contra o despacho proferido pelo juiz do
Tribunal Judicial da Comarca de Faro que não lhes admitiu o recurso interposto
para o Tribunal da Relação de despacho do mesmo tribunal e o pedido de reforma
da mesma decisão, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade da norma
constante dos arts. 689.º, n.º 1, e 687.º, n.º 3, do CPC, “interpretados no
sentido de que no julgamento da reclamação de decisão que não admita o recurso
interposto com fundamento em violação do caso julgado é permitido ao presidente
do tribunal superior conhecer do mérito do recurso que se pretende interpor e
concluir pela não violação do caso julgado como fundamento para não admitir esse
recurso, sem que esse recurso tenha sido admitido e apresentadas as respectivas
alegações”, e da norma constante do art.º 678.º, n.º 2, do CPC, “interpretado no
sentido de que a admissão dos recursos com fundamento em violação de caso
julgado depende da verificação judicial, no momento da sua admissão, da violação
do caso julgado que invoca”.
No seu requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, as recorrentes alegam ter levantado a questão de
inconstitucionalidade apenas no articulado de pedido de reforma da decisão do
Presidente da Relação que lhes indeferiu a reclamação deduzida contra a não
admissão do recurso para a Relação por parte do juiz do tribunal de 1.ª
instância, porque elas “só foram aplicadas na decisão recorrida (…), não tendo a
questão sido colocada em momento anterior no processo, nem sendo previsível que
o fosse nessa decisão (a decisão da 1.ª instância, de 26/09/2007, não admitiu o
recurso com fundamento no valor da sucumbência)”, pelo que inexiste o ónus de
antecipada suscitação.
2 – Porque a situação em apreço se integra na hipótese recortada no
n.º 1 do art.º 78.º-A da LTC, passa a decidir-se imediatamente.
3.1 – Como é consabido, constitui requisito do recurso interposto ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 280º da Constituição da República
Portuguesa (CRP) e na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC que a questão de
inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada como ratio decidendi da
decisão recorrida tenha sido suscitada durante o processo.
O sentido deste último conceito tem sido esclarecido, por várias vezes, por este
Tribunal Constitucional. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94 (publicado no
Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994) afirmou-se que esse
requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a
inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita
em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, “antes de
esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de
constitucionalidade) respeita”.
Por seu lado, afirma-se, igualmente, no Acórdão n.º 560/94 (publicado no Diário
da República II Série, de 10 de Janeiro de 1995) que «a exigência de um cabal
cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da
questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma
secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal
recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o
Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da
questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão)».
Neste domínio há que acentuar que, nos processos de fiscalização concreta, a
intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da
questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter
apreciado. Ainda na mesma linha de pensamento podem ver-se, entre outros, o
Acórdão n.º 155/95 (publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de
1995), e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º
192/2000 (publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000) - cf.
também, sobre o sentido de tal requisito, José Manuel Cardoso da Costa, «A
jurisdição constitucional em Portugal», separata dos Estudos em Homenagem ao
Prof. Afonso Queiró, 2ª edição, Coimbra, 1992, pp. 51 e ss..
É certo que tal doutrina sofre restrições, como se salientou naquele Acórdão n.º
354/94, mas isso apenas acontece em situações excepcionais ou anómalas, nas
quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a
questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o
fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo
insólita e imprevisível.
Usando os termos do recente Acórdão n.º 192/2000, dir-se-á, ainda, que “quem
pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de
uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a
questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido
o acórdão da conferência de que recorre...”.
Porém, é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem essa
oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa
decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s)
articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear
juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por
antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se
poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados
pelo juiz.
Na verdade, ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação
das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o
facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os
considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da
(in)validade da norma em face da lei fundamental.
Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão do direito
plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade
constitucional.
Por outro lado, «“suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é
fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que
tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama,
obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a
norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender
de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se
aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao
menos, a norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a
constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a
Constituição não ao acto de aplicação do Direito – concretizado num acto de
administração ou numa decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando
muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão
(cfr. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da
República, II Série, de 15-05-1996). [§] É certo que não existem fórmulas
sacramentais para formulação dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão
de constitucionalidade. [§] Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro
que se põe em causa a conformidade à Constituição de uma norma (...)» – cf.,
inter alia, o Acórdão n.º 618/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt/).
3.2 – Ora, é, por demais, evidente que na situação processual aqui
em causa, os recorrentes não podem ter-se por dispensados do ónus de suscitação
da questão de constitucionalidade.
Senão vejamos. Os recorrentes interpuseram recurso de uma decisão da
1.ª instância para o Tribunal da Relação, com o fundamento de que seria ilegal a
retenção de certo valor da indemnização resultante da expropriação para efeitos
de pagamento das custas prováveis, por afrontar disposições legais e o julgado
na primeira parte da mesma decisão recorrida, bem como a exigência de pagamento
da taxa de justiça inicial do processo.
Esse recurso não lhes foi admitido, por se considerar a decisão
irrecorrível em virtude de “o valor da sucumbência (€ 445) [ser] inferior a
metade da alçada do tribunal”.
Reclamaram, então, as recorrentes para o Presidente da Relação de
Évora, nos termos do art.º 688.º do CPC, alegando, no respectivo articulado, que
o recurso devia ser admitido com base na violação de caso julgado, dado que o
n.º 2 do art.º 678.º do CPC dispõe que é sempre admissível recurso com
fundamento “em ofensa de caso julgado”.
O Presidente da Relação de Évora indeferiu a reclamação depois de
haver ponderado que, tal como havia sido ajuizado pela 1.ª instância, o recurso
era inadmissível por o valor da sucumbência ser inferior a metade da alçada do
tribunal de 1.ª instância (art.º 678.º, n.º 1, do CPC) e, também, porque não se
verificava a ofensa de caso julgado.
As recorrentes pediram, então, a reforma desta decisão do Presidente
do Tribunal da Relação, argumentando que o mesmo não poderia conhecer da ofensa
do caso julgado, como pressuposto para admitir ou não o recurso, por esse
conhecimento respeitar ao mérito da causa e esse estar vedado do tribunal de
recurso, depois de admitido o recurso, suscitando, então, as referidas questões
de inconstitucionalidade.
Mas também esse pedido de reforma foi indeferido com base na
consideração de que “as situações previstas no n.º 2 da disposição legal
referida não são de funcionamento automático, quanto à admissão do recurso, pois
estão sujeitas a apreciação judicial”.
Como emerge do relatado, foram as próprias recorrentes quem demandou
do Presidente da Relação a aplicação do n.º 2 do art.º 678.º do CPC com o
sentido de o recurso dever ser sempre admitido com “fundamento na ofensa de caso
julgado”.
Ora, pedindo as recorrentes a aplicação, por parte do órgão
jurisdicional superior, do art.º 678.º, n.º 2, do CPC, com base na existência de
uma situação processual que integraria, na sua óptica, precisamente a sua
hipótese, não poderiam deixar de antever a interpretação desse mesmo preceito no
sentido de o mesmo permitir a esse órgão jurisdicional a apreciação da
verificação da existência do pressuposto aí conformado como possibilitando
sempre o recurso, independentemente do valor da causa (e da sucumbência).
Trata-se de um sentido que emerge directamente da conjugação do
preceito que comete ao Presidente da Relação a competência para decidir se se
verificam ou não os pressupostos de admissibilidade do recurso (art.º 688.º do
CPC), em contrário do entendido na decisão reclamada, com o preceito que prevê
ou define esses pressupostos de admissibilidade do recurso (no caso, o n.º 2 do
art.º 678.º do CPC).
Na verdade, este último preceito não fala na admissibilidade do
recurso com fundamento “na alegação” da “ofensa de caso julgado”, mas com
“fundamento na ofensa de caso julgado”.
Por outro lado, atribuir ao órgão jurisdicional a competência para
aplicar a lei acarreta necessariamente a atribuição da competência para
verificar se a hipótese da lei aplicanda se verifica ou não. Trata-se de tarefa
imanente ao acto jurisdicional judicativo.
Finalmente, o juízo apenas tem por escopo verificar a existência do
requisito especial do recurso em causa, com o fim de admitir ou não o recurso. A
circunstância de respeitar a um pressuposto que acaba também por consubstanciar
a questão a decidir no recurso não impressiona, pois o seu efeito, é, como em
todos os demais casos, o da não admissibilidade do recurso (obviando ao
seguimento de recursos inadmisssíveis) e de essa decisão ser proferida por um
órgão jurisdicional superior.
Também quando o recurso é admitido com base na leitura feita pelo
Presidente da Relação relativamente a outros pressupostos do recurso, e com
fundamento nela defere a reclamação, não se segue daí que o tribunal superior
não possa decidir em sentido contrário.
Assim sendo, a interpretação seguida pelo Presidente da Relação
corresponde a uma interpretação meramente declarativa dos preceitos aplicados e
cuja constitucionalidade se pretendeu sindicar no pedido de reforma. Mas a
destempo, como resulta do acima expendido.
Ao reclamar, pedindo a aplicação de tais preceitos legais, as
recorrentes estavam obrigadas a antecipar uma interpretação dos mesmos preceitos
no sentido de o órgão decisor poder verificar a efectiva existência do alegado
pressuposto de admissibilidade do recurso: a existência de ofensa de caso
julgado.
Não estamos assim perante qualquer interpretação insólita ou
imprevisível.
Como se afirmou no Acórdão n.º 186/03, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, tal “não é seguramente o caso em que a decisão
aplica uma norma com um sentido que desde logo emerge da própria letra do
preceito que a contém, como também a situação em que um tal sentido é acolhido
por jurisprudência pacífica ou maioritária”.
Dito de outro modo, não pode considerar-se insólita ou surpreendente
uma decisão que, mediante uma interpretação declarativa do texto legal, faça
aplicação de uma norma potencial e previsivelmente mobilizável para a resolução
do caso concreto, porquanto instituinte de um possível desfecho para uma
determinada controvérsia.
Deste modo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso
por incumprimento do ónus de adequada e atempada suscitação da questão de
constitucionalidade.
4 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 7 UCs.».
B – Fundamentação
5 – Ao contrário do sustentado na reclamação, entende o Tribunal ser
de manter a decisão reclamada.
Como nela se afirma, a interpretação/aplicação da norma só pode
considerar-se imprevisível e insólita quando seja desrazoável e inadequado
exigir do interessado um prévio juízo de prognose relativo à aplicação dessa
norma/dimensão normativa.
Tal, porém, não será o caso, como aí se diz, “quando a apreensão do
sentido com que a norma é aplicada numa decisão posteriormente proferida
poderá/deverá ser perscrutado no(s) articulado(s) processual(ais) funcionalmente
previsto(s) para discretear juridicamente sobre as questões cuja resolução essa
decisão tem de ditar, por antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido,
cuja constitucionalidade se poderá questionar, se apresenta como sendo um dos
plausíveis a ser aplicados pelo juiz”, pois “ao encararem ou equacionarem na
defesa das suas posições a aplicação das normas, as partes não estão dispensadas
de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo
sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí
prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental”.
Não releva assim, ao contrário do argumentado pelas reclamantes, que
a decisão pretendida recorrer para o tribunal superior não tenha feito aplicação
da norma e que ela ocorra apenas em momento posterior àquele em que o recorrente
possa antecipar essa aplicação.
De resto, a este propósito, é de anotar que as reclamantes, ao
contrário do alegado na reclamação, não invocaram sequer perante o tribunal a
quo o caso julgado como fundamento da admissibilidade do recurso interposto da
sua decisão: a alegação de que ocorreria violação do caso julgado foi feita
unicamente como fundamento, a par de outros, do pedido de reforma de decisão
anterior do tribunal atinente a outra questão que foi indeferido, sendo o
recurso interposto em termos gerais e apenas a “titulo de cautela” para o caso
de não proceder esse pedido de reforma (fls. 18).
O interesse a acautelar, neste caso, é o de que não seja amputada a
possibilidade do recurso constitucional quando seja desrazoável e inadequado
exigir-se que ele anteveja a possibilidade da aplicação da norma.
Ora, esta situação não acontece seguramente no caso em apreço em que
foram as próprias reclamantes a pedir ao Presidente do Tribunal da Relação de
Évora a aplicação do disposto no art.º 678.º, n.º 2, do CPC e não é desrazoável
e inadequado antever que esse preceito pudesse ser aplicado com outro sentido
que não aquele pressuposto pelas recorrentes.
E não é desrazoável e inadequada a exigência da antevisão da
aplicação do concreto sentido com que o preceito foi aplicado porque,
independentemente de saber-se qual seja o melhor direito a inferir dos preceitos
legais, ele cabe perfeitamente dentro da sua expressão verbal, sendo que esta é
ao mesmo tempo ponto de partida e limite da interpretação, e pode ver-se como
postulado pelo princípio geral, vigente no sistema de recursos, segundo o qual o
tribunal recorrido (e, por via da reclamação, o presidente do tribunal superior
– art.ºs 688.º e 689.º do CPC), aprecia previamente a existência, em concreto,
dos pressupostos do recurso interposto para o tribunal superior.
Por outro lado, cabe notar que a previsibilidade objectiva do
sentido com que o preceito convocado pelas reclamantes foi aplicado não é
arredada pela eventual circunstância de, na ponderação levada a cabo, as
reclamantes estarem convencidas de que essa “interpretação contrariava o sistema
de recursos do CPC e a própria Constituição”. O dever de prudência técnica, no
exercício do mandato judicial, não dispensa a abordagem de outras soluções,
muito embora possa não concordar-se com elas. O relevante é a sua
previsibilidade objectiva.
Finalmente, é de anotar que o preceito em causa – o n.º 2 do art.º
678.º do CPC – não sofreu qualquer alteração na reforma do processo civil de
1995/1996, tendente a explicitar o sentido defendido pelas reclamantes, cuja
consideração seja de relevar para efeitos da previsibilidade objectiva do
sentido normativo aplicado.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelas reclamantes, com taxa de justiça de 20 UCs.
Lisboa, 11/12/2007
Benjamim Rodrigues
Joaquim Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Introdução ao Estudo do Direito, Vol. II, Apontamento das aulas ao curso do
1° ano de Direito, 1983-84, pág. 564.
[2] Como se sabe, os elementos sistemático e histórico da interpretação são
fundamentais no processo de descoberta e investigação dos fins da norma. Neste
sentido, cfr. MÁRIO BicottE CHORÃO, op. cit., pág. 290.
[3] Nestes precisos termos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
18.07.1950 (in. BMJ, nº 20, pág. 280), onde se decidiu o seguinte (sublinhados e
destaques nossos): “(...) o art. 687° do Código de Processo Civil preceitua que
os recursos se interpõem por meio de requerimento em que se exprima a vontade de
recorrer e se indique a espécie de recurso. E nem nessa disposição nem em
qualquer outra se exige que no requerimento de interposição de um recurso se
indiquem os fundamentos do recurso interposto, e muito menos, como é óbvio, que
se demonstre a existência desses fundamentos ou se promova a demonstração de que
existem, como pretende o recorrido. Contudo, porque a admissão do recurso com
fundamento em ofensa de caso julgado, quando se trata de causa de valor inferior
à alçada, constitui um desvio da regra consignada no já citado art. 678°,
torna-se necessário, para que o recurso não possa ser recusado, que o recorrente
invoque expressamente aquele fundamento. Mas basta que essa invocação seja
feita. Por um lado, a demonstração de que a ofensa do caso julgado existe tem o
seu lugar próprio nas respectivas alegações, pois é nelas que se ataca a decisão
recorrida, apontando-se as razões jurídicas baseadas em preceitos legais, pelos
quais o recorrente pretende a alteração ou anulação da decisão de que se
recorre, razões essas que constituem os fundamentos a que alude o art. 690° do
Código de Processo Civil. Por outro lado, o art. 688° do Código referido
[refira-se que este art. 688° corresponde actualmente, na íntegra, ao art. 687°,
nº 3, do CPC), ao enumerar os motivos de indeferimento do requerimento em que se
interpõe um recurso, não indica aquele que o recorrido aponta a fls. 94
[refira-se que, no caso concreto, a fls. 94 dos autos, o réu «opôs-se a que o
recurso fosse admitido, por entender, que, embora o recurso com tal fundamento
seja admissível até ao Supremo, independentemente de alçada, a verdade é que, no
modo de ver do réu, não basta que se alegue ofensa do caso julgado, sendo
necessário promover-se no próprio requerimento de interposição do recurso a
demonstração de que aquela ofensa existe, o que o recorrente não fez»]. E convém
notar que essa enumeração é taxativa”
Também neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.1950
e de 06.04.1976, respectivamente, BMJ, nº 22, pág. 216 e nº 256, pág. 90. Na
doutrina, a autoridade de ALBERTO DOS REIS, RLJ, nº 84, pág. 119.