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Processo nº 890/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A Fábrica da Igreja Paroquial de S. Adrião de Macieira reclama
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art.º 76.º, n.º 4, da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho do
relator, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que não lhe admitiu o recurso
interposto do acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 26 de Junho de 2007, que
indeferiu o pedido de reforma do seu anterior acórdão, de 8 de Maio de 2007, “se
assim não se entender, o que só por mera cautela se concebe”, deste último
acórdão.
2 – Numa síntese dos argumentos apresentados num longo discurso na
sua reclamação, a reclamante concluiu do seguinte jeito:
«1. A densificação do enunciado “durante o processo”, nó górdio na questão da
admissibilidade dos recursos previstos no artigo 280.º, n.º 2, al. b), CRP, não
pode considerar-se inteiramente líquida.
2. A locução verbal empregue na norma constitucional inculca, desde logo, a
ideia de que a questão de inconstitucionalidade há-de ter sido suscitada durante
a “pendência da causa”, ou seja, antes de a decisão judicial ter transitado em
julgado (art. 677.º CPC).
3. Pretende-se com isto uma dúplice finalidade, aliás congruente: por um lado,
limitar o acesso à jurisdição do tribunal constitucional; por outro lado, evitar
que o recurso de constitucionalidade sirva uma eventual intenção ínvia de
protelar o trânsito em julgado.
4. No caso vertente, a questão de inconstitucionalidade atinge, sem margem para
quaisquer dúvidas, o patamar de relevância pressuposto pelo legislador
constituinte na formulação do artigo 280.º, n.º 2, al. b), CRP.
5. Daí que não possa ler-se no recurso interposto a intenção de protelar o
trânsito em julgado da decisão, antes a pretensão de ver discutida na substância
a questão de inconstitucionalidade a que não pode negar-se um elevado grau de
relevância.
6. Depreende-se da jurisprudência constitucional que a inconstitucionalidade de
uma norma deve ser ainda suscitada em tempo de o tribunal recorrido ficar a
saber que tem essa questão para resolver e, consequentemente, de a poder e dever
decidir, o que requer que a mesma seja colocada antes de esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade
respeita.
7. Os incidentes pós-decisórios não são, em princípio, meios idóneos e atempados
de levantar a questão de constitucionalidade, ressalvados os casos em que, por
força de uma norma processual específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida.
8. No caso em apreço, a questão da inconstitucionalidade é produto do erro
manifesto na determinação das normas aplicáveis, estribado, por seu turno, numa
errada qualificação jurídica dos factos, que se imputam à decisão de fls. 1233
ss. e que fundamentam o pedido de reforma.
9. No que à reforma da decisão concerne, o poder jurisdicional do tribunal a quo
só se esgota após a prolação da decisão sobre esses vícios (cf. arts. 666.º, n.º
2, e 669.º, n.º 1, al. a), CPC).
10. Na verdade, a questão de inconstitucionalidade que fundamenta o presente
recurso está intimamente conexionada com outra relativamente à qual o poder de
jurisdição do tribunal a quo não se havia ainda esgotado, de tal forma que esse
tribunal poderia ainda reexaminar, se assim o entendesse, essa outra questão,
tomando em consideração, na decisão do pedido de reforma, a
inconstitucionalidade material das normas.
11. Isto é: o tribunal recorrido, conhecendo do mérito do pedido de reforma,
poderia e deveria ter apreciado e decidido a questão da inconstitucionalidade
nele suscitada.
12. A não se entender assim, não poderá deixar de considerar-se
inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e da tutela
jurisdicional efectiva (art. 20.º CRP), a norma ínsita no artigo 70º.°, nº 1,
al. b), da Lei nº 28/82, na interpretação restritiva que lhe é dada pelo acórdão
de fls. 1331 e ulterior despacho de não admissão do recurso.
Pelo exposto,
se requer a admissão do presente recurso, com fundamento, designadamente na
inconstitucionalidade das normas da al. b) do n.º 1 do artigo 70.º LCT, e, a
final, que sejam julgadas inconstitucionais as normas identificadas no
requerimento de recurso, na interpretação que lhes é dada na decisão de fls.
1233 e ss., com fundamento na violação dos artigos 18º.°, nºs 2 e 3, 26º.°, 62.º
e 84º.°, nº 1 da C.R.P.».
3 – O despacho reclamado tem o seguinte teor:
«Não admito o recurso para o Tribunal Constitucional, interposto pela “Fábrica
da Igreja Paroquial de S. Adrião de Macieira”, nuclearmente pelas razões já
constantes do Acórdão (de fls. 1331 ss. parte 3) que para o sintetizar:
- O pedido formulado pelos Autores consistia, além do mais, no reconhecimento do
“adro da igreja” integrar o domínio público;
- Nunca, ao longo da lide, a ora recorrente suscitou a inconstitucionalidade de
qualquer norma, em segmento ou interpretação, referente à dominialidade;
- O Acórdão de fls. 1233 ss., que conheceu o mérito do recurso, não contém
qualquer “decisão surpresa”, nem tal é invocado pela recorrente;
- A recorrente reconhece que só suscitou a inconstitucionalidade aquando do
pedido de reforma, que culminou com o Acórdão de fls. 1331 ss.;
- Ora, uma decisão tirada ao abrigo do n.º 2 do artigo 669.º do código de
Processo Civil – e, sempre, se confirmatória, como “in casu” – não excede a
pronúncia do aresto reformando e nele não se integra (nº 2, “in fine”, “a
contrario” do artigo 670.º da lei processual;
- Não se verificam, assim, os requisitos dos artigos 280.º, nºs 1, alínea b), e
4º da CRP e 70.º nºs 1, alínea b), e 2.º da Lei 28/82, por falta de suscitação
tempestiva da inconstitucionalidade;
- Outrossim, não ocorre a situação de falta de oportunidade processual para que
a questão fosse levantada antes da decisão ou inexigibilidade de um juízo prévio
de prognose relativo à aplicação da norma questionada, “em termos de se
antecipar ao proferimento da decisão”;
- Finalmente, o recurso é interposto do Acórdão que indeferiu o pedido de
reforma – e que não se aplicou, ou interpretou, qualquer dos preceitos cuja
constitucionalidade é questionada – e, apenas, “por mera cautela” (!) do Acórdão
principal – no qual, claramente, e como se disse não foi aplicada qualquer norma
(em segmento ou interpretação) tempestivamente assacada de
inconstitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UCs.».
4 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação, dizendo:
«A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Assim – e em primeiro lugar – não é momento processual adequado para
suscitar certa questão de constitucionalidade, pela primeira vez, o da dedução
de incidentes pós-decisórios, incluindo o pedido de reforma estribado em
pretenso “lapso manifesto” do julgador (afirmado pela parte, mas rejeitado pelo
Tribunal).
Por outro lado, não é correcta a afirmação de que a entidade reclamante não
dispôs de oportunidade processual para suscitar, durante o processo (isto é, no
âmbito do recurso de revista) as questões de constitucionalidade que só
tardiamente colocou: na verdade, face ao objecto de litígio e à argumentação da
entidade recorrente no dito recurso de revista, podia efectivamente
perspectivar-se a eventualidade de o STJ se orientar para julgamento diverso do
das instâncias – cumprindo naturalmente ao recorrido, no âmbito da
contra-alegação produzida, enunciar, para o caso de ocorrer tal inflexão no
julgamento da causa, as questões de inconstitucionalidade que tivesse por
pertinentes e adequadas à defesa dos seus interesses.».
B – Fundamentação
5.1 – O recurso, de cujo despacho de não admissão se reclama, foi
interposto sob invocação do disposto nos art.ºs 280.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4,
da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Para poder conhecer-se deste tipo de recurso, torna-se necessário, a
mais do esgotamento dos recursos ordinários, que a norma impugnada tenha sido
aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a
inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo. E este
requisito deve ser entendido, segundo a jurisprudência constante deste Tribunal
(veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República II Série, de
6 de Setembro de 1994), “não num sentido meramente formal (tal que a
inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido
feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”,
“antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma
questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido
pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de
recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal
recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º
560/94, Diário da República, II, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º
155/95, in Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995).
É por isso que se entende que não constituem já momentos
processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição
de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a
obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento
ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia
ter pronunciado (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário
da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33.º vol., p. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499.º, p. 77, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47.º vol., p.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República
II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492.º, p. 62, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 45.º vol., p. 559; n.º 155/00, publicado no Diário da República
II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º
vol., p. 821, e n.º 364/00, inédito).
Tal doutrina sofre, porém, restrições, como se salientou naquele
Acórdão n.º 354/94, que só acontecem em situações excepcionais ou anómalas, nas
quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a
questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o
fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo
insólita e imprevisível.
Usando os termos do Acórdão n.º 192/2000, não publicado, dir-se-á,
ainda, que “quem pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento
na aplicação de uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade
de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes
de proferido o acórdão da conferência de que recorre...”.
E é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem
essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa
decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s)
articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear
juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por
antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se
poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados
pelo juiz.
Ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação
das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o
facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os
considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da
(in)validade da norma em face da lei fundamental.
Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão
do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua
conformidade constitucional.
O dever de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo e
pela forma adequada enquadra-se, assim, dentro destes parâmetros acabados de
definir.
5.2 – O recurso interposto pela reclamante não foi admitido por se
haver entendido que a recorrente não suscitara a questão de constitucionalidade
durante o processo nem se tratava de uma decisão surpresa.
Ora, este juízo não pode deixar de ser acolhido. Na verdade, como
acima já se apontou, não pode ser considerado como momento idóneo de suscitação
da questão de constitucionalidade o incidente pós-decisório do pedido de
reforma, nos casos em que este não proceda e não tenha lugar a aplicação à
decisão da causa de outras normas para além das que fundamentaram a decisão
reformanda. Claro que, havendo deferimento do pedido de reforma com base na
aplicação de outras normas, esse momento poderá considerar-se ainda adequado
para suscitar a questão de constitucionalidade dessas outras normas que
constituam a ratio decidendi da nova decisão. A suscitação da questão de
constitucionalidade ocorrerá, em tal caso, sempre antes da decisão da qual a
norma constitua fundamento.
No caso, porém, de não proceder o pedido de reforma, por não ser
caso de existência de «“manifesto lapso” reportada[o] à determinação da norma
aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos
de prova conducentes a decisão diversa” – a decisão da causa é aquela contra a
qual se desferiu o pedido de reforma, como bem nota o despacho recorrido,
constituindo a pronúncia do tribunal, de indeferimento do pedido de reforma, uma
decisão que não se integra na decisão anterior cujo sentido se pretendia ver
alterado.
Assim sendo, independentemente de se considerar que a decisão
recorrida é a decisão que indeferiu o pedido de reforma ou a decisão pretendida
reformar, não poderá considerar-se como suscitada em momento processualmente
adequado a questão de constitucionalidade que foi alegada pela reclamante apenas
no articulado do pedido de reforma, referentemente às normas “ínsitas nos
artigos 380.º do Código Civil de 1867, 202.º, n.º 2, do Código Civil vigente, e
4.º do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de Outubro, interpretadas no sentido de
nelas se poder ver incluído, como bem do domínio público local, um adro ou largo
de um templo religioso” (com base numa transposição da doutrina do “Assento” do
STJ de 1989).
E também não é caso de ter a reclamante por dispensada do ónus de
atempada e adequada suscitação da respectiva questão de constitucionalidade.
E não o é, porque, como bem nota o despacho reclamado, «o pedido
formulado pelos Autores consistia, além do mais, no reconhecimento do “adro da
igreja” integrar o domínio público».
Sendo assim, a questão normativa corporizada nos diferentes
entendimentos de que os preceitos legais aplicáveis seriam passíveis esteve
sempre no centro do debate entre as partes desde o início da acção e até à
decisão do STJ.
A circunstância de estes haverem sido entendidos na sentença de 1.ª
instância com um determinado sentido prescritivo e de a agora recorrente aí
haver obtido ganho de causa não obstava a que ela pudesse antecipar, nas
contra-ordenações do recurso de revista interposto pela agora recorrida para o
STJ, que este Supremo Tribunal viesse a adoptar entendimento diverso, numa senda
de “transposição da linha argumentativa” seguida no mencionado “Assento” de
1989.
De resto, essa era, aliás, a posição que a recorrente pretendia ver
reconhecida nas alegações de recurso às quais pôde responder.
Temos, portanto, de concluir que o sentido com que as normas que
constituem a ratio decidendi da decisão que se pretendia ver reformada, e também
impugnada no recurso de constitucionalidade (para além da que indeferiu o pedido
de reforma, embora “à cautela”), foram aplicadas não corresponde a qualquer
interpretação insólita ou imprevisível que não pudesse ser adequadamente
antecipada por quem, no exercício do mandato forense, está obrigado a agir
segundo regras de prudência técnica na actividade profissional desenvolvente
desse mandato, aqui concernente com a tarefa de interpretação da lei aplicável à
causa.
Temos de concluir, portanto, que a reclamação não merece
deferimento.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 30 de Outubro de 2007
Benjamim Rodrigues
Joaquim Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos