Imprimir acórdão
Processo n.º 1104/06
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I − Relatório
1. A. e outros vieram reclamar, de acordo com o disposto nos artigos 688.º e
689.º do Código de Processo Civil, para o Presidente do Tribunal da Relação de
Lisboa contra a retenção do recurso proferido na 3.ª Vara Cível de Lisboa,
admitido “a subir nos termos do disposto no artigo 735º do Código de Processo
Civil.”
Invocaram, nomeadamente:
“ 20º- O artigo 734º nº 2, interpretado no sentido de que o recurso interposto
de decisão de indeferimento de suprimento de nulidade por incumprimento do
disposto no artigo 549º do Código de Processo Civil, é inconstitucional por
violar os princípios e as normas dos artigos 2º, 20º, nºs 1 e 4 e 202º, nº 2 da
CRP. Estas normas e princípios garantem o acesso ao direito em prazo razoável e
mediante processo equitativo – não a violação do direito mediante prova feita
com falsificação de documentos.
21º- Também o artigo 689º nº1 do Código de Processo Civil, interpretado no
sentido de que a sua norma confere poderes para consolidar decisão de retenção
de recurso que visa prevenir o cometimento de ilícito penal, é inconstitucional
pelas razões já acima aduzidas.”
O Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa veio decidir a reclamação a
fls. 55, pela seguinte forma:
“ […]
2. Das normas conjugadas dos artigos 734.° e 735.° do Código de Processo Civil
resulta que a regra para a subida dos agravos é a subida diferida. Só quando se
verifiquem algumas situações expressamente previstas na lei, como é o caso das
previstas no artigo 734.°, é que os recursos de agravo subirão imediatamente.
Com o devido respeito por opinião contrária, entendemos que ao caso não é
aplicável qualquer das excepções previstas para que ao recurso de agravo
admitido tivesse sido fixada a subida imediata.
A decisão recorrida, como os próprios reclamantes acabam por reconhecer, não põe
termo ao processo. O que sucede, como invocam, é que os colocam numa situação em
que são obrigados a litigar com alguém que eles entendem não deveriam estar nos
autos. Mas isto não é pôr termo aos autos. Pelo contrário, isto significa que os
autos prosseguem. Não é pois aplicável a alínea a) do n.° 1 do artigo 734.° do
Código de Processo Civil.
Em relação à aplicação do artigo 740.° do Código de Processo Civil, esta
disposição reporta-se ao efeito do recurso e tal não pode ser objecto da
reclamação prevista no artigo 688.° do Código de Processo Civil.
Como justificação da subida imediata do agravo invocam também os reclamantes a
absoluta inutilidade do recurso no caso da sua retenção (artigo 734.° n.° 2 do
Código de Processo Civil).
Entendemos que não é o caso dos autos.
O recurso cuja retenção o torna absolutamente inútil é apenas aquele cujo
resultado, seja ele qual for, devido à sua retenção, já não pode ter qualquer
eficácia dentro do processo.
Não pode dizer-se que a subida diferida de um recurso o torna absolutamente
inútil pelo simples facto de o seu provimento possibilitar a anulação de alguns
actos, incluindo até a própria desocupação da casa de habitação, no caso
concreto destes autos. Esta é a consequência normal do provimento de qualquer
recurso de agravo.
No caso concreto, não obstante a subida diferida e na hipótese de provimento do
agravo, a consequência da revogação do despacho reclamado consistiria em
anularem-se diligências já realizadas. Mas, embora se trate de uma consequência
que implica retrocesso no andamento dos autos e que pode acarretar a anulação ou
reformulação de actos praticados no desenvolvimento de tal despacho, nem por
isso se pode concluir que o recurso se tornou absolutamente inútil.
Assim sempre tal recurso manteria plena utilidade, apesar das consequências no
andamento dos autos.
3. Invocam os reclamantes que a decisão do Ex.mo Juiz da 1ª Instância viola
direitos fundamentais, de natureza substantiva e processual, legal e
constitucionalmente consagrados.
No âmbito da reclamação não nos compete apreciar a correcção da decisão
recorrida mas apenas decidir se o recurso deve subir imediatamente ou manter a
subida diferida já fixada.
E, com o devido respeito, a subida diferida, não ofende qualquer direito
constitucionalmente garantido aos reclamantes.
4. Pelo exposto indefere-se a presente reclamação.”
Os então reclamantes vieram pedir a aclaração do despacho do Presidente da
Relação de Lisboa o qual considerou que nada de relevante havia a aclarar.
Inconformados com o assim decidido vieram, a fls. 87, interpor recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, invocando que:
“[…]
1. O presente requerimento tem de ser fundamentado por força do disposto no art°
72°, n° 2, da Lei n° 28/82, de 15.11 (LTC), e 280°, n° 1, al. b), da
Constituição da República (CRP).
2. O despacho impugnado é de manifesta e ostensiva recusa de pronúncia sobre as
obscuridades/ambiguidades do texto do despacho aclarando, de 12.1.2006, não
consentânea com uma decisão jurisdicional.
3. Os despachos impugnados não são decisões jurisdicionais: são decisões
orgânica e materialmente administrativas.
Enquanto tal, o despacho de 12.1.2006 é recorrível por força do disposto no art°
268°, n° 4, da Constituição da República. Sendo este preceito constitucional
directamente vinculativo para todas as entidades públicas, ex vi art° 18°, n° 1,
da mesma LEI.
A norma do art° 689º, n° 2, do CPC, é inconstitucional, por violar as normas dos
art°s 20°, n° 1, e 268°, n° 4, da Constituição. Pelo que a sua aplicação
encontra-se proibida pela própria Constituição (cf. art°s 204° e 266º).
4. Os despachos impugnados são organicamente administrativos porque o órgão de
que promanam é uma entidade administrativa. Com efeito,
4.1. O órgão designado Presidente dos Tribunais das Relações não se encontra
previsto na Constituição da República (CRP, doravante). Pelo que, tal órgão não
integra a função jurisdicional a que se referem os artigos 202° a 205° da Lei
Fundamental, nem a organização dos tribunais a que se referem os artigos 209° a
211º da mesma LEI.
4.2. Os tribunais são órgãos de soberania (cf. artigo 202°, n° 1, da CRP).
A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos tribunais enquanto
órgãos de soberania, são os definidos na CRP (cf. artigo 110º, n°2, da CRP).
4.3. Inexistem órgãos de soberania criados pela lei ordinária, ainda que emitida
pela Assembleia da República quando desprovida de poderes constituintes.
Inexistem outros órgãos de soberania, para além dos tribunais,
constitucionalmente designados para exercer a função jurisdicional.
4.4. O órgão Presidente dos Tribunais das Relações tem existência meramente
legal (lei ordinária). Actualmente, ele encontra-se previsto na Lei n° 38/87, de
23 de Dezembro, alterada pela Lei n° 3/99, de 13 de Janeiro, artigos 58° e 59°
(LOFTJ, doravante).
4.5. A Constituição da República não permite a designação de juízes dos
tribunais comuns por eleição. O titular do órgão em causa, foi designado por
eleição.
4.6. Enquanto entidade administrativa, o titular de tal cargo não goza do
estatuto de irresponsabilidade consagrado no art° 216°, n° 2, da Constituição.
Pelo contrário, responde, ele e o Estado, pelos seus actos, nos termos do
disposto no art° 22º da LEI BÁSICA.
5. Os despachos impugnados são materialmente administrativos porque não obedecem
a critérios de jurisdicidade.
Com efeito,
5.1. As suas decisões não obedecem a critérios de legalidade estrita. São
decisões de conveniência ou de oportunidade escuradas num pretenso estatuto da
sua insindicabilidade jurisdicional.
O caso dos autos é ilustrativo dessa natureza material não jurisdicional: as
decisões impugnadas impedem que um órgão jurisdicional revogue uma decisão
contra direito que
• impede os autores de prosseguirem a lide contra o réu contra quem instauraram
a acção,
• impõe aos autores, que litiguem contra quem, substantivamente, não mantêm
litígio — facto material e processualmente impossível,
• impede que se descubra a verdade sobre os actos ilícitos praticados pelo réu
contra quem foi intentada a acção.
5.2. A tal natureza de ‘decisão de conveniência ou de oportunidade’ já foi
designada de ‘atitude prudencial’ e ‘decisão caso a caso’ em despacho proferido
nos autos de reclamação n° 1452/05, que correu na 7ª Secção do Supremo Tribunal
de Justiça. Com a devida vénia, reproduz-se o respectivo texto relativo ao
exercício da competência prevista nos art°s 688° e 689° do CPC:
• Exercendo tal competência, por alguns tida por inconstitucional porque,
rigorosamente, não se trata de actividade jurisdicional,
• não está o presidente obrigado à rígida observância de critérios legais,
• devendo antes, numa atitude prudencial, avaliar, em cada caso, se a questão da
admissibilidade ou do momento de subida dos recursos, deve ser apresentada
decidida pelo tribunal superior. (??)
5.3. A competência a que se refere o texto acima transcrito, decorre de norma,
ela também, inconstitucional: a do art° 688°, n° 1, do CPC. Com efeito:
5.3.1. Não pode ser subtraída, pela lei ordinária, à função jurisdicional do
Estado cometida aos tribunais pelos art°s 110°, n°2, e 202°, n°s 1 e 2, da CRP,
a competência para apreciar da juridicidade das decisões dos tribunais.
5.3.2. Não pode ser cometida, pela lei ordinária, a órgão administrativo,
competência jurisdicional para decidir sobre decisões jurisdicionais dos
tribunais. Pelo que,
5.3.3. A norma do art° 688°, n° 1, do CPC, é inconstitucional por violar as
normas dos artigos 110°, n°2, e 202°, n°s 1 e 2, daCRP.
6. O direito ao recurso contencioso de uma decisão administrativa é um direito
fundamental consagrado no art° 268°, n° 4, da Constituição, vinculativo para
todas as entidades públicas por força do disposto no art° 18°, n° 1, da mesma
LEI BÁSICA.
Tal direito encontra também fundamento no art° 20°, n° 1, da Constituição.
A norma do art° 689°, n° 2, do CPC, que impede o recurso de uma decisão orgânica
e materialmente administrativa, ofende o conteúdo essencial de um direito
fundamental, porque o elimina contra disposição constitucional expressa.
7. Os despachos impugnados violam, pois, o conteúdo essencial de um direito
fundamental. Pelo que, são nulos por cominação dos art°s 132º, n° 2, al. b), do
Código do Procedimento Administrativo, e 3°, n° 3, da Constituição da República.
8. Os tribunais administrativos são incompetentes para apreciar da actividade
administrativa dos tribunais judiciais. Assim, por força do disposto no art° 66°
do CPC, é competente para apreciar da impugnação das decisões tomadas no âmbito
dos art°s 688°, n° 1, e 689°, n° 2, do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça, orgão
jurisdicional hierarquicamente superior aos Presidentes dos Tribunais das
Relações, com fundamento no art° 755°, n° 1, do CPC.
9. Impõe-se o suprimento da nulidade dos despachos impugnados, pelo seu autor,
por força do disposto no art° 266° da Constituição da República. Caso o autor
dos despachos impugnados se recuse a suprir a nulidade dos mesmos, terá tal
vício que ser arguido e suprido na concretização da instância de recurso.
10. Atento o exposto, não pode o presente requerimento deixar de ser deferido,
e, caso o autor dos despachos impugnados não supra a nulidade destes, admitido o
recurso ora interposto como agravo a subir imediatamente, nos próprios autos e
com efeito suspensivo.”
O Presidente da Relação não admitiu os recursos interpostos por despacho de fls.
98, nos seguintes termos:
“[…]
Do despacho de esclarecimento não cabe recurso (art.º 670.º, n.º 2 do
C.P.Civil).
Da decisão da reclamação também não é admissível recurso, nos termos do disposto
no artigo 689.º, n.º 2 do C.P.Civil.
Assim, não se admitem os recursos interpostos.”
2. Dirigiram, então, os Autores a reclamação de fls. 106, ao Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitida por despacho do Presidente da
Relação de Lisboa de fls. 109.
O Exmo. Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça decidiu pelo não
conhecimento da reclamação nos seguintes termos:
“ […]
Os despachos questionados foram proferidos pelo Presidente do Tribunal da
Relação de Lisboa em conhecimento de uma reclamação e de um pedido de aclaração,
que foram indeferidos.
Ora, os poderes de cognição do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
limitam-se nos termos do n.° 1 do art. 688.° do CPC, à apreciação do despacho do
relator da Relação que não admite o recurso ou retém a sua subida.
É-lhe assim estranho o conhecimento de qualquer impugnação de um despacho de um
presidente de uma Relação; aliás, o art. 689°, n.° 2, do CPC é claro no sentido
de não ser admitida impugnação da decisão do presidente.
No que concerne à inconstitucionalidade assacada pelos reclamantes aos arts.
688.°, n.° 1, e 689.°, n.° 2, do CPC não colhe, por a reclamação neles prevista
se configurar como um verdadeiro recurso, na linha tradicional do nosso sistema
processual civil.
Aliás, a circunstância de se denominar reclamação não lhe retira a natureza de
meio de impugnação judicial, por, no nosso processo civil, o recurso não esgotar
a contestação de uma decisão emanada de um tribunal (cf. Amâncio Ferreira,
Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pp. 69 e segs.).”
3. Veio então a ora Recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional,
invocando, nomeadamente, o seguinte:
“ […]
4. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1,
alínea b), da CRP, e 70°, n° 1, alínea b), da LTC.
5. As normas cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada são as
seguintes:
a) A do artigo 688°, n° 1, do CPC;
b) A do artigo 689°, n° 1, do CPC;
e) A do artigo 689°, n°2, do CPC;
d) A do artigo 734°, n°2, do CPC.
6. As normas e os princípios constitucionais que tais normas violam e as peças
processuais em que tal questão foi suscitada são:
a) A do artigo 688°, n° 1, do CPC, viola as normas e os princípios dos artigos
110º, 111°, n°2, 202°, n°s 1 e 2, 203°, e 216°, n° 1, da CRP — o que foi alegado
nos requerimentos 22.6. 2006 e 28.9.2006 (datas do registo postal);
b) A do artigo 689°, n° 1, do CPC, viola as normas e os princípios dos 1°, 2°,
18°, n° 1, 20°, n°s 1, 4 e 5, 110°, 111°, n° 2, 202°, n°s 1 e 2, 203° e 216°, n°
1, da CRP — o que foi alegado nos requerimentos de 4.11.2005, 22.6.2006 e
28.9.2006, e o é no presente requerimento quanto à norma do artigo 111º, n° 2,
por constituir decisão surpresa a delegação de poderes exercitada no último dos
despachos recorridos;
c) A do artigo 689°, n° 2, do CPC, viola a norma do artigo 268°, n° 4, da CRP,
tendo em conta as normas e os princípios dos artigos 110°, 111°, n° 2, 202, n°s
1 e 2, 203° e 216°, n° 1, da CRP — o que foi alegado nos requerimentos de
4.11.2005, 22.6.2006 e 28.9.2006;
d) A do artigo 734°, no 2, do CPC, viola as normas e os princípios dos artigos
2°, 20°, n°s 1 e 4, e 202°, n° 2, da CRP — o que foi alegado no requerimento de
4.11.2005, e implícito no requerimento de 30.1.2006.
[…]”
Foi admitido o recurso por despacho de fls. 135.
Notificada para produzir alegações, concluiu a Recorrente nos seguintes termos:
“1ª - Integra as questões de inconstitucionalidade das normas dos artigos 688°,
nº 1, 689°, n°s 1 e 2, a identificação da entidade neles prevista competente
para resolver a reclamação a que se referem, os critérios que presidem à sua
produção, e a sua força jurídica, pelo que se pede a admissão nos autos dos dois
documentos ora oferecidos.
2ª - A inconstitucionalidade da norma do artigo 688°, n° 1, foi suscitada no
requerimento de interposição de recurso para o STJ, de 22.6.2006, tendo o
Presidente da Relação de Lisboa indeferido tal requerimento com fundamento na
norma — também ela já arguida de inconstitucionalidade — do artigo 689°, n° 2,
do mesmo código, e tendo deixado de pronunciar-se sobre ambas as questões. Em
consequência de tal decisão, foi deduzida reclamação para o Presidente do STJ,
por requerimento de 28.9.2006, em que foi reiterada a arguição de
inconstitucionalidade das ditas normas. Tal reclamação foi indeferida por
despacho de 21.11.2006, do Vice-Presidente integrante da Secção Criminal, em
quem o Presidente não havia delegado poderes para reclamações distribuídas às
secções cíveis. Esta norma foi aplicada em todas as decisões recorridas, e a sua
inconstitucionalidade voltou a ser arguida no requerimento de interposição do
recurso para esse Alto Tribunal.
3ª - Segundo o dito despacho de 21.11.2006, as normas dos artigos 688°, n° 1,
689°, n° 1, e 689°, n° 2, regulam um ‘verdadeiro recurso na linha tradicional do
nosso sistema processual civil’. No entendimento da recorrente, tal dimensão
normativa daqueles preceitos legais, é ainda mais manifestamente
inconstitucional. A inconstitucionalidade da norma do artigo 688°, n° 1, do CPC,
em qualquer das sindicadas interpretações, revela-se na força normativa dos
artigos 76°, n°4, e 77°, n° 1, da LTC, e nos princípios e normas constitucionais
que estes concretizam. Os princípios e as normas constitucionais infringidos
pela norma do artigo 688°, n° 1, do CPC, com o sentido dos despachos de
12.1.2006 e 21.11.2006, são os dos artigos 2°, 20º, n°s 1 e 4, 32°, n°9, 110°,
111°, 202°, n°s 1 e 2, 203°, 216°, n° 1, e 217º, n° 1, da CRP. Conforme acima
alegado, o presidente dos tribunais de recurso não é um órgão competente para
exercer a função jurisdicional do Estado; os órgãos que têm essa competência não
a podem exercer mediante delegação de poderes; a garantia constitucional do juiz
legal não permite que um juiz das secções criminais do STJ assuma motu proprio
competências jurisdicionais que o presidente do STJ não tem, e nele não delegou.
4ª - Segundo a norma do artigo 689°, n° 1, do CPC, na interpretação feita no
impugnado despacho de 21.11.2006, a fls 124/5, a resolução nele prevista pode
ser proferida por um Vice-Presidente do STJ, em quem o Presidente não haja
delegado poderes, e corresponde à decisão de um recurso. Tal norma infringe os
mesmos princípios e normas constitucionais que são infringidos pela do artigo
688°, n° 1, do mesmo código já acima referidos.
5ª - A inconstitucionalidade da norma do artigo 689°, n° 1, do CPC, foi
suscitada no requerimento de 4.11.2005, e reiterada nos requerimentos de
30.1.2006, 22.6.2006 e 7.12.2006. Os impugnados despachos de 12.1.2006,
29.5.2006, 11.9.2006 e 21.11.2006, deixaram de pronunciar-se sobre essa questão.
Mas foi com o sentido arguido que ela foi, neles, aplicada: o de que a resolução
prevista no n° 1 daquele artigo pode ser profunda sem subordinação a estritos
critérios legais, e segundo critérios de conveniência e oportunidade, numa
atitude prudencial, caso a caso, conforme fora previamente sindicado pela ora
recorrente, e efectivamente aconteceu in casu. Tal norma infringe as normas dos
artigos 20°, n° 1, e 202°, n°2, da CRP.
6ª - A inconstitucionalidade da norma do artigo 689°, n° 1, do CPC, resulta
também de, segundo o impugnado despacho de 12.1.2006, confirmado pelo de
29.5.2006, a resolução nela prevista poder ser proferida com abstracção da
correcção da decisão recorrida mesmo quando esta favorece a prática de
infracções criminais cujos factos dela são objecto, impede o prosseguimento da
lide contra o réu responsável pelos mesmos, e impõe a litigância contra terceiro
que não é titular do interesse que constitui objecto da relação controvertida.
Tal norma, conjugada com as dos artigos 688°, n° 1, e 689º, n° 2, do mesmo
código, infringe os princípios e as normas dos artigos 1°, 2°, 18°, n° 2, 20°,
n°s 1, 4 e 5, 110°, 202°, nºs 1 e 2, 203°, 216°, n°1 e 217°, n°1, da CRP.
7ª - A inconstitucionalidade da norma do artigo 689°, n° 2, do CPC, foi
suscitada no requerimento de 4.11.2005, reiterada nos requerimentos de 22.6.2006
e 28.9.2006. Os despachos de 12.1.2006, 29.5.2006 e 11.9.2006 deixaram de
pronunciar-se sobre tal questão, mas fizeram aplicação da respectiva norma. O
despacho de 21.11.2006 faz dela aplicação, e rejeita, expressamente, a
respectiva arguição. Esta foi mantida no requerimento de interposição do recurso
para esse Alto Tribunal.
8ª - A norma do artigo 689°, n°2, na sua dupla dimensão (primeira e segunda
partes), infringe os princípios e as normas dos artigos 20°, n°s 1 e 4, e 268°,
n°4, da CRP, face ao disposto nos artigos 110°, 111°, n°2, 202°, n°s 1 e 2,
216°, n° 1, e 217°,n° 1, da mesma.
9ª - Da inconstitucionalidade das normas dos artigos 688°, n° 1 e 689°, n° 1, do
CPC, resulta, necessariamente, a inconstitucionalidade da do n°2 deste último.
10ª - A natureza não jurisdicional da resolução a que se referem as normas do
artigo 689°, n°s 1 e 2, de CPC, resulta também do que nesta se dispõe quando
aquela é favorável ao reclamante: a sua não vinculatividade para o tribunal de
recurso. Mas, o resultado imediato de tal resolução — emissão de uma ordem ao
tribunal recorrido - é atentatório da independência e dignidade dos tribunais.
Não tendo, tal resolução, de per se força jurídica bastante para reconhecer o
direito reclamado, também a não tem para denegar o mesmo direito. Ela não é
idónea para constituir caso julgado, e não tem a força vinculativa do art° 205°,
n°2, da CRP. Negando o direito ao recurso, ela viola a norma do artigo 268°,
n°4, da CRP. Tal norma foi aplicada nos despachos de 11.9.2006, 2.10.2006 e
21.11.2006.
11ª - A inconstitucionalidade da norma do artigo 734°, n° 2, do CPC, foi arguida
no requerimento de 4.11.2005. O despacho de 12.1.2006, objecto de recurso para o
STJ, deixou de pronunciar-se sobre essa questão, mas, dela, fez aplicação. O
despacho de 29.5.2006 nega os pertinentes pedidos de esclarecimento. No
requerimento de interposição do recurso para esse Alto Tribunal, foi mantida
aquela arguição.
12ª - A inconstitucionalidade da norma do artigo 734°, n° 2, do CPC, resulta de
ela conflituar com o parâmetro constitucional do prazo razoável, e com o
princípio constitucional da determinabilidade do sentido jurídico dos preceitos
legais, implícita no princípio do Estado de direito democrático na sua dimensão
inerente à tutela da confiança e segurança jurídica que aquele compreende.
Acresce que, na interpretação do despacho de 12.1.2006, segundo a qual o recurso
cuja retenção o torna absolutamente inútil é apenas aquele cujo resultado, seja
ele qual for, devida à sua retenção, já não pode ter qualquer eficácia dentro do
processo, tal norma é, também, inconstitucional por:
a) impedir o acesso ao direito e aos tribunais em tempo útil,
b) implicar ofensa à dignidade da pessoa humana obrigando-a a litigar com quem
não mantém conflito de interesses nem substantivos nem processuais,
c) negar o direito à decisão da causa em prazo razoável,
d) violar a garantia constitucional de que aos tribunais, na administração da
justiça, incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos e defender a legalidade democrática,
e) favorecer a plena consumação de infracções criminais, negando a tutela de
direitos pessoais e patrimoniais, e interesses que gozam de tutela penal,
f) infringir os princípios e as normas dos artigos 1°, 2°, 20°, n°s 1, 4 e 5, e
202º, n°s 1 e 2° Da CRP. (…)”
Não foram produzidas contra-alegações.
4. Na sequência de distribuição do processo motivada pela mudança de composição
deste Tribunal, foi a Recorrente notificada, na sequência de despacho do
Conselheiro Relator de fls. 175, para “[…] a eventualidade de este Tribunal vir
a conhecer de questão prévia que obste ao conhecimento do mérito do recurso, a
fim de invocar aquilo que se lhe oferecer.”
Na resposta, invoca a Recorrente, nomeadamente, que
“ […] não descortina qualquer fundamento legal para que venha a ser suscitada
qualquer questão obste ao conhecimento do mérito do recurso. Bem pelo contrário,
o prosseguimento após apresentação das alegações em 19 de Fevereiro de 2007, da
análise da questão da infracção do disposto na Constituição e dos princípios
nela consignados, pelas impugnadas normas dos artigos 688º, nº 1, e 689º, nºs 2
e 3, do Código de Processo Civil (CPC), revelou que até o legislador ordinário
(Governo) já reconheceu a inconstitucionalidade de tais normas, e intentou a sua
alteração de modo a conformá-las com os parâmetros constitucionais infringidos.
[…]”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5.Tendo em conta que o presente recurso de constitucionalidade é interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional,
tem carácter normativo, nele só cabendo a impugnação de normas jurídicas
efectivamente aplicadas na decisão recorrida, importa desde já excluir as normas
constantes dos artigos 689.º, n.º1 e 734.º, n.º2 do Código de Processo Civil que
não foram manifestamente aplicadas no despacho sob recurso.
Efectivamente, na decisão recorrida – despacho do Vice-Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça, de fls. 124 e seguintes – apenas se decidiu pelo juízo de
não inconstitucionalidade dos artigos 688.º, n.º1 e 689.º, n.º2 do Código de
Processo Civil, e já não dos restantes preceitos legais referenciados pelos
recorrentes no recurso interposto para este Tribunal.
Delimitado o âmbito do presente recurso de constitucionalidade, constata-se que
a Recorrente começa por invocar a inconstitucionalidade da norma contida no
artigo 688.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, em violação dos artigos 110.º,
n.º 2 e 202.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição por, em síntese, considerar que os
presidentes dos tribunais superiores não são órgãos jurisdicionais e sim
administrativos, competindo-lhes, por conseguinte, o exercício de actividade
materialmente administrativa e não jurisdicional. A norma impugnada tem o
seguinte teor:
“Artigo 688.º (Reclamação contra o indeferimento ou retenção do recurso)
1. Do despacho que não admita a apelação, a revista ou o agravo e, bem assim do
despacho que retenha o recurso, pode o recorrente reclamar para o presidente do
tribunal que seria competente para conhecer do recurso. (…)”
No despacho recorrido, pronunciou-se o Ilustre Conselheiro Vice-Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça pela não inconstitucionalidade da referida norma,
bem como da constante do artigo 689.º, n.º 2, na medida em que a reclamação
constante de tais preceitos configura “um verdadeiro recurso, na linha
tradicional do nosso sistema processual civil.”
A argumentação fundamentante do vício invocado não procede sendo a questão
colocada manifestamente improcedente. A propósito de tema similar relativo à
norma do artigo 405.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, escreveu-se, na
Decisão Sumária n.º 133/2007 deste Tribunal Constitucional o seguinte:
“Os juízes presidentes dos tribunais superiores são, antes de mais, juízes
recrutados e nomeados nos termos prescritos no artigo 215.º da Constituição, e,
quando exercem funções de presidentes nos tribunais superiores têm o seu leque
de competências definido nos artigos 43.º e 59.º, da Lei n.º 3/99, de 13 de
Janeiro, sendo umas de natureza jurisdicional e outras de índole administrativa.
Além das competências que constam expressamente destes preceitos, compete ainda
aos presidentes dos tribunais superiores ‘exercer as demais funções conferidas
por lei’ (cf. Artigo 43.º, alínea f), e 59.º), como é o caso da norma do artigo
405.º do Código de Processo Penal, enquanto lhes atribui competência para
decidir as reclamações dos despachos de não admissão ou retenção de recursos.
Ora, quando o presidente do tribunal superior se pronuncia sobre a reclamação de
um despacho que não admitiu ou reteve um recurso proveniente de um tribunal de
hierarquia inferior está a dirimir um conflito, apreciando a decisão reclamada
que é contrária à pretensão do reclamante e, nessa medida, actua no exercício de
funções jurisdicionais. E, tanto assim é, que a Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(Lei do Tribunal Constitucional), faz equiparar a recursos ordinários as
reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não
admissão ou de retenção de recursos, para efeitos de considerar verificado o
requisito da exaustão dos recursos ordinários, que é condição da admissibilidade
do recurso de constitucionalidade.
Acresce que, a decisão da reclamação, como se sabe, já é uma dupla apreciação da
questão da não admissibilidade ou da retenção do recurso e o facto de ser uma
decisão definitiva ‘quando confirmar o despacho de indeferimento’, não a faz
enfermar de qualquer inconstitucionalidade.
Na verdade, tratando-se de uma decisão jurisdicional praticada no âmbito da
competência acima definida, carece de sentido a convocação da norma do artigo
268.º, n.º4, da Constituição, e, de acordo com a jurisprudência reiterada do
Tribunal Constitucional, o princípio da tutela jurisdicional efectiva-se
concretiza-se, em regra, através da instância única, só se impondo o direito ao
recurso em processo criminal, nos termos do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, e mesmo
aqui, reportado às garantias de defesa dos arguidos e não dos assistentes (…).”
A argumentação transcrita é transponível, em toda a sua extensão, para o juízo a
formular no âmbito da questão em análise. Com efeito, como se afirmou no Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 125/92 (publicado no Boletim do Ministério da
Justiça, 416º, pp. 678 e seguintes), a reclamação para os Presidentes dos
tribunais ad quem dos despachos do não recebimento dos recursos interpostos nos
tribunais a quo deve ser qualificada como “recurso ordinário” para efeitos do
disposto no artigo 70.º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional.
Por outro lado, como se afirmou no Acórdão n.º 273/89, publicado no Diário da
República, II Série, de 8 de Junho de 1989, a reclamação prevista no artigo
688.º constitui meio idóneo para suscitar uma questão de inconstitucionalidade.
A qualificação deste meio processual, que corresponde ao “recurso de queixa”
previsto no artigo 689.º do Código anterior, não é consensual. Rodrigues Bastos,
citando a exposição de motivos do Código de Processo Civil de 1961, defende não
se tratar de um verdadeiro recurso, referindo que “é certo que a sua estrutura é
em grande parte a de um recurso. Mas no aspecto funcional carece manifestamente
de autonomia própria de um recurso. É sempre uma impugnação que se enxerta num
recurso.” (in Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, 3.ª Edição, Lisboa,
2001, p. 236)
A reclamação para o Presidente do Tribunal ad quem contra a não admissão ou
retenção do recurso para ele interposto é uma reclamação atípica (Armindo
Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., 1994, p. 134) que outros
autores como Castro Mendes (Direito Processual Civil III, Recursos, 1987, p. 77)
qualificam como recurso. Tradicionalmente, era considerado como recurso
ordinário (artigo 689.º do Código de Processo Civil de 1939), já que se inseria
a “queixa” entre os recursos ordinários.
Também Amâncio Ferreira, na linha do defendido por Rodrigues Bastos, sustenta
que por se tratar de uma decisão provisória proferida pelo presidente, não se
estaria face a um recurso (Manual dos Recursos em Processo Civil, Coimbra,
Almedina, 2000, p. 73).
Contudo, independentemente das posições assumidas pela doutrina no que diz
respeito à qualificação do meio impugnatório constante do artigo 688.º e
seguintes do Código de Processo Civil, o certo é que nunca esse mecanismo
processual põe em causa qualquer das normas contidas na alegação de recurso,
nomeadamente a garantia constitucional do “juiz legal”.
Na verdade, os presidentes dos Tribunais Superiores são órgãos competentes para
exercer a função jurisdicional que lhes é atribuída pelo referenciado artigo
688.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Acresce que a decisão proferida pelo presidente do Tribunal superior é
provisória, podendo o tribunal de recurso, nos termos do artigo 689.º, n.º 2 do
mesmo Código, vir a entender que o recurso não era de admitir.
Por aqui se afere, sem necessidade de ulteriores considerações,
independentemente da qualificação que se atribua ao meio processual constante do
artigo 688.º, sub judicio, a natureza jurisdicional da actividade exercida ao
abrigo do mesmo, a qual, repete-se, é materialmente jurisdicional e não
administrativa ao contrário do que vem sustentado pelos Recorrentes.
6. Invoca ainda a Recorrente a inconstitucionalidade do artigo 689.º, n.º 2 do
Código de Processo Civil, por violação das normas constitucionais já invocadas
relativamente ao artigo 688.º, n.º 1.
Também aqui o recurso é manifestamente improcedente. Com efeito, o artigo 689.º,
n.º 2 do Código de Processo Civil, o qual estabelece que a decisão do presidente
do Tribunal Superior proferida em reclamação contra a não admissão do recurso
não pode ser impugnada, significa, apenas, que essa decisão, na respectiva ordem
judiciária, é definitiva; no entanto isso não impede, porém, que o Tribunal ad
quem venha a decidir em sentido contrário tal como não impede que, verificados
os pressupostos enunciados nos artigos 70.º a 72.º da L.T.C., dela se recorra
para o Tribunal Constitucional (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 28/90,
publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Dezembro de 1990).
A Recorrente invoca igualmente a inconstitucionalidade do artigo 689.º, n.º 2 do
Código de Processo Civil por violação do artigo 268.º, n.º 4 da Constituição. No
entanto, este preceito constitucional refere-se à garantia da tutela
jurisdicional efectiva dos administrados não se aplicando, por conseguinte, à
situação em apreço que, como vimos já, respeita ao exercício da função
jurisdicional e não administrativa, contrariamente ao que vem alegado.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso na parte
respeitante às normas dos artigos 689.º, n.º1 e 734.º n.º2 do Código de Processo
Civil;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a
decisão recorrida, na parte em que dela se conhece.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UC.
Lisboa, 17 de Outubro de 2007
José Borges Soeiro
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos