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Processo nº 802/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., CRL, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no nº 3 do art.
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do
despacho do relator, no Tribunal Constitucional, que decidiu não conhecer do
recurso de constitucionalidade interposto do acórdão do Pleno da Secção de
Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 24 de Janeiro de
2007, acórdão este que, por seu lado, decidiu, por julgar não verificada a
alegada oposição de julgados, dar por findo o recurso interposto do acórdão do
Tribunal Central Administrativo, de 23 de Novembro de 2004, que negou provimento
ao recurso jurisdicional por si interposto da sentença que julgara improcedente
a impugnação de liquidação adicional de IRC relativa ao exercício do ano de
1994.
2 – Fundamentando a sua reclamação, a reclamante expende a seguinte
argumentação:
«1 - Salvo o devido respeito, a recorrente suscitou inconstitucionalidades no
decurso dos autos mormente em sede de alegações do recurso interposto para o
Supremo Tribunal Administrativo e de arguição de nulidades do douto acórdão
proferido no recurso de oposição de julgados:
2 - Consequentemente, e salvo também o devido respeito, o presente recurso por
inconstitucionalidade deveria ser admitido, isto é, em ordem que seja apreciada
a constitucionalidade das disposições que constam da conjugação dos artigos
123º, nº 2, do CPPT e do artigo 659º, nº 2, do CPC, atenta a desigual aplicação
que observaram nas espécies versadas no acórdão recorrido e no acórdão
fundamento face às normas e princípios consignados nos artigos 13º e 20º, nº 4,
da Constituição da República Portuguesa.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, COM O DOUTO SUPRIMENTO DE Vªs. EXªs,
DEVERÁ SER DEFERIDA A PRESENTE RECLAMAÇÃO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER ADMITIDO O
RECURSO INTERPOSTO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.».
3 – A Fazenda Pública, recorrida, não respondeu.
4 – A decisão ora reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., CRL, com os demais sinais dos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das disposições
“que constam da conjugação dos artigos 123º, nº 2, do CPPT e do 659º, nº 2, do
CPC, atenta a desigual aplicação que observaram nas espécies versadas no acórdão
recorrido e no acórdão fundamento face às normas e princípios consignados nos
artigos 13º e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa”.
2 – Com interesse para o caso sub judicio, cumpre relatar:
2.1 – A recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo do acórdão de 23 de Novembro de 2004 do Tribunal Central
Administrativo – que negou provimento ao recurso jurisdicional por si interposto
da sentença que julgara improcedente a impugnação de liquidação adicional de IRC
relativa ao exercício do ano de 1994 – com fundamento em oposição com o acórdão
de 15 de Outubro de 2003 proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no
processo nº 1191/03.
2.2 - Por acórdão de 24 de Janeiro de 2007, o Pleno da Secção de Contencioso
Tributário decidiu dar por findo o recurso, por julgar não verificada a alegada
oposição de julgados.
2.3 – Discordando do julgado, a recorrente arguiu a sua nulidade e requereu ao
Supremo diversos esclarecimentos, alegando que:
“1
Dispõe o número 2 do artigo 731º-A, do Código de Processo Civil, aplicável ao
recurso de oposição de julgados, por força das disposições conjugadas dos
artigos 2º, al. e) e 281º, ambos do CPPT, a admissibilidade de uniformização de
jurisprudência, com o consequente julgamento ampliado do recurso de revista,
quando possa ocorrer solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência
anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão
fundamental de direito; ASSIM:
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Embora com dúvidas, e decorrido todo o processado previsto nos artigos 284º e
286º, nº 1, do CPPT, FOI CONSIDERADO OCORRER OPOSIÇÃO DE JULGADOS E ADMITIDO O
PRESENTE RECURSO.
ORA,
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Sob pena de ininteligibilidade da jurisprudência dos nossos tribunais
superiores, o facto, insofismável, que caracteriza as situações a que se referem
os acórdãos recorrido e fundamento, é que não consta nenhuma factualidade como
não provada no acórdão recorrido, e que o acórdão fundamento mandou indicar os
factos não provados às instâncias, uma vez que pode apenas conhecer de Direito.
Passa, pois, a citar-se o acórdão fundamento:
“Lendo a sentença recorrida prontamente se alcança que o tribunal a quo não fez
nela qualquer indicação factual.
Ora, segundo o nº 2 do artigo 123º do CPPT, sintonizado com o artigo 659º, 2, do
CPC, cumpre ao Juiz discriminar a matéria provada da não provada.”
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A consequência da Jurisprudência constante do acórdão fundamento é aquela que,
aliás, não pode deixar de vigorar: a de que só há julgamento da matéria de facto
com indicação dos factos provados e não provados. A não ser assim, pergunta-se,
qual é a medida porque tem de passar a aferir-se o cumprimento dos artigos 123º,
nº 2, do CPPT e do 659º, nº 2, do CPC – a indicação de uma parte, do todo, ou do
que o tribunal discricionariamente decidir? Perderam os tribunais de revista,
como o STA, a capacidade de censurar a violação do artigo 659º, nº 2, do CPC,
pelas instâncias?
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De facto, cumpre esclarecer o seguinte:
a) Considerou ou não, o acórdão fundamento, que o julgamento da matéria de facto
se consuma com a indicação dos factos não provados, ordenando a sua indicação
pelas instâncias?
b) Considerou ou não, o acórdão recorrido, ser dispensável a indicação dos
factos não provados?
c) Interpretaram e aplicaram da mesma forma ou “no mesmo grau”, os acórdãos
recorrido e fundamento, os comandos ínsitos nos artigos 123º, nº 2, do CPPT e do
659º, nº 2, do CPC?
Bem conheceu o Mmº. Relator “a quo” de tais questões, admitindo o recurso
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A utilidade dos recursos de oposição de julgados ou de uniformização de
jurisprudência, deriva da igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei, e,
no âmbito da questão fundamental a apreciar no recurso, está em causa o
princípio do tratamento equitativo dos cidadãos nos processos judiciais – cfr.
artigos 13º e 20º, nº 4, ambos da Constituição da República Portuguesa.
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O douto acórdão ora proferido pelo Pleno do STA, não conhece de questões de que
deveria tomar conhecimento e, por efeito dessa nulidade que se invoca e se
requer seja suprida (artigo 125°, nº 1, do CPPT), resultam violados os
princípios constitucionais da igualdade e do processo equitativo, previstos nos
artigos 13º e 20º, nº 4, ambos da Constituição da República Portuguesa, na
interpretação conferida aos artigos 659º, nº 2, do Código de Processo Civil, e
286º, do Código de Procedimento e do Processo Tributário, violação essa que de
igual modo deverá ser conhecida».
2.4 – Por Acórdão de 6 de Junho de 2007, o Supremo indeferiu o requerido.
2.5 – Novamente inconformada a recorrente interpôs recurso para este Tribunal,
no qual reproduziu o teor da reclamação supra transcrita, ao que acrescentou
“que as disposições cuja inconstitucionalidade se requer seja apreciada são as
que constam da conjugação dos artigos 123º, nº 2, do CPPT e do 659º, nº 2, do
CPC, atenta a desigual aplicação que observaram nas espécies versadas no acórdão
recorrido e no acórdão fundamento face às normas e princípios consignados nos
artigos 13º e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
3 – Tendo em conta o disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual redacção (LTC) e relevando o disposto no artigo 76º, nº
3, do mesmo diploma, passa a decidir-se com base nos seguintes fundamentos.
4 – Cumpre começar por anotar que a recorrente não indica a alínea do nº 1 do
artigo 70º ao abrigo da qual interpõe o presente recurso de constitucionalidade.
Contudo, compulsados os autos e considerada a panóplia de decisões
que admitem recurso de constitucionalidade em fiscalização concreta, bem se vê
que in casu não estão preenchidos os requisitos determinantes do conhecimento do
objecto do recurso.
De facto, no caso sub judicio é bem patente que o Supremo Tribunal
Administrativo não recusou a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade, ou ilegalidade por violação de lei com valor reforçado;
não recusou a aplicação de norma constante de diploma regional, com fundamento
na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral
da República; não recusou a aplicação de norma emanada de um órgão de soberania,
com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região
autónoma; e também não recusou a aplicação de norma constante de acto
legislativo, com fundamento na sua contrariedade com uma convenção
internacional, ou a aplicou em desconformidade com o anteriormente decidido
sobre a que questão pelo Tribunal Constitucional.
Do mesmo passo, pode também concluir-se que a decisão recorrida não
aplicou norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;
não aplicou norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com
qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e); não aplicou norma já
anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal
Constitucional; nem, finalmente, aplicou qualquer norma já anteriormente julgada
inconstitucional pela Comissão Constitucional, nos precisos termos em que seja
requerido a sua apreciação ao Tribunal Constitucional.
Por outro lado, importa também anotar que tal, como foi definido
pela recorrente, o objecto do recurso não se integra na esfera de competência
normativa deste Tribunal.
Vejamos mais em pormenor.
Desde logo, importa reter que o objecto da fiscalização jurisdicional de
constitucionalidade reside apenas em normas jurídicas, não podendo o Tribunal
Constitucional pronunciar-se sobre uma (eventual) “inconstitucionalidade da
decisão judicial” ou sequer sindicar o mérito da aplicação do direito infra
constitucional, o que, de resto, tem sido unanimemente acentuado pela
jurisprudência deste Tribunal – cf. nesse sentido o Acórdão nº 199/88, publicado
no DR II Série, de 28 de Março de 1989.
Por isso se reconhece que os recursos de constitucionalidade, embora interpostos
de decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que nelas se contém
sobre a violação ou não violação da Constituição por normas mobilizadas na
decisão recorrida como sua ratio decidendi ou seu fundamento normativo, não
podendo visar as próprias decisões jurisdicionais, identificando-se, nessa
medida, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do
recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões
judiciais podem constituir objecto de tal recurso – cf., nestes exactos termos,
o Acórdão nº 361/98 e, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 286/93, 336/97,
702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos disponíveis para consulta em
www.tribunalconstitucional.pt/.
E isto porque a Constituição não configurou o recurso de constitucionalidade
como um recurso de amparo no âmbito do qual fosse possível sindicar qualquer
lesão dos direitos fundamentais, aí se incluindo a possibilidade de conhecer,
nesse âmbito, do mérito da própria decisão judicial sindicanda, antes recortou a
competência do Tribunal Constitucional em torno do conhecimento de questões de
constitucionalidade de normas, pelo que é perante tal conformação do sistema
jurídico-constitucional de recursos que o Tribunal pode actuar em termos de
avaliar da bondade constitucional de critérios normativos quando estejam em
causa os direitos fundamentais – daí decorrendo, como afirma Fernando Alves
Correia (“Os Direitos Fundamentais e a sua Protecção Jurisdicional Efectiva”, in
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2003, p. 72), que o
“recurso de constitucionalidade, sobretudo quando tem na base a suscitação pela
parte, durante o processo, da questão de constitucionalidade da norma jurídica
aplicável ao caso, desempenha um papel determinante na protecção dos direitos
fundamentais dos cidadãos”.
Tal é, na verdade, o que resulta do facto de “não exist[ir], no sistema
jurídico-constitucional português, um processo de «queixa constitucional»
(Verfassungsbeschwerde, staatsrechtliche Beschwerde, recurso de amparo) que
permita aos cidadãos lesados nos seus direitos fundamentais apelarem
directamente para um tribunal constitucional (...)”.
Por outras palavras e como se disse no Acórdão nº 133/97, “admitir-se-á em tese
geral que uma interpretação viole a lei, mas uma coisa é violar a lei e outra
violar a Constituição. O contencioso da constitucionalidade, por um lado, é um
contencioso de normas não de decisões, (...) tal como não cabe nos poderes de
cognição deste Tribunal sindicar a forma como o tribunal recorrido interpretou e
deu aplicação às normas que regem a questão submetida a julgamento”.
Ora, no presente caso concreto, o que a recorrente pretende é que o Tribunal
Constitucional sindique a aplicação que foi dada pelo Supremo às normas do
artigo 123º, nº 2, do CPPT e do artigo 659º, nº 2, do CPC, em comparação com o
decidido num aresto anterior, contudo, como decorre do exposto, é incontornável
que o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar a aplicação das
referidas normas, nem tão-pouco para aferir da (in)existência da reclamada
oposição de julgados.
Por outro lado, importa também explicitar que na circunstância da
recorrente pretender ver sindicada sub species constitutionis a bondade do
critério normativo aplicado pelas instâncias, cumpria-lhe ter suscitado durante
o processo tal questão de constitucionalidade em termos que vinculassem o
Tribunal recorrido ao seu conhecimento, o que não sucedeu.
5 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não
tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 8 (oito)
UCs.».
B – Fundamentação
5 – Como se vê do respectivo articulado, a reclamante não controverte
minimamente que seja a argumentação desenrolada como fundamento do decidido,
limitando-se a afirmar a sua discordância.
Ora, face à bondade de tal fundamentação, aqui se reitera a mesma.
Subjacente à sua alegação está uma concepção do recurso constitucional como
tendo a natureza de um recurso de instância, mas que não corresponde ao figurino
constitucional acima recortado.
Não cabe ao Tribunal Constitucional, segundo tal figurino, conhecer das
eventuais nulidades de que o acórdão recorrido padeça.
Por outro lado, relevante seria apenas a suscitação das questões de
inconstitucionalidade nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo, não podendo considerar-se as eventualmente alegadas e
abandonadas.
Todavia, nessas alegações a reclamante não suscitou qualquer questão de
constitucionalidade.
Acresce, finalmente, que só em sede da reclamação deduzida pela reclamante
contra o acórdão que declarou findo o recurso por oposição de julgados é que se
poderia ver colocada uma questão de constitucionalidade.
Mas a questão que então colocada surge reportada não a determinadas normas, que
hajam sido concretamente definidas, mas directamente á decisão, ou, mais
especificamente, em relação à alegada “nulidade” da mesma.
Na verdade – e relembrando – diz ela, aí:
“O douto acórdão ora proferido pelo Pleno do STA, não conhece de questões de que
deveria tomar conhecimento e, por efeito dessa nulidade que se invoca e se
requer seja suprida (artigo 125°, nº 1, do CPPT), resultam violados os
princípios constitucionais da igualdade e do processo equitativo, previstos nos
artigos 13º e 20º, nº 4, ambos da Constituição da República Portuguesa, na
interpretação conferida aos artigos 659º, nº 2, do Código de Processo Civil, e
286º, do Código de Procedimento e do Processo Tributário, violação essa que de
igual modo deverá ser conhecida”.
Como se disse na decisão reclamada, não cabe, porém, na competência
do Tribunal Constitucional aferir da constitucionalidade da decisão judicial em
si própria.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.
Lisboa, 11/12/2007
Benjamim Rodrigues
Joaquim Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos