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Processo n.º 581/07
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b),
da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC), do acórdão daquele Tribunal de 5 de Dezembro de 2005.
2. Em 6 de Junho de 2007 foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no
nº 1 do artigo 78º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«Conforme jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional,
“constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b)
do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: a aplicação pelo
tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é
questionada pela recorrente; a suscitação da inconstitucionalidade normativa
durante o processo; e o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso
cabiam” (cf. Acórdão nº 497/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Por outro lado, em consequência do carácter instrumental deste recurso, a
respectiva utilidade – ou seja, a susceptibilidade de repercussão na decisão
recorrida do julgamento da questão de constitucionalidade – surge como condição
do seu conhecimento (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 366/96 e
463/94, Diário da República, II Série, de 10 de Maio de 1996 e de 22 de Novembro
de 1994, e 687/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
1. O recorrente requer a apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 127º,
410º, nº 1, 412º, nº 3 e 428º nº 1, do Código de Processo Penal, interpretados
conjugadamente no sentido de que o recurso em matéria de facto, em processo
criminal, se restringe às situações de erro manifesto.
A alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, ao abrigo da qual o presente recurso
foi interposto, estabelece que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo, ou seja, “a tempo de o tribunal recorrido poder
decidir essa questão” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 155/95, Diário da
República, II Série, de 20 de Junho de 1995).
No caso presente, o próprio recorrente admite que não se mostra cumprido o
requisito da suscitação prévia daquela questão de inconstitucionalidade,
entendendo, porém, que “é legítimo que a arguição de inconstitucionalidade só
agora [no requerimento de interposição de recurso] seja formulada”, tendo em
conta “jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional”. Concretamente,
entende que só agora é que se confrontou com aquela interpretação normativa, que
corresponde a construção jurídica que o Tribunal da Relação lavrou a tal
propósito – inteiramente desconhecida do Recorrente à data em que elaborou a sua
motivação do recurso.
Com efeito, “este Tribunal tem vindo a entender, num plano conformador da sua
jurisprudência genérica sobre este tema, que naqueles casos anómalos em que o
recorrente não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de
constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder
jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir, ainda assim existirá
o direito ao recurso de constitucionalidade” (Acórdão nº 61/92, Diário da
República, II Série, de 18 de Agosto de 1992). E tem vindo a entender “que uma
das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para
suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder
jurisdicional é precisamente a daqueles casos em que é confrontado com uma
situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida,
de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a
antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da
prolação dessa decisão” (Acórdão nº 426/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Sucede, porém, que a interpretação normativa que o recorrente enunciou enquanto
objecto do recurso de constitucionalidade não pode ser qualificada de imprevista
ou inesperada. Para tal concluir, é suficiente atentar, entre muitos outros, num
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2003, numa decisão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Novembro de 2002 e num acórdão do
Tribunal da Relação do Porto de 5 de Junho de 2002 (disponíveis em www.dgsi.pt).
De forma impressiva, para o que importa apreciar e decidir, pode ler-se, num
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Maio de 2004 (www.dgsi.pt), a
instância que proferiu a decisão recorrida, o seguinte:
«Importa salientar, antes de mais e com o devido respeito pelo esforço
argumentativo do recorrente, que o pedido de reapreciação da matéria de facto
não conduz a um novo julgamento, nem pode supri-lo.
Na verdade, a prova gravada ou transcrita nunca poderá suprir a abundância de
pormenores (a cor e o cheiro) que a imediação proporciona ao juiz quando aprecia
a matéria de facto. O modo como a testemunha depõe, as suas reacções, as suas
reticências e a sua mímica, são factores decisivos na formação de uma convicção
final e não podem ser captados pela frieza de meios mecânicos.
Assim o juiz que, em 1ª instância, julga de facto goza de ampla liberdade de
movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de
harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.
As provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas
– art. 127.º, do CPP.
Essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório
recolhido pela percepção global é insindicável por esta Relação.
Como assim, o Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de
apreciação da prova poderá alterar o decidido em 1ª instância – será, por
exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido
diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença.
Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova
(não estando em causa, como in casu não está, prova dita tarifada ou legal), o
processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova é
insindicável pelo tribunal de recurso, havendo apenas que indagar se é
contrariado pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio,
suposto pela ordem jurídica.
Diga-se, ademais, que, na convicção, desempenham papel de relevo não apenas a
actividade puramente cognitiva mas também elementos que, racionalmente, não são
explicitáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e
mesmo elementos puramente emocionais (…).
Ensinava o Prof. Alberto dos Reis que a livre apreciação da prova é
indissociável do princípio da oralidade, «entendida como imediação de relações
(contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de
extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), e condição indispensável
para actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de
prova legal». Citando Chiovenda, concluía que «ao juiz que haja de julgar
segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o
ar é necessário para respirar» (…).
No caso, ponderando que, consabidamente, a credenciação e consistência
probatória dos depoimentos das testemunhas não valem pelo número, e não se
mostrando (como, no caso, se não mostra, em vista da fundamentação oferecida
pelo Colectivo) que, de harmonia com tais critérios, o deciso seja arbitrário,
infundado ou manifestamente erróneo, aquela decisão de 1.ª instância, que
beneficiou da oralidade e da imediação, não pode deixar de prevalecer, nos
termos prevenidos no art. 127.º, do CPP, sendo irrelevante, no contexto, a
percepção e mesmo a convicção alcançada pelo recorrente e pelos mais
intervenientes no processo (…)».
O recorrente não estava, pois, dispensado do cumprimento do ónus de, antecipando
a possibilidade de uma tal interpretação normativa, suscitar previamente quanto
a ela uma questão de inconstitucionalidade. Daí que seja de concluir, face à
falta do apontado requisito, pelo não conhecimento, nesta parte, do objecto do
presente recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A,
nº 1, da LTC). Independentemente da questão de saber se a norma identificada
pelo recorrente corresponde, exactamente, à norma aplicada pela decisão
recorrida.
2. O recorrente requer, ainda, que o Tribunal aprecie o artigo 374º, nº 2, do
Código de Processo Penal, devidamente conjugado com o artigo 379º, nº 1, alínea
a), do mesmo Código, na interpretação de que só a ausência total de referência
às provas em que se baseou a convicção do Tribunal é que constitui violação do
dever de fundamentação.
Sucede, porém, no caso em apreço, que a decisão desta questão de
constitucionalidade não é susceptível de se reflectir utilmente na decisão da
questão de fundo. Procedendo a um juízo de “antecipação” quanto às consequências
de um eventual juízo de inconstitucionalidade daquela norma – juízo que é
imposto pelo carácter instrumental do recurso de constitucionalidade interposto
– conclui-se que tal juízo nenhuma virtualidade teria de alterar a decisão
recorrida.
Com efeito, ainda que este Tribunal viesse a julgar inconstitucional a norma
cuja apreciação é requerida, manter-se-ia a decisão de indeferimento da nulidade
arguida pelo recorrente, com fundamento no disposto nos artigos 374º, nº 2, e
379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal. Manter-se-ia a decisão de
indeferimento da nulidade, uma vez que o acórdão recorrido considerou que a 4ª
Vara Criminal de Lisboa indicou as provas que serviram para formar a convicção
deste tribunal e procedeu ao “exame crítico da prova quanto ao montante
indemnizatório”.
Assim sendo, importa concluir, também quanto a esta parte, pelo não conhecimento
do objecto do presente recurso, o que justifica a prolação da presente decisão
(artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. Desta decisão vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo
do artigo 78º-A da LTC, nos termos e com os fundamentos seguintes:
«I - PEDIDO DE INTERVENÇÃO DO PLENÁRIO
1. A presente reclamação pode ser decidida pelo plenário do tribunal, caso o
presidente o determine, com a concordância do tribunal, quando isso seja
necessário para evitar divergências jurisprudenciais ou quando tal se justifique
em razão da natureza da questão a decidir.
2. É o que resulta da conjugação dos arts. 79º-A nºs 1 e 3, 77º nº 1 e 78º-A nº
3, por via das remissões sucessivas que tais preceitos legais efectuam.
3. No caso em apreço, são claras as divergências jurisprudenciais abaixo
assinaladas e é manifesta a relevância da questão central a decidir: em que
termos está o recorrente dispensado do ónus da prévia suscitação da
inconstitucionalidade arguida, o que se inscreve no âmbito do direito a uma
tutela jurisdicional efectiva que o art. 20º da C.R.P. consagra.
II - A DECISÃO SUMÁRIA
4. O Recorrente – como consta da decisão sumária – requereu a arguição da
inconstitucionalidade dos arts. 127º, 410º nº 1, 412º nº 3 e 428º nº 1 do
C.P.P., interpretados conjugadamente no sentido de que o recurso em matéria de
facto, em processo criminal, se restringe aos casos de erro manifesto [como
seria, por exemplo e caricatura, nos termos do acórdão da Relação objecto de
recurso, “o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente
oposto ao que foi considerado na sentença”].
A decisão sumária não tomou conhecimento do objecto do recurso por ter julgado
que o Recorrente não estaria dispensado do ónus de antecipar tal interpretação
normativa, que não poderia ser qualificada de imprevista ou inesperada, o que
fundou na circunstância daquele entendimento constar “entre muitos outros”
(sic), num acórdão do STJ de 9/7/2003, noutro da Relação de Lisboa de
22/11/2002, noutro ainda da Relação do Porto de 5/6/2002 e, finalmente, de forma
mais impressiva, no acórdão da Relação de Lisboa de 19/5/2004 (acórdãos
disponíveis em www.dgsi.pt).
5. Por outro lado, o Recorrente – como consta da decisão sumária – requereu
igualmente a arguição da inconstitucionalidade do art. 374º nº 2 do C.P.P.,
devidamente conjugado com o art. 379º nº 1 – a) do mesmo Código, interpretados
no sentido de só a ausência total de referências às provas em que se baseou a
convicção do tribunal é que constitui violação do dever de fundamentação.
Desta feita, a decisão sumária veio sustentar que tal questão não seria
susceptível de se reflectir na decisão da questão de fundo (!).
A decisão sumária antecipou que o acórdão da Relação se manteria inalterado, uma
vez que considerou que a 1ª instância “indicou as provas que serviram para
formar a convicção deste tribunal e procedeu ao exame crítico da prova quanto ao
montante indemnizatório”.
6. Acontece, porém, quanto ao primeiro item, que não é verdade que estivesse
consagrada a orientação jurisprudencial acima apontada, muito menos “entre
muitos” acórdãos, como aí erroneamente se refere, sendo ilegítima a conclusão de
que aquela interpretação não era inesperada ou imprevista.
7. E, quanto ao segundo item, a antecipação da inutilidade da declaração de
inconstitucionalidade requerida, para efeitos da decisão a proferir, é
destituída de qualquer base intelectualmente admissível.
8. O Recorrente sabe que é raríssimo que as decisões sumárias proferidas pelo
relator (cada vez mais frequentes) venham a ser alteradas pela conferência ou
pelo plenário. Não sabe mesmo se alguma vez isso ocorreu.
Mas isso não afecta nem a solidez nem a convicção da presente reclamação, sob
pena de se aceitar o facto consumado da pura denegação de justiça, como
aconteceu – ressalvado o devido respeito – com a decisão sumária ora reclamada.
O Recorrente anda, há quase três anos, de Herodes para Pilatos, a reclamar um
direito inquestionável: o direito a que seja reapreciada a matéria de facto que
levou à sua condenação, quando está, completa e absolutamente, inocente.
Fala-se muito, entre nós, de excesso de garantias. O caso dos autos ilustra, à
saciedade, que a prática judicial portuguesa enferma de um gravíssimo défice.
Aí de quem esteja inocente e caia nas malhas da justiça!...
É que o formalismo exacerbado que se instalou – aonde a luz da justiça não chega
ou mal ilumina – tanto dá para absolver os piores culpados, como para condenar
quem está inocente.
III - NÃO ERA CONHECIDA QUALQUER CORRENTE JURISPRUDENCIAL QUE SUSTENTASSE QUE,
NO PROCESSO PENAL, SÓ NO CASO EXCEPCIONAL DE ERRO MANIFESTO É QUE HÁ RECURSO EM
MATÉRIA DE FACTO
9. A decisão sumária confundiu as dificuldades práticas – tanto vezes dramáticas
e iníquas – em articular o princípio da livre apreciação de prova com o direito
a um efectivo recurso em matéria de facto com a tese inesperada, errada e
solitária, de que só nos casos excepcionais de erro manifesto é que está
assegurado tal recurso.
Essa tese – ao contrário do que diz a decisão reclamada – não correspondia –
pelo menos, à data do recurso, em 2004 – a qualquer corrente ou inclinação
jurisprudencial, não tendo sido perfilhado, como consta daquela decisão, por
“muitos” acórdãos, nem sequer, de acordo com os exemplos facultados nessa
decisão, por mais que um. Entre muitas centenas!!
Vejamos, mais de espaço, a falta de razão da decisão reclamada.
10. Primeiro: a lei, a constituição e o direito internacional.
A lei não restringe o recurso para a Relação em matéria de facto ao caso
excepcional das situações de erro manifesto, como resulta do texto dos arts.
410º nº 1, 412º nº 3, 428º nº 1 e 431º do C.P.P..
O art. 431º do C.P.P. consagra mesmo o princípio de que a decisão sobre a
matéria de facto pode ser modificada se, havendo documentação da prova, esta
tiver sido impugnada, nos termos legais, como foi. Sem qualquer restrição à
situação excepcional do erro manifesto.
Pelo contrário, o art. 410º nº 2 consagra um regime especial para a situação de
erro notório na apreciação da prova, que fica circunscrito aos casos em que a
lei limita a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, como
acontece, entre outros, com o STJ.
Esta solução legal – em vigor desde a reforma de 1998 – concretiza, afinal, o
princípio constitucional que manda o processo criminal assegurar todas as
garantias de defesa, incluindo o recurso, estando, de resto, em consonância com
o art. 2º do Protocolo nº 7 adicional à CEDH, que consagra o seguinte:
“Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o
direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de
culpabilidade ou a condenação”.
Isto é, não há, no texto da lei, da constituição ou das convenções
internacionais, nada que leve a que a estratégia da defesa se deva prevenir
relativamente à inaceitável restrição que veio a ser adoptada.
11. Segundo: a doutrina.
A doutrina portuguesa – perante o regime legal hoje consagrado – não considera
que o recurso em matéria de facto – em primeiro grau, isto é, para a Relação –
esteja restringido às situações excepcionais de erro manifesto.
E, pelo menos, tanto quanto se conhecem os textos de maior divulgação – por
exemplo, o Curso de Processo Penal (III) de GERMANO MARQUES DA SILVA – tal
questão nem sequer é equacionada.
Aliás, estes autos também demonstram essa evidência.
Na pendência do recurso para a Relação, foram juntos pareceres de FIGUEIREDO
DIAS, COSTA ANDRADE e MARQUES DA SILVA, que debateram, de forma exaustiva, o
erro de julgamento cometido na 1ª instância, sem nunca terem tido a necessidade
de discutir sequer que a sua avaliação teria de se restringir a uma situação de
erro manifesto.
Seria estranho que tão prestigiados jurisconsultos tivessem então ignorado uma
alegada, mas, afinal, inexistente, corrente jurisprudencial que limitaria o
recurso em causa às situações de erro manifesto!...
Da mesma sorte, o parecer de FARIA COSTA, junto em momento posterior, que
aborda, entre outros, precisamente o tema “do direito ao recurso, em especial,
do recurso em matéria de facto”, rebate a argumentação do acórdão da Relação ora
sob recurso, relativa à restrição do recurso circunscrito ao caso excepcional do
erro manifesto, sem necessidade de aludir àquela afinal inexistente corrente
jurisprudencial.
Finalmente, consultadas as mais prestigiadas anotações ao Código de Processo
Penal – seja a de MAIA GONÇALVES, na sua 15º edição de 2005, seja a de SIMAS
SANTOS e LEAL-HENRIQUES, na sua 2º edição de 2004 –, não há, em nenhuma delas, a
mais pequena limitação do âmbito do recurso em apreço às situações de erro
manifesto.
12. Terceiro: a jurisprudência do Tribunal Constitucional.
A jurisprudência do Tribuna! Constitucional nunca admitiu que, no regime legal
vigente, o recurso sobre matéria de facto tivesse de ficar restringido às
situações de erro manifesto, antes tendo sublinhado que a ponderação do
princípio da livre apreciação da prova e o respeito pela regra da imediação não
poderiam afectar um efectivo recurso em matéria de facto. Essa conjugação
permite que o tribunal de recurso venha a formar a sua própria convicção, que
pode ou não coincidir com a que se formou na 1ª instância.
Por todos, ainda que a propósito do art. 712º do C.P.C., veja-se o acórdão nº
415/2001 – citado, de resto, no recentíssimo acórdão nº 116/2007, relativo ao
tema que estamos a tratar, em processo pena! –, onde consta o seguinte:
É manifesto que, para julgar um recurso de uma decisão sobre matéria de facto,
interposto com o fundamento de que tal decisão resulta de uma errada apreciação
de depoimentos testemunhais em que se baseou, o tribunal de 2ª instância tem,
naturalmente, que proceder à apreciação desses depoimentos. Nessa apreciação,
igualmente feita nos termos do princípio da livre apreciação da prova, mas
obtida apenas a partir do registo de depoimentos que a 1ª instância pode valorar
com respeito pela regra da imediação, o tribunal de recurso forma a sua própria
convicção. Essa convicção pode, naturalmente, coincidir ou não com a que se
formou na 1ª instância (...).
13. Quarto: a jurisprudência dos tribunais superiores.
A jurisprudência dos tribunais superiores valoriza o princípio da livre
apreciação da prova, bem como o valor da imediação, mas não se conhece qualquer
corrente ou inclinação jurisprudencial que limite o recurso de facto para a
Relação às situações excepcionais de erro manifesto.
Tiveram-se presentes os acórdãos seleccionadas nos Códigos Anotados de MAIA
GONÇALVES e SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, não se encontrando, nas anotações aos
preceitos relevantes para o efeito, o sumário de qualquer acórdão que perfilhe a
tese ora sob recurso.
Idem para os sumários dos acórdãos publicados na Colectânea de Jurisprudência
(da ASS “Casa do Juiz”) e no BMJ (enquanto foi publicado) e, salvo erro ou
omissão, não se localizou qualquer sumário, no período relevante (entre 1998 e
meados de 2004, data da sentença de 1ª instância e do recurso respectivo), onde
aquela restrição fosse contemplada.
Finalmente, fez-se uma busca exaustiva aos sumários dos acórdãos publicados em
www.dgsi.pt, tendo por referência o descritor livre apreciação da prova e, salvo
erro ou omissão, não se encontrou um único sumário, entre centenas de sumários
consultados (do STJ e das Relações de Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e
Guimarães), que limitasse o recurso em matéria de facto para a Relação às
situações excepcionais de erro manifesto.
Não se pode confundir a prevalência dada à imediação, em termos por vezes
excessivos, com uma restrição do recurso para a Relação aos casos de erro
manifesto. Um dado é certo: não há qualquer corrente jurisprudencial que
consagre essa limitação.
Pelo contrário, é dominante a jurisprudência que, de forma expressa, sublinha os
poderes de cognição da Relação em matéria de facto, como, entre outros, o
acórdão do STJ de 23/3/2006, de cujo sumário consta o seguinte:
I – É de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de
defesa que as Relações façam um efectivo controlo da matéria de facto provada na
1ª instância, por confronto desta com a documentação em acta de prova produzida
oralmente.
II – O recurso da matéria de facto não é um novo julgamento, antes um remédio
jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in
procedendo, que são expressam ente indicados pelo recorrente (…)
IV – No controle da matéria de facto, não se devem descurar os princípios da
livre apreciação da prova e da imediação, que estão na essência da decisão da 1ª
instância, mas tais princípios não são um obstáculo inultrapassável antes um dos
muitos factores que o tribunal de recurso tem de ponderar na altura de modificar
ou não a matéria de facto provada.
V – O Tribunal de recurso tem poderes para modificar a matéria de facto, desde
que se esteja perante alguma das hipóteses prevista no art. 431º do CPP (cfr.
www.dgsi.pt, 06P547).
14. Quinto: os casos citados pela decisão sumária.
Em abono da sua posição, a decisão sumária cita um acórdão do STJ de 9/7/2003,
um acórdão da Relação de Lisboa de 22/11/2002, um acórdão da Relação do Porto de
5/6/2002 e, finalmente, de forma mais impressiva, um acórdão da Relação de
Lisboa de 19/5/2004.
Mas sem qualquer razão.
Quanto ao acórdão do STJ – que deve ser aquele de que foi relator
LEAL-HENRIQUES, tendo por primeiro descritor o princípio da livre apreciação da
prova –, não se encontra publicado o respectivo sumário, mas da análise do seu
texto pode concluir-se que não foi perfilhada a tese ora sob escrutínio. O STJ,
nesse aresto, limitou-se a censurar a Relação pelo facto de, à margem das
conclusões do recorrente, ter, por sua própria iniciativa, apoiando-se na
extensibilidade do princípio da livre apreciação da prova, alterado a matéria de
facto assente, o que não tem a ver com questão em causa nestes autos.
Quanto ao acórdão da Relação de Lisboa de 22/11/2002, o seu sumário – não está
publicado o texto integral – não exprime o ponto de vista de que o recurso sobre
a matéria de facto se restringe ao caso excepcional do erro manifesto, antes
expressando a seguinte e defensável tese, que se serve ao recurso que o ora
Recorrente havia interposto:
A garantia do duplo grau de jurisdição relativamente a matéria de facto nunca
poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e
global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e
correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento, incidindo
sobre determinados pontos de matéria de facto (cfr. www.dgsi.pt, 0020409).
Quanto ao acórdão da Relação do Porto de 5/6/2002, idem, como resulta do seu
texto e respectivo sumário, onde se defende tese que também serve ao recurso do
Recorrente:
A apreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a
convicção acolhida pelo Tribunal da 1ª instância caso se verifique que a decisão
sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos da prova
constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas
recolhidas, dado que a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida
com a imediação (cfr. www.dgsi.pt, 0210320).
Finalmente, o acórdão da Relação de Lisboa de 19/5/2004. Aí sim, defende-se a
tese do erro manifesto adoptado pelo acórdão da Relação recorrido, que, de
resto, “copiou” a passagem respectiva desse outro acórdão.
Mas isso é irrelevante para o efeito em causa. Trata-se de um acórdão
praticamente contemporâneo da decisão da 1ª instância e do respectivo recurso
(Julho e Setembro de 2004, respectivamente), que nem sequer se sabe quando é que
ficou disponibilizado para consulta, mas que seguramente o foi várias semanas
depois da sua prolacção.
Por seu turno, é um acórdão de que não foi extraído qualquer sumário e cujo
primeiro descritor é “roubo”.
Mas, sobretudo, é uma voz solitária – pelo menos, à época – que não revela
qualquer orientação, corrente ou tendência jurisprudencial.
Em Portugal, não vigora a regra do precedente e, de acordo com um princípio
processual de boa fé, não é exigível aos mandatários das partes que conheçam
todo e qualquer acórdão que tenha sido produzido.
15. Em suma, pelo menos à época, não era conhecida qualquer corrente ou
tendência jurisprudencial que sustentasse que, no processo penal, só no caso
excepcional de erro manifesto é que há recurso em matéria de facto.
Assim sendo, é inequívoco que a interpretação normativa em apreço era imprevista
e não tinha que ser antecipada pela defesa, pelo que a decisão sumária aplicou
erroneamente o art. 78º-A nº 1 da L.T.C..
IV - DIVERGÊNCIA COM A JURISPRUDENCIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
16. Porém, o mais chocante acaba por ser a flagrante divergência desta decisão
sumária relativamente a inúmeras outras decisões proferidas pelo Tribunal
Constitucional, em termos tão graves que chega a estar em causa o princípio da
igualdade e o direito a um processo equitativo.
17. Comecemos pelos acórdãos do TC citados pela própria decisão sumária, que
enquadram o tratamento da questão da oportunidade processual para suscitar o
tema da constitucionalidade: ac. nº 61/92 e ac. nº 426/2002.
Quanto ao ac. nº 61/92, o TC admitiu o recurso porque o recorrente não dispôs de
oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de
esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir, como
igualmente aconteceu com o ora Recorrente nestes autos. Aí, nem sequer se
discutiu a questão de saber se o recorrente podia ou não ter antecipado o
entendimento normativo em apreço, quando é certo que a matéria então
controvertida – a condenação no pedido por falta injustificada do réu e do
mandatário judicial em processo laboral, nos termos do art. 89º nº 3 do C.P.T.
então em vigor – há muito que era objecto de orientações jurisprudenciais
distintas e bem conhecidas.
Quanto ao ac. nº 426/2002, o TC rejeitou o recurso porque a decisão recorrida
não era de todo inesperada, uma vez que se estava perante matéria objecto de uma
orientação jurisprudencial assente, inclusive no próprio Tribunal
Constitucional, como, aliás, era expressamente reconhecido pelo então recorrente
no seu recurso!
Assim sendo, é óbvio que, se a jurisprudência desse acórdão tivesse sido
aplicada ao caso dos autos, a presente decisão sumária não poderia ter sido
proferida.
18. Mas há mais e mais recente.
No ac. nº 116/2007, de 16/2/2007, num caso que também tinha por pano de fundo
uma grande valorização dos princípios da livre apreciação da prova e da
imediação, o TC entendeu que não era razoável exigir ao aí recorrente que
antecipasse um concreto entendimento dado ao art. 428º nº 1 do C.P.P., no
sentido de que, tendo sido a prova livremente apreciada pela 1ª instância, a
Relação se poderia bastar com o cotejo de que os dados objectivos indicados na
fundamentação da sentença foram colhidos na prova produzida e transcrita.
O caso não é precisamente igual ao destes autos, mas é claramente similar, pelo
que, se esse espírito de razoabilidade e justiça tivesse sido aplicado ao ora
Recorrente, o seu recurso teria sido admitido.
19. Finalmente, um caso bem expressivo e eloquente: o do acórdão nº 122/2000,
proferido no chamado processo dos hemofílicos.
Aí, o TC considerou razoável que os recorrentes não tivessem antecipado o
entendimento dado ao art. 120º nº 1-a) da versão originária do C.P., no sentido
de que a prescrição se interromperia com a notificação para as primeiras
declarações do agente, como arguido, na instrução, quando essa até era a tese
dominante, embora não líquida, nas Relações.
Consideraram-se então dois argumentos fundamentais e especialmente relevantes
para o caso destes autos, a saber:
• Por seu turno, em face da favorabilidade que para si representava o despacho
que, na ocasião, foi impugnado pelos representante da acusação e auxiliares
deste, não se afigura que, de um ponto de vista de estratégia de defesa, fosse
exigível aos arguidos, para além de contraditarem os pontos de vista dos então
recorrentes, o equacionamento de qualquer outra questão, designadamente tercendo
armas pela ocorrência da prescrição do procedimento criminal que contra si foi
instaurado.
• Anote-se, ainda, que aquela interpretação é algo que não tem sido liquidam
ente sufragado pela jurisprudência dos nossos tribunais da ordem dos tribunais
judiciais, pelo sempre se poderá dizer que a mesma não constitui um dado com que
os operadores judiciários, inequivocamente, contém.
Isto é, naquele aresto, a estratégia da defesa foi admitida com fundamento para
a não invocação de uma tese que era conhecida e era, há anos, objecto de intensa
polémica. Por que raio de razão é que o ora Recorrente, na sua estratégia de
defesa, haveria de ter admitido a insólita, não conhecida, nem consagrada tese
que haveria de lhe inviabilizar o recurso?
Por outro lado, naquele aresto foi expressamente consagrado que tal
interpretação não tinha que ser antecipada porque não constituía uma
jurisprudência líquida, apesar de bem conhecida. Por que raio de razão é que ao
Recorrente era exigível antecipar uma tese perfeitamente isolada, insólita,
desconhecida e contrária à lei, à doutrina e à jurisprudência relevante.
20. Mais palavras, para quê?
É manifesta a falta de razão da decisão sumária e, ressalvado o devido respeito,
que muito é, a sua natureza profundamente iníqua e até ofensiva de um processo
legal equitativo.
V - A VIOLAÇÃO DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
21. A pena de prisão aplicada ao ora Recorrente está suspensa do pagamento de
uma indemnização de 2.456.629,00 €, acrescida de juros à taxa legal, sobre o
capital original devido, desde a notificação até integral pagamento.
Contudo, o Tribunal dera como assente que, em 1991, a alegada dívida era de
533.580,00 USD.
Foi inexplicável como é que considerou que, em 1993, passou a ser de
1.022.790,08 USD.
E ainda mais misterioso que, sem calcular os juros de mora, tenha arbitrado uma
indemnização de 2.456.629,00 €, correspondente ao capital em dívida e juros de
mora vencidos (quais?) até à propositura do pedido cível, acrescida de juros, à
taxa legal, sobre o capital original!!
Estamos no domínio de uma pura extorsão judicial, utilizando naturalmente esta
expressão na sua acessão simbólica.
22. Acerca desta matéria, o acórdão da Relação consignou apenas o seguinte:
Assim, a invocada omissão, neste particular, do exame critico da prova quanto ao
montante indemnizatório fixado e a consequente nulidade da decisão, por via do
disposto no art. 379º-a) e 374º do C.P.P afigura-se-nos como inexistente, pese
embora, se reconheça que o mesmo poderia ser mais exaustivo, já que só a
ausência total de referência às provas que constituíram a parte da convicção do
tribunal constituiria violação aos preceitos adjectivos supra referidos.
Isto é, a Relação desatendeu a nulidade arguida, por entender que era
inexistente a alegação da falta de exame crítico da prova apenas porque só a
ausência total de referências às provas é que constituiria violação do dever de
fundamentação, o que se entende que é inconstitucional.
A decisão sumária, embora admitindo esse juízo, veio sustentar que a declaração
de inconstitucionalidade seria inútil para o caso dos autos, uma vez que o
acórdão recorrido já teria considerado que a 1ª instância efectuara o exame
crítico da prova.
23. Ora, ressalvado mais uma vez o devido respeito, tal tese da decisão sumária
não tem qualquer base intelectual admissível.
É que a Relação só considerou inexistente a falta de exame crítico da prova
porque só a ausência total de referência às provas é que constituiria violação
do dever de fundamentação.
Donde, declarada a inconstitucionalidade deste entendimento, parece óbvio que
deixa de se poder considerar, à luz do acórdão da Relação, que inexiste tal
falta de exame crítico. Pelo exposto, também aqui a decisão sumária aplicou
erroneamente o art. 78º-A nº 1 da L.T.C. ao caso dos autos».
4. Notificado desta reclamação, o representante do Ministério Público junto
deste Tribunal respondeu-lhe nos termos seguintes:
«1º
Carece, a nosso ver, manifestamente de fundamento legal a pretensão de que seja
dirimida pelo Plenário a presente reclamação: na verdade, nem o recorrente
demonstra minimamente a existência de qualquer contradição jurisprudencial
acerca do ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade, durante
o processo, nem a intervenção do Plenário visa suprir divergências
jurisprudenciais – no caso, inexistentes – sobre matérias de processo
constitucional.
2º
Não tem razão o recorrente quanto à primeira questão de constitucionalidade que
equaciona: e, a nosso ver, não apenas por a não ter suscitado durante o
processo, mas – numa visão substancial das coisas – por a interpretação
normativa, tida por violadora da Lei Fundamental, não corresponder minimamente
ao critério normativo acolhido pela Relação.
3º
Não pode, na realidade, olvidar-se que a Relação realizou, ao longo de p.
3547/3553, numa detalhada análise crítica da prova produzida, na óptica da
respectiva credibilidade e convencimento judicial – não podendo,
consequentemente, afirmar-se que a “ratio decidendi” do acórdão recorrido
assentou numa interpretação, ultra-restritiva e minimalista, dos poderes de
sindicância da matéria de facto, que conduzisse a apenas lhe permitir valorar o
“erro notório” na respectiva apreciação pela 1ª instância, em termos análogos
aos que decorriam, para o Supremo Tribunal de Justiça, da fisionomia do recurso
directo da decisão do colectivo, decorrente da versão originária do Código de
Processo Penal.
4º
O que o acórdão recorrido, correctamente interpretado, considera é que – como é
evidente – os poderes de sindicância da Relação são, de algum modo, afectados
pela ausência de oralidade e imediação na valoração da prova, coisa diversa de
uma restrição à valoração do mero “erro notório” na sua apreciação.
5º
De igual modo, não tem razão o reclamante quanto à segunda questão que suscita
na respectiva reclamação para a conferência: não constitui questão de
inconstitucionalidade normativa, susceptível de apreciação pelo Tribunal
Constitucional, a que se traduz em saber se, no caso concreto, certa decisão da
1ª instância está devida e adequadamente fundamentada, apenas cumprindo sindicar
da constitucionalidade do critério normativo, consubstanciador daquele dever de
fundamentação, acolhido no acórdão recorrido.
6º
Sendo inquestionável que a Relação considerou que a decisão de 1ª instância
tinha procedido a um “exame crítico das provas” minimamente consistente e
adequado.
7º
Por outro lado, apenas está em causa o segmento decisório que tem conexão com a
apreciação do pedido de indemnização civil – pelo que o âmbito de dever de
fundamentação não poderia deixar de se ligar com o estabelecido na lei de
processo civil e de ter em conta o que a jurisprudência do Tribunal
Constitucional tem entendido sobre a matéria (cfr. acórdãos nºs 153/95, 55/97,
310/94 e 483/01)».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão que é objecto da presente reclamação concluiu no sentido do não
conhecimento do objecto do recurso interposto, ao abrigo do disposto no nº 1 do
artigo 78º-A da LTC: o recorrente não estava dispensado do ónus da suscitação
prévia da questão de inconstitucionalidade reportada aos artigos 12º, 410º, nº
1, 412º, nº 3, e 428º, nº 1, do Código de Processo Penal; o julgamento da
questão de inconstitucionalidade relativa ao artigo 374º, nº 2, do Código de
Processo Penal, devidamente conjugado com o artigo 379º, nº 1, alínea a), do
mesmo Código, não seria susceptível de se repercutir de forma útil na decisão
recorrida.
1. O reclamante começa por pedir que a presente reclamação seja julgada com
intervenção do plenário, invocando as disposições conjugadas dos artigos 79º-A,
nºs 1 e 3, 77º, nº 1, e 78º-A, nº 3, da LTC.
O pedido é manifestamente infundado, considerando, nomeadamente, que se trata de
recurso interposto em processo penal, já distribuído e em fase de reclamação de
decisão sumária (cf. artigos 79º-A, nº 2, e 78º-A, nº 3, da LTC), e que o nº 1
do artigo 77º daquela lei estabelece apenas que cabe à conferência o julgamento
da reclamação do despacho que indefira a admissão do recurso ou retenha a sua
subida.
Assim sendo, é irrelevante o que o reclamante sustenta quanto à “flagrante
divergência” da decisão sumária “relativamente a inúmeras outras decisões
proferidas pelo Tribunal Constitucional”. Apesar disso, sempre se dirá, por um
lado, que os acórdãos citados na decisão sumária (Acórdãos do Tribunal
Constitucional nºs 61/92 e 426/2002) o foram na estrita medida em que enunciam o
critério que permite dispensar o recorrente do ónus da suscitação prévia da
questão de inconstitucionalidade; e, por outro, que os Acórdãos nºs 116/2007 e
122/2000 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) em nada se afastam do
critério que vem sendo seguido por este Tribunal, segundo o qual o recorrente
está dispensado daquele ónus em casos anómalos em que não disponha de
oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade durante o
processo, designadamente quando é confrontado com uma aplicação ou interpretação
normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada.
Questão diversa será, certamente, a da aplicação do critério em causa nos
processos que deram origem àqueles acórdãos, sendo certo que, em nenhum deles,
foi apreciada a inconstitucionalidade da norma aplicada, como ratio decidendi,
no acórdão recorrido.
2. Relativamente à decisão de não conhecimento do objecto do recurso no que diz
respeito aos artigos 127º, 410º, nº 1, 412º, nº 3, e 428º, nº 1, do Código de
Processo Penal, interpretados conjugadamente no sentido de que o recurso em
matéria de facto, em processo criminal, se restringe às situações de erro
manifesto, o reclamante alega, fundamentalmente, que uma tal interpretação “não
correspondia – pelo menos à data do recurso, em 2004 – a qualquer corrente ou
inclinação jurisprudencial”.
O reclamante conclui que como, “pelo menos à época, não era conhecida qualquer
corrente ou tendência jurisprudencial que sustentasse que, no processo penal, só
no caso excepcional de erro manifesto é que há recurso em matéria de facto (…) é
inequívoco que a interpretação normativa em apreço era imprevista e não tinha
que ser antecipada pela defesa”, o que o dispensaria do ónus da suscitação
prévia da questão de inconstitucionalidade.
2.1. Segundo jurisprudência reiterada deste Tribunal, o recorrente tem o ónus de
questionar, previamente, a constitucionalidade da norma cuja apreciação requer,
dando cumprimento ao disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, quando
é previsível a aplicação de uma norma ou a sua aplicação com um determinado
sentido normativo. Recai sobre “a parte o ónus de analisar as diversas
possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas
na decisão e de utilizar as necessárias precauções, de modo a poder, em
conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar
a defesa dos seus direitos” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 165/2007,
disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Devendo o ónus da suscitação
prévia da questão de inconstitucionalidade ser cumprido, por conseguinte, ainda
que à norma aplicada pelo tribunal recorrido não corresponda uma qualquer
corrente ou tendência jurisprudencial.
Seguindo este entendimento, que de novo se reitera, a decisão reclamada concluiu
que a interpretação que o acórdão recorrido fez dos artigos 127º, 410º, nº 1,
412º, nº 3, e 428º, nº 1, do Código de Processo Penal não pode ser qualificada
de imprevisível ou inesperada. Pelo que, não podendo ser qualificada de
insólita, imprevista ou anormal, utilizando a terminologia deste Tribunal (cf.,
entre outros, Acórdãos nºs 333/92, 310/2000, 4/2004, 25/2007, 165/2007,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o recorrente não estava
dispensado do ónus de questionar, durante o processo, a constitucionalidade da
norma aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, como ratio decidendi.
A interpretação daqueles artigos do Código de Processo Penal – “o tribunal de
recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá
alterar o decidido em 1ª instância”, nas palavras do acórdão recorrido – não
pode ser qualificada de imprevista ou inesperada, já que a extensão do princípio
da livre apreciação da prova em sede de reapreciação da matéria de facto vinha
sendo discutida nos nossos tribunais, à luz dos princípios da oralidade e da
imediação da prova produzida em 1ª instância. É o que se retira, entre outros,
dos acórdãos citados na decisão sumária que, de facto, incidem sobre a questão
da modificabilidade da decisão recorrida sobre matéria de facto (artigo 431º do
Código de Processo Penal), por referência àqueles princípios de processo penal.
De resto, a transcrição que o reclamante fez dos sumários dos acórdãos do
Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Novembro de 2002, e do Tribunal da
Relação do Porto, de 5 de Junho de 2002, é bem significativa da problemática
atinente à extensão do princípio da livre apreciação da prova em sede de recurso
em matéria de facto.
2.2. Acrescente-se, ainda, que o teor da presente reclamação vem apenas
comprovar que, afinal, o recorrente pretendia a apreciação de uma norma
diferente da que foi aplicada, como ratio decidendi, no acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa. Algo que o requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal já indiciava e que não deixou de ser notado na decisão reclamada, a
qual foi proferida “independentemente da questão de saber se a norma
identificada pelo recorrente corresponde, exactamente, à norma aplicada pela
decisão recorrida”.
O recorrente pretendia a apreciação dos artigos 127º, 410º, nº 1, 412º, nº 3, e
428º, nº 1, do Código de Processo Penal, interpretados conjugadamente no sentido
de que o recurso em matéria de facto, em processo criminal, se restringe às
situações de erro manifesto, quando o tribunal recorrido interpretou e aplicou
aqueles artigos, no sentido de que o tribunal de recurso só em casos
excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá alterar o decidido
em 1ª instância. Ou seja, a interpretação identificada pelo recorrente contende
com os fundamentos do recurso em matéria de facto (artigo 410º do Código de
Processo Penal), enquanto que a do acórdão recorrido tem a ver com a
modificabilidade da decisão recorrida sobre matéria de facto (artigo 431º do
Código de Processo Penal).
Para além de resultar da própria formulação do Tribunal da Relação de Lisboa o
acabado de afirmar – a decisão de 1ª instância, em matéria de facto, só é
alterável em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova –,
abonam neste mesmo sentido as palavras que enquadram a interpretação normativa
feita por aquele Tribunal, que se transcrevem:
«Importa salientar, antes de mais e com o devido respeito pelo esforço
argumentativo dos recorrentes, que o pedido de reapreciação da matéria de facto
não conduz a um novo julgamento, nem pode supri-lo.
Na verdade, a prova gravada ou transcrita nunca poderá suprir a abundância de
pormenores que a imediação proporciona ao juiz quando aprecia a matéria de
facto. O modo como a testemunha depõe, as suas reacções, as suas reticências e a
sua mímica, são factores decisivos na formação de uma convicção final e não
podem ser captados pela frieza de meios mecânicos.
Assim, o juiz que, em 1ª instância, julga de facto goza de ampla liberdade de
movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de
harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.
Por maioria de razão, quando, como no caso, a prova se produz perante e com
intervenção) de um colectivo de juízes.
As provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas
– art. 127.°, do CPP.
Essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório
recolhido pela percepção global é insindicável por esta Relação.
Como assim, o tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de
apreciação da prova poderá alterar o decidido em la instância será, por exemplo
e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido
diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença.
Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova, o
processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova é
insindicável pelo tribunal de recurso, havendo apenas que indagar se é
contrariado pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio,
suposto pela ordem jurídica.
Diga-se, ademais, que, na convicção, desempenham papel de relevo não apenas a
actividade puramente cognitiva mas também elementos que, racionalmente, não são
explicitáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e
mesmo elementos puramente emocionais.
Ensinava o Prof. Alberto dos Reis que a livre apreciação da prova é
indissociável do princípio da oralidade, «entendida como imediação de relações
(contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de
extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), e condição indispensável
para actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de
prova legal». Citando Chiovenda, concluía que «ao juiz que haja de julgar
segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o
ar é necessário para respirar».
No caso, ponderando que, consabidamente, a credenciação e consistência
probatória dos depoimentos das testemunhas não vale pelo número, e não se
mostrando (como, no caso, se não mostra, em vista da cautelosa e pormenorizada
fundamentação oferecida pelo Colectivo) que, de harmonia com tais critérios, o
decidido seja arbitrário, infundado ou manifestamente erróneo, aquela decisão de
lª instância, que beneficiou da oralidade e da imediação, não pode deixar de
prevalecer, nos ternos prevenidos no art. 127.°., do CPP, sendo irrelevante, no
contexto, a percepção e mesmo a convicção alcançada pelos recorrentes e pelos
mais intervenientes no processo».
Por outro lado, só uma interpretação como a enunciada pelo reclamante, uma
interpretação que restringe os fundamentos do recurso em matéria de facto, é
compatível com a alegação no sentido de se tratar de tese inesperada, errada e
solitária, face ao consagrado no artigo 410º, nº 1, do Código de Processo Penal:
sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos
poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse
conhecer a decisão recorrida. Qualificação que pressupõe que o acórdão recorrido
tenha interpretado aqueles artigos do Código de Processo Penal no sentido de o
recurso em matéria de facto, em processo criminal, se restringir às situações de
erro manifesto.
2.3. Pelo exposto, é de confirmar a decisão de não conhecer, nesta parte, o
objecto do recurso interposto, já que não foi questionada, durante o processo, a
constitucionalidade da norma que o Tribunal da Relação de Lisboa aplicou, como
ratio decidendi – um ónus de que o recorrente não estava dispensado. Sendo
certo, ainda, que o recorrente não requereu a apreciação da norma aplicada pelo
tribunal recorrido, como ratio decidendi.
3. No que diz respeito à decisão de não conhecimento do objecto do recurso
relativamente ao artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, devidamente
conjugado com o artigo 379º, nº 1, alínea a), do mesmo Código, na interpretação
de que só a ausência total de referência às provas em que se baseou a convicção
do Tribunal é que constitui violação do dever de fundamentação, o reclamante
sustenta que “a Relação só considerou inexistente a falta de exame crítico da
prova porque só a ausência total de referência às provas é que constituiria
violação do dever de fundamentação”. Pelo que, a decisão da questão de
constitucionalidade seria susceptível de se reflectir utilmente na decisão da
questão de fundo, diferentemente do que se concluiu na decisão reclamada.
Porém, o que decorre do acórdão recorrido, nomeadamente da passagem que, de
seguida, se transcreve, é antes que inexiste nulidade da decisão, por violação
do disposto nos artigos 379º, alínea a), e 374º do Código de Processo Penal,
porque só a ausência total de referência às provas é que constituiria violação
do dever de fundamentação:
«Na sua fundamentação o tribunal valorou a este respeito, nomeadamente, os
depoimentos da testemunha, B., que explicou o modo como foram calculados os
valores constantes do pedido indemnizatório; o conteúdo dos documentos de fls.
451 e 580 (o co-arguido, C. referiu que as contas foram calculadas de acordo com
o valor indicado pelo recorrente), bem como os doc. De fls. 2160/2176, que
considerou determinantes para a prova do prejuízo da demandante cível.
Assim, a invocada omissão, neste particular, do exame critico da prova quanto ao
montante indemnizatório fixado e a consequente nulidade da decisão, por via do
disposto no at° 379 – a) e 374 do C.P.P. afigura-se-nos como inexistente, pese
embora, se reconheça que o mesmo poderia ser mais exaustivo, já que só a
ausência total de referência às provas que constituíram a parte da convicção do
tribunal constituiria violação aos preceitos adjectivos supra referidos».
De resto, esta passagem mostra bem que o Tribunal da Relação chegou à conclusão
de que inexistia, no caso, a invocada omissão do exame crítico da prova, sem ter
estabelecido qualquer relação com o entendimento de que só a ausência total de
referência às provas constituiria violação dos preceitos adjectivos supra
referidos. Este segmento da decisão foi utilizado apenas para concluir que
inexistia nulidade da decisão de 1ª instância, já que no caso havia exame
crítico da prova.
Como bem conclui o Ministério Público junto deste Tribunal, é «inquestionável
que a Relação considerou que a decisão de 1ª instância tinha procedido a um
“exame crítico das provas” minimamente consistente e adequado».
Consequentemente, é de reiterar que, ainda que este Tribunal viesse a julgar
inconstitucional a norma cuja apreciação foi requerida, manter-se-ia a decisão
de indeferimento da nulidade arguida pelo recorrente, com fundamento no disposto
nos artigos 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Circunstância que obsta ao conhecimento desta parte do objecto do recurso, por
inutilidade do mesmo.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 26 de Julho de 2007
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão