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Processo n.º 669/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O Ministério Público, junto do Tribunal Judicial de Torres
Vedras, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artºs
70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, e 75.º-A, n.º 1, da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do juiz de
instrução daquele Tribunal, de 14 de Fevereiro de 2007, que não pronunciou o
arguido A., como autor de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo
art. 94.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 252-A/82, de 28 de Junho, por haver
considerado esta disposição organicamente inconstitucional, por haver sido
emitida pelo Governo em matéria de competência reservada da Assembleia da
República, a descoberto de qualquer autorização legislativa, violando o disposto
nos “artºs. 167.º, alínea e) e 168.º, n.º 1, da CRP de 1976”.
2 – Para assim concluir a decisão recorrida discorreu do seguinte
jeito:
«O Dec. Lei nº 252-A/82, de 28/06, como consta do seu preâmbulo, foi publicado
pelo governo ao abrigo do disposto no (então) art. 201°, nº 1, al. a), da
Constituição da República Portuguesa, hoje art. 198°, nº 1, al. a), ou seja, em
matéria não reservada à Assembleia da República.
Todavia, no ser art. 94°, nº 2, o aludido diploma legal consagra que:
“Aqueles que, por qualquer forma, dificultarem ou se opuserem ao cabal
desempenho das funções a que, por lei, os funcionários estejam obrigados,
incorrem no crime de desobediência qualificada previsto na lei penal, além da
responsabilidade disciplinar a que haja lugar”.
Por sua vez o art. 348°, do Código Penal, dispõe:
“Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente
comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente é punido com pena
de prisão até 1 um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples
ou
b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a
correspondente cominação.
2— A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma
disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada “.
Ora, compulsadas ambas as normas, verifica-se que os elementos objectivos do
tipo são alargados no mencionado art. 94º, nº 2, bastando, como alega o arguido,
o simples dificultar o cabal desempenho das funções dos funcionários
competentes.
Por outro lado, não se verifica qualquer referência, e já que a matéria crime é
da competência (reservada) legislativa da A.R., artºs 167°, al. e) e 168°, nº 1,
da C.R.P. de 1976, a uma qualquer lei de autorização legislativa, o que redunda
que a norma em questão padece do vício de inconstitucionalidade orgânica.
Ademais, e no mesmo sentido, salvo o devido respeito por melhor entendimento,
apesar de estar em causa uma norma do Código da Estrada, pronunciou-se o
Tribunal Constitucional, no douto acórdão 574/2006, in D.R. 2ª série, nº 238, de
13/12/06.
Estando o arguido acusado pela prática do crime de desobediência qualificada, p.
p. pelo art. 94°, nº 2, do D.L. 252-A/82, nos termos sobreditos e
reconhecendo-se que tal norma padece do vício de inconstitucionalidade orgânica,
importa decidir-se pela sua não pronúncia.».
3 – Alegando no Tribunal Constitucional, o recorrente concluiu do
seguinte modo:
“1º
A norma constante do artigo 94°, nº 2 do Decreto-Lei nº 252-A/82, de 28/06,
enquanto tipifica, de forma autónoma e inovatória, o crime de desobediência
qualificada relativamente a quem dificultar ou se opuser por qualquer forma ao
cabal desempenho das funções cometidas aos funcionários da DGA, é organicamente
inconstitucional, já que tal diploma legal se mostra editado no exercício da
competência legislativa própria do Governo – e, portanto, desprovido da
indispensável credencial parlamentar.
2º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida”.
4 – Não houve contra-alegação.
B – Fundamentação
5 – A norma cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida – o
n.º 2 do art.º 94° do Decreto-Lei nº 252-A/82, de 28/06 – com base na sua
inconstitucionalidade orgânica dispõe do seguinte modo:
“Aqueles que, por qualquer forma, dificultarem ou se opuserem ao
cabal desempenho das funções a que, por lei, os funcionários estejam obrigados,
incorrem no crime de desobediência qualificada previsto na lei penal, além da
responsabilidade disciplinar a que haja lugar”.
Por seu lado, o art.º 348.º do Código Penal que prevê o crime de
desobediência (qualificada e não qualificada) estipula:
“Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente
comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente é punido com pena
de prisão até 1 um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples
ou
b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a
correspondente cominação.
2— A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma
disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.
Como se vê, a norma constitucionalmente impugnada, conquanto possa
abarcar, no âmbito da sua hipótese, algumas das situações factuais que integram
a hipótese recortada no art.º 348.º do Código Penal, prevê, ainda, a
incriminação pelo crime de desobediência qualificada de condutas ou
comportamentos distintos dos aí contemplados.
O legislador alargou o leque das condutas susceptíveis de serem
puníveis a título do crime de desobediência. Basta ver que o tipo legal de crime
construído no n.º 2 do art.º 94° do Decreto-Lei nº 252-A/82 se basta com uma
conduta que, “por qualquer forma, dificulte ou se oponha ao cabal desempenho das
funções a que, por lei, os funcionários estejam obrigados”, não sendo necessária
a “falta de obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente
comunicados e emanados de autoridade ou funcionário” (cf. para casos de
situações em que ocorreram alterações dos elementos factuais dos respectivos
tipos legais de crime os Acs. 574/06, 14/99, 96/99, 469/99, 91/03 e 350/03,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Como consta do seu preâmbulo, o Decreto-Lei n.º 252-A/82, de 28 de
Junho foi emitido pelo Governo ao abrigo do disposto no então art.º 291.º, n.º
1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa [hoje art.º 198.º, n.º 1,
alínea a)] ou seja, no exercício da função legislativa de fazer decretos-leis em
matérias não reservadas à Assembleia da República.
Todavia, o art.º 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição reservava
[como continua hoje a reservar, agora no art.º 165.º, n.º 1, alínea c)] à
Assembleia da República a competência para legislar, salvo autorização ao
Governo, sobre a matéria de “definição dos crimes, penas e medidas de segurança
e respectivos pressupostos”.
O alargamento da hipótese de as condutas serem susceptíveis de
integrar um tipo legal de crime corresponde a uma definição dos crimes e
respectivos pressupostos.
Sendo assim, o Governo não poderia emitir a norma aqui questionada,
salvo se estivesse munido de autorização legislativa da Assembleia da República.
Ora, tal não aconteceu.
Assim sendo – como bem ajuizou a decisão recorrida – a norma em
causa é constitucionalmente inválida por ofensa àqueles preceito do art.º 168.º,
n.º 1, alínea c) da CRP, na versão vigente à data da sua edição ou seja, padece
de inconstitucionalidade orgânica.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo
168.º, n.º 1, alínea c) da Constituição, na versão então vigente (1982), a norma
constante do artigo 94.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 252-A/82, de 28 de Junho;
b) Confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 30 de Outubro de 2007
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos