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Processo nº 386/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., em 30-10-2000, deduziu impugnação judicial da liquidação de IRC,
relativa ao ano de 1990, no valor de 102.258.322$00.
Por sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto tal impugnação foi
julgada parcialmente procedente, tendo-se anulado parcialmente a liquidação
impugnada.
Desta sentença interpuseram recurso quer a Fazenda Pública, quer A., tendo o
Tribunal Central Administrativo Sul, por acórdão de 3-5-2005, negado provimento
ao recurso interposto por A. e dado provimento ao recurso interposto pela
Fazenda Pública, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente a
impugnação judicial.
Nas contra-alegações apresentadas por A. ao recurso interposto pela Fazenda
Pública não foi suscitada a questão da incompetência do Tribunal Central
Administrativo, em razão da hierarquia.
A. interpôs recurso do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo
Sul para o Supremo Tribunal Administrativo, alegando, alem do mais, o seguinte:
“Com o devido respeito, parece-nos que o douto Acórdão recorrido, ao apreciar o
recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública para o Supremo Tribunal
Administrativo, violou as regras de competência em razão da hierarquia.
Esse recurso era restrito a questões de direito (artigo 280° n° 1 'in fine' do
CPPT).
Pelo que, competente para o seu conhecimento, era este Venerando STA (artigos
32° n° 1, alínea b), 33° n° 1, alínea b), 41° n° 1, alínea a), e 42° n° 1 alínea
a), do E.T.A.F. e artigo 280° n° 1 do CPPT).
Assim violados pelo douto Acórdão recorrido.
Nos termos do n° 1 do artigo 16° do CPPT, a infracção das regras de competência
em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do Tribunal.”
A Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, por
acórdão de 24 de Janeiro de 2007, decidiu não tomar conhecimento deste recurso
por o considerar inadmissível.
Sustentou esta decisão com os seguintes fundamentos:
“Como se mostra dos autos, a impugnação judicial foi deduzida em 30 de Outubro
de 2000.
O Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, extinguiu, no contencioso
tributário, o terceiro grau de jurisdição, sendo que tal extinção apenas produz
efeitos relativamente aos processos instaurados após a sua entrada em vigor –
artigo 120.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção dada por aquele primeiro
diploma legal.
Este entrou em vigor em 15 de Setembro de 1997, nos termos do seu artigo 5.º e
da Portaria 398/97, de 18 de Junho.
Assim, o presente recurso, porque em terceiro grau de jurisdição, não é
admissível.
Certo que ele vem interposto nos termos do artigo 678.º, n.º 2, do Código de
Processo Civil, ex vi do artigo 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de
Processo Tributário, “com fundamento em violação das regras de competência em
razão da hierarquia”.
Dispõe aquele n.º 2 que o recurso é sempre admissível, seja qual for o valor da
causa, se tiver por fundamento a violação das regras de competência,
nomeadamente em razão da hierarquia, como é o caso.
Todavia, tal tem de entender-se subordinantemente à respectiva jurisdição, ou,
de outro modo, dentro dos respectivos graus de jurisdição.
Como é sabido, são as leis orgânicas e estatutárias específicas que estabelecem
a medida de jurisdição por cada categoria e espécie de tribunais, determinando a
categoria dos pleitos que a cada um deles é destinada.
Neste sentido, a respectiva competência, em geral, resulta da medida de
jurisdição atribuída aos diversos tribunais, repartindo o poder judicial que,
em bloco, pertence ao seu conjunto.
Cfr. Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88-89.
As regras de competência judiciária, em razão da hierarquia, são pois as
atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais
dispostos verticalmente.
Pelo que, onde não há jurisdição, não pode haver competência.
Aquela possibilidade de recurso só pode, pois, equacionar-se com relação, ou
até, ao tribunal que constitua o último grau de jurisdição.
E tanto assim é que o dito artigo 678.º, n.º 2, admite sempre o recurso, “seja
qual for o valor das causas”, reportando-se, pois, como logo resulta do seu n.º
1, às alçadas.
Aí, porém, há jurisdição, ou seja, só o valor da causa – o mesmo é que dizer, o
regime das alçadas – impediria o recurso que, de outro modo, seria admissível.
Não é assim no caso dos autos, abolido que foi, nos preditos termos, o terceiro
grau de jurisdição.
Objecta a recorrente que tal entendimento consequência que a questão da
competência em razão da hierarquia não será objecto de qualquer apreciação
jurisdicional, em recurso entenda-se, já que o Tribunal Central Administrativo –
Sul se considerou competente.
Todavia, tal sempre sucede quando a questão seja apreciada em último grau de
jurisdição.
Se a questão da incompetência fosse decidida primariamente pelo Supremo Tribunal
Administrativo, obviamente que a respectiva apreciação jurisdicional por aí se
quedaria.
E o mesmo se tem de passar, no caso, face à decisão do Tribunal Central
Administrativo, uma vez que julgou em último grau de jurisdição.
Pelo que se não concretiza qualquer violação do direito de acesso aos tribunais
e tutela jurisdicional efectiva consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º
4, da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Central Administrativo, ao julgar a causa, fê-lo no entendimento da
sua competência que, assim, ao menos implicitamente julgou.
Por outro lado, aqueles direitos – como repetidamente vem afirmando o Tribunal
Constitucional –, não implicam a obrigatoriedade, para todas as decisões, de um
duplo grau de jurisdição – cfr. elencagem em Constituição da República
Portuguesa – anotada, J.J. Almeida Lopes.
“Prevendo a Constituição tribunais de recurso, o legislador está impedido de
eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso ou
de a inviabilizar na prática, mas já não está impedido de regular, com larga
margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões”
– cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 31/87, publicado no Boletim do
Ministério da Justiça 363-191 – nem, muito menos, que esteja constitucionalmente
garantido o triplo grau de jurisdição – cfr. acórdão n.º 51/88, ibidem, 375-109.
Por fim, a garantia do recurso contencioso consagrada no artigo 284.º, n.º 4, da
Constituição, tendo por conteúdo a possibilidade de acesso aos tribunais para
defesa dos direitos, não está prejudicada uma vez que, no caso, está até
garantido o duplo grau de jurisdição.”
Deste acórdão recorreu A. para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“Visando a apreciação da inconstitucionalidade, e violação de lei com valor
reforçado, do artigo 120º do ETAF, na redacção pelo DL nº 229/96, de 29/11 (que
aboliu o 3º grau de jurisdição fiscal), na interpretação segunda qual é
inadmissível o recurso jurisdicional, com fundamento em violação das regras de
competência em razão da hierarquia, do TCAS para o STA, por violação do direito
de acesso e tutela jurisdicional efectiva (artigos 20º nº 1 e 268º nº 4 da CRP),
e violação dos artigos 16º nº 1 e 2 do CPPT, 3º da LPTA e 678º nº2 do CPC”.
Por decisão sumária proferida pelo Relator não se conheceu do recurso
interposto, relativamente à questão da ilegalidade da interpretação do artº
120.º, do ETAF, na redacção do D.L. n.º 229/96, de 29/11.
A. concluiu do seguinte modo as suas alegações de recurso, quanto à questão de
inconstitucionalidade da mesma interpretação normativa:
“A interpretação do artigo 120º do ETAF, na redacção do DL nº 229/96, de 29/11,
preconizada no douto Acórdão recorrido, segundo a qual é inadmissível o recurso
jurisdicional, com fundamento em violação das regras de competência hierárquica,
do TCAS para o STA, padece de inconstitucionalidade material.
Por violação do direito de acesso e tutela jurisdicional efectiva, consagrado
nos artigos 20º nº 1 e 268º nº 4 da CRP, imanentes do próprio ideal de Estado de
Direito Democrático (artigo 2º da CRP).
Estes preceitos opõem-se a uma situação, como a presente, em que se inviabiliza
que uma questão legitimamente levantada – da incompetência em razão da
hierarquia – seja objecto de qualquer apreciação ou conhecimento jurisdicional.
Apesar da prioridade absoluta e da ordem pública atribuídas pela lei a
semelhante questão.
Contrariamente ao entendimento do douto Acórdão recorrido, não está em causa a
possibilidade ou não de recurso jurisdicional com base em violação das regras de
competência jurisdicional hierárquica (artigo 678º nº 2 do CPC).
O que está em causa é que, a seguir-se a interpretação do douto Acórdão
recorrido, a questão da incompetência em razão da hierarquia fica sem qualquer
apreciação jurisdicional.
Não se pode objectar que a “apreciação jurisdicional” dessa questão terá sido
“implicitamente” efectuada pelo TCAS, ao emitir o respectivo Acórdão.
Desde logo, porque essa questão, da incompetência em razão da hierarquia, no
caso só se colocou logicamente após prolação do douto Acórdão do TCAS.
Está em causa salvaguardar um único grau jurisdicional, ou seja, a “tutela
jurisdicional mínima” da questão da competência em razão da hierarquia.
Que o douto Acórdão recorrido, na dimensão interpretativa e normativa que
confere à lei, não salvaguarda.
A incompetência jurisdicional em razão da hierarquia constitui matéria de ordem
pública e cujo conhecimento, por isso, deve preceder o de qualquer outra questão
(artigos 16º nº 1 e 2 do CPPT, 3º da LPTA e 13º do CPTA, e 678º nº 2 do CPC, ex
vi do artigo 2º e) do CPPT e 818º do CA).
O direito de acesso aos tribunais é um direito fundamental de natureza análoga
à dos direitos, liberdades e garantias, ou seja, tem força jurídica directamente
vinculatória (artigos 17º e 18º da CRP).”
*
Fundamentação
A recorrente pretende que se aprecie a constitucionalidade da interpretação
normativa, efectuada pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a
qual a abolição de um terceiro grau de jurisdição no contencioso tributário,
resultante das alterações ao ETAF, introduzidas pelo Decreto-Lei nº 229/96, de
29 de Novembro, tornam inadmissível o recurso da decisão proferida, em segunda
instância, pelo Tribunal Central Administrativo, mesmo que o fundamento do
recurso seja a incompetência em razão da hierarquia deste tribunal.
Após referir que não está em causa “a possibilidade ou não de recurso
jurisdicional com base em violação das regras de competência jurisdicional
hierárquica”, e que “está em causa salvaguardar um único grau jurisdicional, ou
seja, a “tutela jurisdicional mínima” da questão da competência em razão da
hierarquia”, alega que aquela interpretação viola o direito de acesso e tutela
jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20.º, nº 1, e 268.º, n.º 4, da
C.R.P., imanentes do próprio ideal de Estado de Direito Democrático (artigo 2.º,
da C.R.P.).
Este direito constitucional, como corolário do princípio estruturante do Estado
de direito democrático, nomeadamente na sua vertente de garantia da
possibilidade efectiva de qualquer cidadão manter e defender as suas posições
jurídicas perante a Administração, através do recurso aos tribunais, confere o
chamado direito pro actione, que se traduz no direito de abertura de um
processo, após a apresentação da pretensão inicial, com o consequente dever de o
órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar, mediante decisão fundamentada.
Ora, este direito não foi de modo algum negado à recorrente, que impugnou
judicialmente uma liquidação de imposto efectuada pelo fisco, tendo obtido uma
primeira decisão jurisdicional que julgou a sua pretensão, a qual foi ainda
objecto duma segunda apreciação, em recurso, por tribunal superior.
Mostram-se, pois, observadas as exigências constitucionais do direito ao acesso
aos tribunais e à tutela jurisdicional, contidas nos artº 20.º, n.º 1, e 268.º,
n.º 4, da C.R.P..
Queixa-se, todavia, a recorrente que o S.T.A, ao não admitir o recurso do
acórdão do T.C.A. sobre a incompetência deste, em razão da hierarquia, não
permitiu que esta questão fosse objecto de qualquer apreciação jurisdicional.
A exigência do conhecimento pelo tribunal de determinadas questões, no âmbito de
processo judicial, resulta do conceito do due process, positivado no artº 20.º,
n.º 4, da C.R.P..
Nos termos deste dispositivo o processo deve ser equitativo, o que, além do
mais, impõe que, quer as questões suscitadas pelas partes no decurso do
processo, quer as que são do conhecimento oficioso, por razões de ordem pública,
sejam objecto de apreciação pelo tribunal.
A incompetência em razão da hierarquia no contencioso tributário é do
conhecimento oficioso (artº 16.º, do C.P.P.T.), pelo que qualquer tribunal que
profira decisão nesta área, nomeadamente quando aprecia recursos que lhe são
dirigidos, como sucedeu neste caso, necessariamente tem que ponderar, como
questão prévia, a sua competência hierárquica para a prática do acto
jurisdicional que lhe é solicitado.
Contudo, esta apreciação só tem que ser exteriorizada quando tal questão, assim
como todas as demais do conhecimento oficioso, tenham sido suscitadas pelas
partes ou o seu resultado determine uma inflexão no decurso normal do processo.
Neste caso, não tendo sido colocada antecipadamente ao Tribunal Central
Administrativo a questão da sua competência, em razão da hierarquia, para
conhecer do recurso que lhe foi dirigido (e o recorrente teve oportunidade de o
fazer quando apresentou contra-alegações ao recurso interposto pela Fazenda
Nacional para o Tribunal Central Administrativo), não está aquele tribunal
obrigado a exteriorizar a ponderação necessária da sua própria competência para
apreciar o recurso interposto, desde que se julgue competente.
Apesar deste juízo não ter sido exteriorizado, ao exercer-se essa competência
ele foi necessariamente feito, pelo que não corresponde à realidade dizer-se que
a questão da competência do tribunal em razão da hierarquia, que é do
conhecimento oficioso, não teve uma apreciação jurisdicional.
Deste modo, a interpretação que considera inadmissível o recurso da decisão
proferida em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo, mesmo que o
fundamento do recurso seja a incompetência em razão da hierarquia deste
tribunal, não viola nem o direito de acesso e tutela jurisdicional efectiva,
consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da C.R.P., como corolário do
princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da C.R.P.), nem o direito
a um processo equitativo, previsto no artº 20.º, n.º 4, da C.R.P., pelo que o
recurso interposto não merece provimento.
*
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto por A., S.A., para o
Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de
24-1-2007.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
tendo em consideração os critérios do artº 9.º, do D.L. nº 303/98, de 7 de
Outubro (artº 6.º, nº 1, do mesmo diploma).
*
Lisboa, 16 de Outubro de 2007
João Cura Mariano
Joaquim Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos