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Processo n.º 582/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa,
veio interpor recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea g) da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal
Constitucional), do Acórdão proferido naquele Tribunal em 17 de Abril de 2007,
em que era Recorrente A..
Vem o recurso limitado ao segmento do decidido que julgou que, no domínio da
vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a
declaração de contumácia prevista no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal (versão originária) constituía causa de suspensão de prescrição de
procedimento criminal, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, alínea a) do Código
Penal (versão originária), dimensão normativa que foi julgada inconstitucional,
por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição, pelo Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 110/2007, publicado no Diário da República, II
Série, de 20 de Março de 2007.
O recurso foi admitido.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal produziu alegações,
concluindo pela seguinte forma:
“É inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição, a
norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º1, alínea a) do
Código Penal e do artigo 336.º, n.º1, do Código de Processo Penal, nas redacções
originárias, na interpretação de acordo com a qual a prescrição do procedimento
criminal se suspende com a declaração de contumácia.”
Não foram produzidas contra-alegações.
A fls. 253, proferiu o Relator o seguinte despacho:
“Notifique o Recorrente para, no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciar,
querendo, sobre a eventualidade de se verificar a existência de questão prévia
que obste ao conhecimento do recurso pelo facto de não se encontrar preenchido
um dos pressupostos essenciais, face à competência do Tribunal Constitucional
para conhecer de questões atinentes a violações do princípio da legalidade
penal, consubstanciado, nomeadamente, nos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3 da
Constituição.”
Em resposta, o representante do Ministério Público veio dizer que as alegações
anteriormente apresentadas “foram produzidas no pressuposto da não verificação
de causas impeditivas do conhecimento do objecto do recurso.”
Decidindo.
II – Fundamentação
Estamos perante um recurso obrigatório interposto pelo Exmo. Magistrado do
Ministério Público, junto da Relação de Lisboa, fundando-se no disposto no
artigo 70.º, n.º 1, alínea g) da Lei do Tribunal Constitucional.
Na decisão recorrida e, no que ora importa, decidiu-se que:
“A razão lógica da prescrição de fazer extinguir o direito de punir, pelo seu
não uso tempestivo, é a imputabilidade da inércia a quem o pode e deve exercer.
Nos casos em que o não exercício do direito de punir não seja imputável ao
titular do poder punitivo, mas a quem deve sofrer a punição, compreende-se a
opção do legislador em evitar a prescrição, o que se traduziria num benefício ao
infractor, nas palavras do acórdão de Fixação de Jurisprudência citado ‘...de
outra maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à
alçada da justiça’.
Ora, a declaração e manutenção da contumácia é totalmente imputável ao arguido,
à sua declaração é dada toda a publicidade, para que o mesmo tenha conhecimento
da situação, nomeadamente através de publicação no Diário da República, razão
por que o não andamento do processo só pode ser imputável a ele, o que justifica
a suspensão do prazo de prescrição.
Nestes termos, a decisão recorrida não pode ser mantida.”
Por sua vez, no referenciado Acórdão n.º 110/2007 este Tribunal Constitucional
decidiu o seguinte:
“Em face disto, tem de concluir-se que a norma resultante das disposições
conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, e
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na redacção originária,
interpretadas no sentido de que a declaração de contumácia constituía causa de
suspensão de prescrição do procedimento criminal, é inconstitucional, por
violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (n.ºs 1 e 3
do artigo 29.º da Constituição). Alcançada esta conclusão, torna‑se dispensável
a análise de outros fundamentos de inconstitucionalidade, igualmente invocados
pelo recorrente.”
Verifica-se, assim, que no Acórdão acabado de extractar foi julgada
inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da
República Portuguesa, a norma extraída das aludidas disposições legais, na
interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende
com a declaração de contumácia.
No entanto, no que se refere a esta matéria, o Tribunal Constitucional não tem
defendido, em termos uniformes, a mencionada tese (constante, também, do Acórdão
n.º 412/2003, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Fevereiro de
2004).
Com efeito, a jurisprudência [tendencialmente maioritária] deste Tribunal
postula que não constitui questão normativa a que, em áreas constitucionalmente
abrangidas pelo princípio da legalidade, na sua vertente de tipicidade
(portanto, nos campos do direito fiscal e do direito penal), se traduz na
sindicância do processo interpretativo efectuado pela instância recorrida
extravasando, por conseguinte, as competências que lhe assistem em sede de
fiscalização concreta da constitucionalidade.
Com efeito, como se escreveu no Acórdão n.º 331/2003 (publicado no Diário da
República, II Série, de 17 de Outubro), a propósito de questão semelhante à dos
autos, “em rectas contas, aquilo que o juiz a quo veio a considerar desarmónico
com a lei fundamental foi uma interpretação dada a um dado conjunto normativo
(…) e da qual resultava, ao fim e ao resto, um entendimento que extravasava o
campo semântico natural dos conceitos jurídicos utilizados pelo legislador, o
que, por consequenciar uma interpretação ‘extensiva’ ou ‘analógica’,
conflituaria com o princípio da legalidade criminal. Ora, se assim é, então
haverá que concluir-se que aquilo que, verdadeiramente, foi censurado por aquele
juiz foi, não o confronto directo com a Constituição (…) mas sim a determinação
d âmbito aplicativo que a jurisprudência dos tribunais (ou de alguns tribunais)
deu àquele mesmo conjunto normativo.”
O problema da concretização da competência do Tribunal Constitucional para
conhecer de questões atinentes à violação do princípio da legalidade penal ou
fiscal tem sido, como se disse, objecto de díspares abordagens na jurisprudência
constitucional.
No entanto, embora com votos de vencido, nas duas ocasiões em que o Plenário se
pronunciou sobre esta questão, vingou a tese de que não assiste competência
àquele sempre que o objecto do recurso incida já não sobre uma norma ou segmento
normativo mas sobre o resultado de actividade hermenêutica desenvolvida pelo
Tribunal a quo cujo resultado extravasa, mercê de interpretação extensiva ou
analógica, o campo semântico dos conceitos jurídicos mobilizados pelo
legislador.
Assim, conforme se decidiu no Acórdão n.º 674/99 (publicado no Diário da
República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000),
“ […] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para
conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter
procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
operação equivalente, designadamente a uma interpretação ‘baseada em raciocínios
analógicos’, o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional
possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos
tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. […]”
Exarou-se, ainda, no aludido aresto:
“ […] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar,
em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já
que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia
ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal).
E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal
Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade
de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se
dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das
respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma
legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu ‘sentido natural’ (e
qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da
separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição
com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação
atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia
da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de
ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do
Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema
de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei
Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos
recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de
inconstitucionalidade normativa.”
Com efeito, e de forma semelhante à decidida no Acórdão n.º 674/99, que vimos
acompanhando, posição que viria a ser retomada no Acórdão n.º 196/2003, também
do Plenário (publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Outubro de
2003), para ser posteriormente contrariada pelo Acórdão n.º 110/2007 (publicado
no Diário da República, II Série, de 20 de Março de 2007), o que se questiona,
nos presentes autos, não é que o conteúdo das normas, com a interpretação
adoptada, seja compatível com o texto constitucional. O que se questiona é
tão-somente que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através
de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma
desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, violaria o
princípio da legalidade penal.
Deste modo, e como referiu o Conselheiro Benjamim Rodrigues, na declaração de
voto aposta ao Acórdão n.º 110/2007, citado,
“(…) não constitui uma questão de constitucionalidade normativa a apreciação da
correcção do processo hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a quo, tendente a
determinar o sentido das normas, bem como do resultado a que o mesmo chegou. O
princípio da legalidade penal ou (fiscal) opera como mero limite constitucional
à admissibilidade do resultado interpretativo a que se chegou no processo de
interpretação, obrigando o intérprete a excluir aqueles resultados que não
tenham na letra da lei um mínimo de correspondência verbal. Deste modo, ele não
é portador de qualquer sentido axiológico substancial com o qual possa ser
contrastado directamente certa norma de direito infraconstitucional, para
aferir, da sua validade, mas tão só para excluir o resultado de um processo
concreto de conhecimento judicial da norma.”
Assim, entendendo-se que, no caso dos autos, não está em causa uma verdadeira
questão de constitucionalidade normativa, mas apenas a sindicância do resultado
alcançado pelo processo interpretativo efectuado pelo Tribunal a quo, resultante
da leitura combinada dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nas respectivas redacções
originárias, falha um dos pressupostos de conhecimento do recurso interposto ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea g) da Lei do Tribunal Constitucional –
aplicação de norma anteriormente julgada inconstitucional.
III – Decisão
Nestes termos, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em não tomar
conhecimento do objecto do recurso.
Não são devidas custas.
Lisboa, 17 de Outubro de 2007
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, porque entendo, pelas razões expostas no
acórdão n.º 412/2003, que subscrevi, tratar-se aqui de uma questão de
constitucionalidade normativa. Declararia a inconstitucionalidade, digo,
julgaria a norma inconstitucional pelas razões aduzidas no acórdão n.º 110/2007,
que também subscrevi.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida, por entender que se verificavam, no caso, os requisitos do
recurso previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional. Designadamente o requisito
da aplicação de norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal
Constitucional. No Acórdão nº 110/2007, este Tribunal decidiu julgar
inconstitucional, por violação do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da
República, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119º, nº 1,
alínea a), do Código Penal e do artigo 336º, nº 1, do Código de Processo Penal,
ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do
procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
Neste Acórdão foi apreciada uma questão de inconstitucionalidade normativa,
cognoscível pelo Tribunal Constitucional em sede de recurso de
constitucionalidade. A circunstância de a norma aplicada por uma decisão
recorrida ser obtida através de um processo que recorra à interpretação
extensiva ou à analogia não pode obstar a que tal norma seja confrontada com o
princípio da legalidade criminal (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da
República Portuguesa). Pelo contrário, concluir de outro modo significa recusar
a protecção da justiça constitucional nos casos de violação destas garantias
(cf. a declaração de voto do Conselheiro Sousa Brito no Acórdão nº 674/1999,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Num domínio onde é de afirmar que
o Estado de direito (artigo 2.º da Constituição) deve proteger o indivíduo não
apenas através do direito penal, mas também do direito penal (cf. Claus Roxin,
Strafrecht. Allgemeiner Teil. Grundlagen. Der Aufbau der Verbrechenslehre,
München, 1992, p. 67).
Constitui entendimento constante deste Tribunal que é objecto de apreciação do
ponto de vista jurídico-constitucional a norma na sua totalidade, em determinado
segmento ou segundo certa interpretação (cf., entre muitos outros, o Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 232/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), pelo que a identificação de uma determinada
dimensão normativa, necessariamente dotada de generalidade e de abstracção, não
pode deixar de ser apreciada, entre outros, à luz do parâmetro constante do
artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.
O que não pode é afastar-se a apreciação de “certas questões de
constitucionalidade da fiscalização do Tribunal Constitucional não em função do
seu objecto (constituído por uma verdadeira norma), mas em função do seu
fundamento: a saber, a circunstância de a norma obtida resultar de determinado
processo interpretativo desconforme com o princípio da legalidade penal” (cf. a
declaração de voto da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza no Acórdão nº
383/2000 e, no mesmo sentido, as declarações de voto dos Conselheiros Mário
Torres e Paulo Mota Pinto no Acórdão nº 196/2003, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Como o recurso à interpretação extensiva ou à
analogia, em si mesmo, não afasta o cunho normativo do objecto do recurso de
constitucionalidade – admite-se o confronto da norma assim obtida com outros
parâmetros constitucionais –, a questão de inconstitucionalidade traduz-se,
precisamente, em saber “se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos
contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a
exigência de lex certa que lhe é ínsita” (cf. Acórdão nº 205/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Somos confrontados com a génese da norma, com o processo de criação do critério
de decisão do caso concreto, mas tal não pode obstar à apreciação do resultado
deste processo, não pode excluir o controlo de constitucionalidade da norma, por
referência aos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º Rui Medeiros conclui que, “sobretudo,
num cenário em que se reconhece que a fiscalização de normas extravasa, em larga
medida, do controlo da actividade legislativa e em que não se contesta que se
está perante uma solução abstractamente enunciada para uma aplicação genérica e
não simplesmente perante o controlo da concreta decisão de um caso jurídico, é
duvidoso que se justifique – sem incorrer em conceptualismo excessivo – a
transformação da especificidade metodológico-dogmática do problema no argumento
central para recusar a competência do Tribunal Constitucional” (“A força
expansiva do conceito de norma no sistema português de fiscalização concentrada
da constitucionalidade”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques
Guedes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004, p. 194).
Maria João Antunes