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Processo nº 617/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, vem reclamar para este Tribunal
Constitucional do despacho, de 6 de Novembro de 2006, que não lhe admitiu o
recurso dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, proferidos em 23 de
Novembro de 2005, em 20 de Abril de 2006 e em 12 de Outubro de 2006, interposto
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 (Lei Tribunal
Constitucional), invocando para tanto o Juiz Conselheiro Relator no Supremo
Tribunal de Justiça as seguintes razões:
Quanto ao art. 306º do C. Civil, a interpretação dada no acórdão em causa é
idêntica à dada no Tribunal da Relação. A interpretação de tal preceito foi
objecto de recurso. Era aí que o recorrente deveria ter levantado a eventual
inconstitucionalidade da interpretação que fez vencimento em 2ª instância e que
foi corroborada neste Tribunal. Não o fazendo tornou extemporânea a sua
invocação.
Quanto ao facto de se ter afirmado a irrelevância processual em concreto do
recurso, é evidente que não estamos perante qualquer interpretação da lei em
especial, nomeadamente do art. 690º do C. P. Civil.
Não se trata duma interpretação da lei, mas da sua relevância para o caso
concreto.
Sem bulir com a interpretação consagrada.
Nestes termos, por falta de alegação atempada das inconstitucionalidades, não
admito o recurso de fls. 1825.
O reclamante interpusera o recurso de constitucionalidade alegando,
essencialmente, o seguinte:
(…)
Só no acórdão do S.T.J, de 23/11/05 é que é invocado pela 1ª vez o n° 1 do
Artigo 306º do Código Civil para fundamentar a não verificação da prescrição,
sendo esta norma legal aí interpretada no sentido normativo de que “enquanto não
ocorrer a fase processual em que pode deduzir o pedido na acção penal, não se
encontra o lesado em condições de exercer devidamente o seu direito” (SIC),
mesmo nos casos em que a adesão não é obrigatória.
Como tal, o recorrente não podia ter invocado a inconstitucionalidade dessa
interpretação normativa do referido preceito legal antes da prolação do acórdão
do S.T.J. de 23/11/05, pela simples razão de que nunca antes foi sustentada no
processo essa interpretação normativa (quer pelos tribunais recorridos que
decidiram a questão da prescrição, quer pela própria recorrida). De resto, essa
interpretação normativa é tão inovadora que colheu de surpresa o recorrente.
Aliás, nunca poderia este ser obrigado a invocar as eventuais
inconstitucionalidades de todas as interpretações possíveis e imaginárias (e até
as menos imagináveis) de todas as normas legais cuja aplicação ao caso se
vislumbrasse possível.
Como tal, o recorrente invocou a referida inconstitucionalidade na
1ª oportunidade que era possível: no requerimento de arguição de nulidades do
referido acórdão.
(…)
Com efeito, só no acórdão do S.T.J. de 23/11/05 é que é invocada pela 1ª vez a
interpretação do disposto no Artigo 691°, n° 2, do C.P.C. (com a redacção em
vigor à data da interposição do recurso da decisão proferida na 1ª instância) no
sentido da irrelevância da espécie do respectivo recurso.
Como tal, o recorrente não podia ter invocado a inconstitucionalidade dessa
interpretação normativa do referido preceito legal antes da prolação do acórdão
do S.T.J. de 23/11/05, pela simples razão de que nunca antes foi sustentada no
processo essa interpretação normativa, designadamente pelos tribunais recorridos
que decidiram a questão da qualificação do recurso. Sendo certo que essa
interpretação normativa é tão inovadora que colheu de surpresa o recorrente, não
lhe sendo exigível que pudesse razoavelmente contar com ela.
Como tal, o recorrente invocou a referida inconstitucionalidade na
1ª oportunidade que era possível: no requerimento de arguição de nulidades do
referido acórdão.
(…)
Depreende-se do texto da reclamação que o reclamante mantém que a interpretação
do n.º 1 do artigo 306.º do Código Civil arguida de inconstitucional “consta do
acórdão do S.T.J. de que se interpôs recurso e não consta do acórdão da
Relação”, pelo que “se torna agora difícil sustentar – como faz o douto despacho
reclamado – que, afinal, o acórdão do S.T.J. usou de fundamentação idêntica à do
acórdão da Relação.” Relativamente à interpretação normativa do disposto no
artigo 691.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o reclamante sustenta que “ao
julgar o recurso improcedente sem recusar expressamente a aplicação dessa norma
e sem aplicar qualquer outra, o S.T.J. aplicou-a, ainda que de forma tácita,
indirecta ou subjacente.”
Sobre a reclamação pronunciou-se o Ministério Público no sentido de que a mesma
é manifestamente improcedente, dizendo:
Desde logo, não se mostra suscitada, durante o processo, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, susceptível de integrar objecto idóneo do
recurso de fiscalização concreta interposto – não podendo obviamente o decidido
pelo STJ constituir “decisão‑surpresa”, susceptível de dispensar o cumprimento
do ónus que recai sobre o recorrente, já que o objecto da controvérsia incidia
precisamente sobre a qualificação do recurso interposto (agravo) e suas
consequências nos poderes cognitivos do Tribunal “ad quem” e sobre a contagem do
prazo prescricional.
Acresce que as questões suscitadas sempre seriam de perspectivar como
manifestamente infundadas, não se vendo como poderiam as interpretações
normativas feitas pelo Supremo colidir com qualquer preceito ou princípio
constitucional: como é evidente, não pode inferir‑se da Lei Fundamental o âmbito
de aplicação dos recursos de agravo e apelação, em termos de só permitir o
conhecimento da excepção de prescrição no âmbito do segundo daqueles tipos
recursórios; do mesmo modo que a interpretação da regra constante do art. 306º,
nº 1, realizada no acórdão recorrido – e que, na delimitação do objecto, feita
pelo recorrente, aparece autonomizada e destacada do preceituado no art. 72º do
CPP – segundo a qual o prazo de prescrição só começa a correr quando o direito
em causa puder ser exercido não afronta seguramente qualquer princípio da
Constituição.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
2. A presente reclamação não pode obter provimento. Com efeito, tratando-se de
um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82 (Lei Tribunal Constitucional), são requisitos para se poder tomar
conhecimento deste tipo de recurso, além da aplicação como ratio decidendi, pelo
tribunal recorrido, da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do
esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a
inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo.
Este último requisito, como o Tribunal Constitucional tem vindo repetidamente a
decidir, e se diz, por exemplo, no acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da
República [DR], II série, de 6 de Setembro de 1994), deve ser entendido, “não
num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser
suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal
modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a
quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional
do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade)
respeita”. É, na verdade, este o sentido que corresponde à natureza da
intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação ou
reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter
apreciado – ver, por exemplo, o acórdão n.º 560/94, publicado no DR, II série,
de 10 de Janeiro de 1995, onde se escreveu que “a exigência de um cabal
cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da
questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma
secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal
recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o
Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e
não a um primeiro julgamento) de tal questão” (assim, também, por exemplo, o
acórdão n.º 155/95, publicado no DR, II série, de 20 de Junho de 1995 e o artigo
72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
A orientação que se descreveu quanto ao ónus de suscitação da questão de
constitucionalidade (como também se salientou no referido acórdão n.º 352/94)
sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais se não
pode exigir ao interessado que suscitasse a questão de inconstitucionalidade
antes de proferida a decisão final, designadamente, por o tribunal a quo ter
efectuado uma aplicação de todo em todo insólita e imprevisível da norma
impugnada. Este Tribunal tem, porém, repetidamente afirmado, como se disse no
acórdão n.º 479/89 (DR, II Série, de 24 de Abril de 1992) que:
(...) não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem
as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem
socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais
(por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual
adequada). E isso também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas “situações excepcionais” em
que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação da
inconstitucionalidade antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a
quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma impugnada.
(...) Mas, se alguma vez tal for de admitir, então haverá de sê-lo apenas numa
hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita e imprevisível que
seria de todo desrazoável dever a parte contar (também) com ela.
(E vejam-se também já, por exemplo, os acórdãos n.ºs 94/88 e 90/85, publicados
no DR, II Série, respectivamente de 22 de Agosto de 1988 e de 11 de Julho de
1985, bem como, por exemplo, os acórdãos n.ºs 565/96 e 660/96, onde se afirma
que não existe “surpresa” relevante na interpretação perfilhada na decisão
recorrida quando a doutrina e a jurisprudência se dividem quanto à interpretação
da norma impugnada).
3. No presente caso, verifica-se que nenhuma das normas impugnadas no
requerimento de recurso foi, em tempo oportuno, objecto de controvérsia quanto à
questão de constitucionalidade – sendo certo que os incidentes pós-decisórios
não constituem já, como se sabe, momento adequado para esse efeito (cfr. por
todos, Acórdão nº 155/95, DR, II Série, de 20 de Junho de 1995).
Isto mesmo reconhece o recorrente, quando invoca, como razão para a ‘tardia’
suscitação das questões de constitucionalidade, o facto de “nunca antes ter sido
sustentada no processo nenhuma das interpretações normativas questionadas” e de
“estas serem tão inovadoras que colheram de surpresa o recorrente” [itálico
nosso].
No entanto, e como bem salienta o Magistrado do Ministério Público em funções no
Tribunal, a invocação, assim feita, da jurisprudência relativa às “decisões
surpresa” não tem qualquer fundamento.
Na verdade, a fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de
Novembro de 2005 e o teor do respectivo relatório levam a concluir que sobre o
então recorrente recaía o ónus de definir e conduzir uma estratégia processual
adequada, traduzida na consideração das várias possibilidades interpretativas,
já perfilhadas na jurisprudência (conforme consta da referida decisão, em que se
remete para o acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 1 de Julho de 2004), das
normas que regem a contagem do prazo de prescrição, e na adopção das necessárias
cautelas processuais (cfr., neste sentido, o citado acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 479/89, DR, II Série, de 24 de Abril de 1992). O mesmo se
diga quanto ao ónus de suscitação, perante o Supremo Tribunal de Justiça, da
inconstitucionalidade de um determinado entendimento da “norma que ao tempo
regulava a qualificação do recurso das decisões parciais de mérito proferidas no
despacho saneador – e que foi invocada pelo recorrente”, nas palavras do ora
reclamante.
Não tendo o então recorrente suscitado durante o processo a
inconstitucionalidade destas normas, não poderia o Tribunal Constitucional tomar
conhecimento do recurso.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar
o reclamante em custas, com 20 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 18 de Julho de 2007
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão