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Processo nº 268/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do processo n.º 11121/01.2 TDPRT, a 2.ª Vara Criminal do Porto
proferiu acórdão condenatório, nos termos do qual os arguidos A. e B. foram
condenados individualmente, como autores materiais de um único crime de denúncia
caluniosa consumado, p. e p. pelo art. 365.º do Código Penal, na pena de 180
dias de multa à taxa diária de € 100,00, perfazendo o montante total de €
18.000,00, tendo ainda sido condenados a, solidariamente, pagar ao
assistente/demandante civil C. a quantia de € 35.000,00, acrescida de juros de
mora à taxa legal desde a data de notificação do pedido de indemnização civil,
até integral pagamento.
Foram interpostos recursos da referida decisão pelos arguidos e pelo demandante
civil, pugnando os arguidos, por um lado, pela respectiva absolvição, e o
demandante civil, por seu turno, pela condenação dos arguidos numa indemnização
de montante mais elevado.
O Tribunal da Relação do Porto viria a julgar os recursos interpostos pelos
arguidos procedentes, revogando assim a decisão recorrida e absolvendo estes da
prática do crime pelo qual tinham sido previamente condenados em primeira
instância e do pedido civil, e o recurso interposto pelo demandante civil
improcedente.
Para tanto, o Tribunal da Relação do Porto fundamentou a decisão, relativa ao
recurso interposto pelos arguidos, na parte que ora nos interessa, da seguinte
forma:
“(...)
Posto isto, pensamos que a matéria de facto extraída da transcrição, conjugada
com a prova constante dos autos, nos permite reapreciar a prova que esteve
presente ao tribunal “a quo” sendo nosso convencimento de que estamos
precisamente situados numa linha de fronteira que divide a dúvida da certeza.
…
Relativamente ao caso concreto, pensamos que com as transcrições das gravações
da prova produzida em audiência, podemos formar uma convicção diferente daquela
a que chegou o tribunal “a quo”, embora com o domínio do princípio da imediação
inerente ao desenvolvimento do julgamento em 1ª Instância. Explicando melhor:
este tribunal de 2ª Instância não vai à procura de uma nova convicção; o que se
pretende é saber se a convicção expressa pelo tribunal “a quo” tem suporte
razoável naquilo que a gravação da prova, com os demais elementos existentes nos
autos, permite fazer valer. E perante os elementos constantes do processo,
principalmente através das provas gravadas, o Tribunal da Relação pode abalar a
convicção acolhida pelo tribunal de 1ª Instância caso se verifique que a decisão
sobre a matéria de facto não tem fundamento nos elementos de prova constantes do
processo.
Pensamos, e salvo melhor opinião, que no caso sub judice é preciso recentrar o
problema, o qual passa pela aplicação do princípio “in dubio pro reo”, que é um
princípio de prova que vigora em geral, ou seja, quando a lei através de uma
presunção não estabelece o contrário.
…
Perante o estado de dúvida a que nos temos vindo a referir, não podem deixar de
considerar-se como não provados todos os factos dados como provados e que se
relacionam com os elementos constitutivos do crime, designadamente com o dolo,
os quais passam, obviamente, para a matéria de facto dada como não provada.
Posto isto, é forçoso obedecer ao princípio “in dubio pro reo” o que
necessariamente conduz à absolvição dos arguidos.
Sendo, como são, absolvidos os arguidos do crime imputado por força de tal
princípio a que nos temos vindo a referir, o serão, necessariamente, também do
pedido civil formulado pelo assistente, já que o mesmo se baseava na prática de
um crime que afinal não conduziu à condenação penal dos recorrentes.
(...)”.
O Assistente apresentou então requerimento de esclarecimento nos seguintes
termos:
“(...)
Não se conhecendo discriminada e taxativamente os factos que o tribunal
considera como provados e como não provados, torna-se impossível aquilatar do
acerto – ou desacerto – da decisão.
Em conclusão, deverá (...) discriminar-se taxativamente, UM A UM, os factos que,
tendo sido dados como provados pela primeira instância, devem agora
considerar-se como não provados.
(...)”.
O Tribunal da Relação do Porto indeferiu essa pretensão do Assistente pela
seguinte forma:
“(...)
Quanto à questão da discriminação taxativa dos factos dados como provados que
devem agora considerar-se como não provados: Esta questão encontra-se,
obviamente, decidida no acórdão e, como se sabe, prende-se com a problemática do
dolo. E quanto a este, o acórdão é esclarecedor quando refere que a denúncia
daqueles factos efectuada pelos arguidos às referidas entidades, foi no sentido
de “denúncia para clarificação”, porquanto os arguidos tinham dúvidas sobre os
factos; e, assente que está esse estado de dúvida, tudo o que está relacionado
com o elemento subjectivo do crime foi considerado como não provado,
remetendo-se o assistente, nesta vertente, com a devida vénia, para todo o
acórdão recorrido. Daí que não haja agora necessidade de proceder, também, a uma
discriminação dos factos provados e não provados porque o que está em causa é o
elemento subjectivo da infracção e nada mais.
(...)”.
O Assistente viria ainda a arguir a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação
do Porto nos seguintes termos, tendo ainda suscitado as questões de
inconstitucionalidade colocadas neste recurso:
“(...)
Não se conhecendo discriminada e taxativamente os factos que o tribunal
considera como provados e como não provados, torna-se impossível aquilatar do
acerto – ou desacerto – da decisão. Obviamente.
Sendo assim, como é, o acórdão em crise encontra-se ferido de nulidade, vício
esse que aqui expressamente se argui para todos os efeitos legais.
(...)
O Tribunal da Relação do Porto conheceu do referido requerimento nos seguintes
termos:
“(...)
Na sua, aliás, douta, exposição, o assistente C. continua a desenvolver um
raciocínio discordante do aresto desta Relação constante de fls. 2917 a 3076; e
dizemos continua, porquanto, a primeira parte da exposição relaciona-se com o já
decidido pelo acórdão a fls. 3100 a 3103 e que agora esta Relação não pode
novamente voltar a apreciar. No que concerne à problemática das
inconstitucionalidades, resta dizer que, e porque são questões novas colocadas
pelo assistente, a fase processual presente já não as comporta. Daí que, e sem
necessidade de mais considerações, se decida indeferir liminarmente o formulado
pelo assistente a fls. 3141.
(...)”.
O Assistente interpôs então recurso da decisão do Tribunal da Relação do Porto
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do nº 1, do
artº 70º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), suscitando a inconstitucionalidade das seguintes “normas”:
“a) Artigos 374.º e 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, quando
interpretados no sentido de que é desnecessária a enumeração dos factos
provados e dos não provados, ainda que o próprio Tribunal da Relação tenha
alterado a matéria de facto dada como provada e como não provada pela primeira
instância;
aa) Esta interpretação que o Tribunal da Relação do Porto fez das ditas normas
legais briga frontalmente com o disposto no artigo 205.º, nº 1, da Constituição
da República Portuguesa, e viola frontalmente os seguintes preceitos e
princípios da nossa Lei Fundamental:
O art. 2.º da C.R.P., que consagra o princípio fundamental do Estado de Direito,
a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e direitos
fundamentais, concretizado nos seguintes subprincípios:
- no subprincípio do Estado constitucional ou da constitucionalidade, consagrado
no art. 3.º, n.º 3 da C.R.P., segundo o qual, e para além do mais, a validade
das leis e demais actos do Estado depende da sua conformidade com a
Constituição;
- no subprincípio da independência dos Tribunais e do acesso à justiça,
consagrado nos arts. 20.º e 205.º e ss. da C.R.P., segundo o qual, e para além
do mais, a todos é garantido o acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos
seus direitos e interesses legítimos, incumbindo aos Tribunais, na administração
da justiça, a defesa desses mesmos direitos e interesses legalmente protegidos;
- no subprincípio da prevalência da lei segundo o qual a lei deliberada e
aprovada pelo Parlamento tem superioridade e preferência relativamente a actos
da administração que está proibida de praticar actos contrários à lei;
- no subprincípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos que
significa que o cidadão tem o direito de poder confiar que às decisões públicas
relativas aos seus direitos serão aplicadas as normas legais vigentes e os
respectivos efeitos;
e,
- no subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo
procedimento, aflorado em diversos preceitos da C.R.P. e segundo o qual a todos
é garantido um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de
realização do direito.
b) Artigos 127.º, 363.º e 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, quando
interpretados no sentido que foi usado pela Relação do Porto nos acórdãos em
crise, ou seja, no sentido de que, apesar de o tribunal de recurso não dispor
dos mesmos elementos de prova de que pôde dispor a primeira instância – por
haver depoimentos, agora, imperceptíveis –, ainda assim pode o mesmo tribunal de
recurso sentir-se habilitado a aplicar o princípio constitucional da presunção
de inocência e o seu subprincípio «in dubio pro reo», decidindo que os agora
incompletos elementos probatórios disponíveis são suficientes para instalar no
espírito do julgador uma dúvida razoável que imponha a conclusão da inocência
dos arguidos e, em consequência, a respectiva absolvição;
bb) Esta interpretação que o Tribunal da Relação do Porto fez das ditas normas
legais briga frontalmente com o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição
da República Portuguesa, e viola frontalmente o princípio constitucional da
presunção de inocência e o seu subprincípio «in dubio pro reo».
(...)”.
O Recorrente apresentou alegações, culminando as mesmas com a formulação das
seguintes conclusões:
“(...)
1 - Recorre-se dos acórdãos da Relação do Porto proferidos nestes autos, em
15.03.2006 e em 25.10.2006;
2 - A questão da inconstitucionalidade foi suscitada após a prolação dos
acórdãos da Relação de que aqui se recorre;
3 - Tal ficou a dever-se ao facto de o recorrente ter sido «surpreendido com uma
interpretação normativa insólita e inesperada, com a qual, razoavelmente, não
poderia contar»;
4 - Na verdade, não era minimamente expectável que o Tribunal da Relação,
modificando a matéria de facto dada por assente na primeira instância, não
discriminasse os factos que passavam a considerar-se como provados e os que
passavam a entender-se como não provados;
5 - Assim como não era, em absoluto, expectável que o mesmo Tribunal aplicasse o
princípio da presunção da inocência e o seu subprincípio «in dubio pro reo» em
momento em que já não dispunha dos mesmos meios de prova de que a Primeira
Instância pôde dispor (as fitas magnéticas que serviram para gravar os
depoimentos prestados em julgamento, em grande parte, mostram-se
imperceptíveis, como decorre de dezenas de páginas da respectiva transcrição e
da audição das próprias fitas);
DIMENSÃO NORMATIVA IMPUTADA AOS ARTIGOS 374.º E 425.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE
PROCESSO PENAL:
6 - Da conjugação das normas dos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a) e
425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, legais infere-se, com toda a clareza,
que o Tribunal da Relação do Porto estava obrigado a PROCEDER À NOVA ENUMERAÇÃO
DOS FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS; pela simples razão de que revogou a
ENUMERAÇÃO que a primeira instância havia efectuado;
7 - Está, pois, em causa a conformidade constitucional da norma extraída dos
artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea. a), e 425.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal, quando interpretada no sentido de que é desnecessária a
enumeração dos factos provados e dos não provados, ainda que o Tribunal da
Relação tenha alterado a matéria de facto dada como provada e como não provada
pela Primeira Instância;
8 - A dimensão normativa em causa é confrontada com o dever constitucional de
fundamentação das decisões judiciais, constante do artigo 205.º, n.º 1, da
Constituição;
9 - Desse dever de fundamentação das decisões judiciais decorre que, nas
decisões sobre matéria de facto, é obrigatória a enumeração dos factos provados
e não provados;
10 - Quando se fala em «fundamentação» das decisões judiciais, a exigência
primeira que temos que fazer – e que o legislador ordinário faz no artigo 374.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal – é a da enumeração dos factos provados e
não provados;
11 - Sem essa enumeração factual, positiva e negativa, de nada nos adiantará
saber que provas serviram para formar a convicção do tribunal;
12 - A enumeração dos factos provados e não provados é condição «sine qua non»
para uma efectiva e correcta fundamentação das decisões judiciais;
13 - Sem essa enumeração dos factos provados e não provados não pode falar-se em
fundamentação de decisão judicial;
14 - O acórdão recorrido (de 15.03.2007; e o seu complemento, de 21.06.2006, que
decidiu a aclaração suscitada pelo recorrente), ao consignar que «Daí que não
haja agora necessidade de proceder, também, a uma discriminação dos factos
provados e não provados porque o que está em causa é o elemento subjectivo da
infracção e nada mais”, obrigará a exercícios mais ou menos complexos de
«adivinhação» desses mesmos factos;
15 - E «adivinhação», nesta matéria, é algo absolutamente intolerável num
qualquer Estado de Direito Democrático – vejam-se a propósito os doutos acórdãos
deste Tribunal Constitucional n.º 27/ 2007, n.º 61/2006 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt):
16 - Hoje está estabelecida, com dignidade constitucional, a regra geral do
dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, como foi salientado por
este Tribunal, no douto Acórdão n.º 680/98 publicado no mesmo local;
17 - Evidentemente que o acórdão em crise (o de 15.03.2006) tinha que ter
procedido à enumeração dos factos provados e dos não provados; e evidentemente
que, assim não tendo sucedido, deveria depois ter sido aclarado nessa parte. E
não o foi;
18 - É assim claro que, se a Relação resolve alterar a matéria de facto provada
e não provada, terá que discriminar quais os factos que afinal, e
diferentemente, entende como provados e não provados;
19 - Por se tratar de matéria fundamental para a análise e compreensão da
decisão;
20 - Não se conhecendo discriminada e taxativamente os factos que o tribunal
considera como provados e como não provados, torna-se impossível aquilatar do
acerto - ou desacerto – da decisão;
21 - É, pois, flagrante a violação da Constituição da República Portuguesa, já
que as normas atrás aludidas – artigos 374.º, n.º 2 e 425.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal – na interpretação que delas faz o Tribunal da Relação do Porto
(no sentido de que é desnecessária a enumeração dos factos provados e dos não
provados, ainda que o Tribunal da Relação tenha alterado a matéria de facto dada
como provada e como não provada pela primeira instância), brigam frontalmente
com aquele artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e
violam frontalmente os seguintes preceitos e princípios da nossa Lei
Fundamental:
O art. 2.º da C.R.P., que consagra o princípio fundamental do Estado de Direito,
a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e direitos
fundamentais, concretizado nos seguintes subprincípios:
no subprincípio do Estado constitucional ou da constitucionalidade, consagrado
no art. 3.º, n.º 3 da C.R.P.,
no subprincípio da independência dos Tribunais e do acesso à justiça, consagrado
nos arts. 20.º e 205.º e ss. da C.R.P.,
no subprincípio da prevalência da lei,
no subprincípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos;
no subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo
procedimento;
22 - Deve, assim, declarar-se a INCONSTITUCIONALIDADE das normas supra
mencionadas, na interpretação que a Relação do Porto delas fez;
DIMENSÃO NORMATIVA IMPUTADA AOS ARTIGOS 127.º, 363.º E 412.º, N.º 4, DO CÓDIGO
DE PROCESSO PENAL:
23 - O Tribunal da Relação do Porto decidiu alterar a matéria de facto dada como
provada e como não provada na primeira instância em termos que, como acima
dissemos, se desconhecem, mas com fundamento exclusivo no denominado princípio
«in dubio pro reo»;
24 - Acontece, porém, que aquela Relação alcançou o dito «estado de dúvida» com
base em depoimentos prestados em audiência na Primeira Instância, cuja
transcrição consta dos autos, e de onde resulta haver variadíssimos depoimentos
ditos expressamente de IMPERCEPTÍVEIS;
25 - O princípio «in dubio pro reo», obviamente, não pode funcionar nestes
casos, uma vez que o tribunal de recurso não teve, nem pode ter acesso a todos
os elementos de prova de que a Primeira Instância pôde dispor;
26 - E nesta medida, é também óbvio que a Relação estava impedida de afirmar o
princípio «in dubio pro reo», fazendo funcionar, como fez, o princípio
constitucional da presunção de inocência dos arguidos;
27 - A Relação aplicou o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal,
segundo o qual «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre
convicção da entidade competente.» E concluiu pela inocência dos arguidos em
virtude das dúvidas a que diz ter chegado; segundo as regras da experiência e a
sua livre convicção. Aplicando assim o princípio da presunção de inocência
previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
28 - E aplicou ainda as regras consignadas nos artigos 363.º e 412.º, n.º 4, do
Código de Processo Penal, que mandam proceder à documentação da prova e à
transcrição das gravações respectivas, usando essa documentação e transcrição.
E, também aqui, a Relação fez aplicação do princípio constitucional da presunção
de inocência dos arguidos, depois de analisar essa documentação da prova e
respectiva transcrição.
29 - Apenas, a aplicação desse princípio constitucional da presunção de
inocência – artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – foi
efectuada pela Relação sem a totalidade dos elementos probatórios de que dispôs
a primeira instância em audiência de julgamento.
30 - Ou seja, a Relação aplicou estas normas do Código de Processo Penal –
artigos 127.º, 363.º e 412.º, n.º 4 – de forma absolutamente inconstitucional,
já que as interpretou no sentido de que, apesar de não se dispôr da totalidade
da prova de que dispôs a primeira instância em julgamento, ainda assim era
possível formar outra convicção diferente da Primeira Instância e aplicar, na
Relação, o princípio constitucional da presunção da inocência dos arguidos;
31 - A Relação estriba-se na norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal
e, ao falar nas gravações e na transcrição da prova em audiência de julgamento,
estriba-se igualmente nas normas dos artigos 363.º e 412.º, n.º 4, do mesmo
diploma legal. Ou seja, são normas que, no caso concreto, constituíram a «ratio
decidendi» do acórdão;
32 - E estas normas foram aplicadas pela Relação do Porto no sentido de que,
apesar de o tribunal de recurso não dispor dos mesmos elementos de prova de que
pôde dispor a Primeira Instância – por haver depoimentos, agora, imperceptíveis
–, ainda assim, pode o mesmo tribunal de recurso sentir-se habilitado a aplicar
o subprincípio constitucional «in dubio pro reo», decidindo que os agora
incompletos elementos probatórios disponíveis são suficientes para instalar no
espírito do julgador uma dúvida razoável que imponha a conclusão da inocência
dos arguidos e, em consequência, a respectiva absolvição;
33 - É, assim, óbvio que são inconstitucionais – por violação do disposto no
artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e por violação do
princípio constitucional da presunção de inocência e do seu subprincípio «in
dubio pro reo» – as normas dos artigos 127.º, 363.º e 412.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal, quando interpretadas no sentido que foi usado pela Relação do
Porto no acórdão em crise;
34 - Deve, assim, declarar-se também a INCONSTITUCIONALIDADE das normas supra
mencionadas, na interpretação que a Relação do Porto delas fez.
(...)”.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
“1. Por carência de adequada suscitação, nos termos do artigo 72º, nº 2 da LTC,
não pode conhecer-se de dimensão interpretativa imputada aos artigos 127º, 363º
e 421º, nº 4 do Código de Processo Penal.
2. São inconstitucionais as normas dos artigos 374º, nº 2 e 425º, nº 4 do Código
de Processo Penal, quando interpretadas no sentido da desnecessidade de
enumeração, por parte do Tribunal de Relação, dos factos provados e não
provados, sendo alterada a matéria de facto dada como provada e não provada na
primeira instância, por violação do artigo 205º, nº 1 da Constituição.
3. Termos em que o presente recurso, deverá proceder parcialmente.”
O recorrido B. apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
“(...)
I - Como a arguição de inconstitucionalidade pelo recorrente é posterior à
prolação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto e, consequentemente, ao
esgotamento do respectivo poder jurisdicional, não se verifica o pressuposto do
recurso de inconstitucionalidade previsto no art. 70º, nº 1, alínea b) da Lei do
Tribunal Constitucional, dado que tal inconstitucionalidade não foi arguida,
como deveria, durante o processo.
II - É, com efeito, insustentável a tese do recorrente, segundo a qual terá sido
surpreendido por “uma interpretação normativa insólita e inesperada, com o
carácter de decisão surpresa”, visto que, cabendo à Relação a cognição da
matéria de facto apreciada na 1.ª instância, segundo o princípio constitucional
e legal da dupla jurisdição, não pode considerar-se surpreendente uma decisão
absolutória, como consequência de diverso exame crítico das provas, efectuado
pelo tribunal de recurso.
III - Absolvição ou condenação são contingências possíveis das decisões
judiciais em matéria penal e estas não podem considerar-se, por essa razão,
surpreendentes. Melhor dizendo, o exercício, pelos tribunais de recurso, da
liberdade constitucional e legal na formação da sua convicção impede, de forma
radical e absoluta, se possam ter por surpreendentes as decisões proferidas à
luz de uma tal liberdade!
IV - Entender-se diversamente conduziria à situação, incompatível com o sistema
constitucional e legal dos recursos, de que revestiriam a natureza de decisões
surpresa, todas as proferidas em novas instâncias e que concluíssem por modo
diverso das decisões recorridas, modificando-as ou revogando-as.
V - Se, contudo, e como parece poder deduzir-se da especiosa argumentação
analógica aduzida pelo recorrente, a sua “surpresa” se reporta ao que denomina,
sem razão, falta de enumeração, na decisão, dos factos provados e não provados e
alegada indisponibilidade, por “imperceptibilidade”, de meios de prova
produzidos em primeira instância, então e sem conceder, haverá que concluir que
tal “surpresa”, caso existisse, se não reporta realmente à decisão em crise mas
antes à formação da convicção do tribunal recorrido, a qual, por imperativo
constitucional e legal, é necessariamente livre!
VI - Por outro lado, as normas legais, cuja inconstitucionalidade, em sede de
interpretação, o recorrente vem arguir, nada têm que ver com a utilização, pela
Relação, do princípio «in dubio pro reo», utilização que o mesmo recorrente
considera «surpreendente». Como, aliás, em nada também contendem com o sobredito
princípio os doutos acórdãos acima citados, em que o mesmo recorrente se apoia.
VII - Ao invés do pretendido pelo recorrente, a Relação não modificou “a matéria
de facto dada por assente na 1.ª instância”, tendo sim considerado existir
dúvida insanável sobre a verificação dos elementos constitutivos essenciais dos
crimes imputados aos arguidos, designadamente sobre a existência dos respectivos
elementos subjectivos (dolo).
VIII - Não é, pois, da “surpresa” que releva a argumentação do recorrente, no
sentido de pretender ver admitido o seu recurso contra a regra expressa do art.
70º, nº 1, alínea b) da LTC, senão que da discordância relativamente à decisão
recorrida, o que é outra coisa!
IX - Nem a proibição legal das denominadas decisões surpresa pode, por via
analógica, como parece pretender o recorrente, ser estendida aos fundamentos da
decisão e, designadamente, aos concretos modos de formação da convicção do
tribunal.
X - Um entendimento diverso, inapelavelmente conduziria, por um lado, a que toda
e qualquer decisão judicial pudesse ser tida por surpreendente e, por outro, a
que os tribunais, antes de proferir todas e cada uma das suas decisões, devessem
anunciar previamente o respectivo sentido.
XI - Na verdade, bem compreendeu o recorrente que a convicção da Relação se
reconduziu à falada dúvida insanável sobre a existência dos elementos
constitutivos essenciais dos crimes imputados aos arguidos, mormente sobre a
verificação do elemento subjectivo, elementos estes que decorrem directamente do
respectivo tipo legal, e que são, assim, facilmente identificáveis.
XII - E que a interposição do recurso não pode legitimamente fundar-se na
alegada falta de enumeração dos factos provados e não provados, sob o pretexto
de tal haver constituído uma surpresa para o recorrente.
XIII - Foi, com efeito, exclusivamente em razão da livre convicção de dúvida
irredutível da Relação que, na decisão recorrida, vieram a julgar-se não
provados os factos relativos aos elementos constitutivos essenciais dos crimes
imputados aos arguidos (designadamente, repita-se, os concernentes ao elemento
subjectivo ou dolo), isto é, aquela decisão não proveio de o tribunal recorrido
ter efectuado um exame crítico da prova produzida em 1.ª instância que o tivesse
conduzido a julgar, directamente, não provados aqueles factos, senão que os
julgou não provados por ter chegado a um juízo de dúvida insanável sobre a sua
existência.
XIV - Não se tratou, pois, de decisão surpresa nem de decisão que não enumerasse
os factos provados e não provados, sempre no enquadramento do princípio
constitucional; fosse como fosse, o recorrente jamais usou do seu direito de
processualmente suscitar a alegada imperceptibilidade das transcrições,
naturalmente porque não considerou a questão relevante.
XV - A formulação utilizada pela Relação para fundamentar o seu juízo de dúvida
insanável, perfeitamente inteligível como é, não pode ter-se por violadora do
princípio, ínsito no art. 205º, nº 1 da Constituição, da fundamentação das
decisões judiciais, “na forma prevista na lei”.
XVI - Aliás, nenhum dos doutos acórdãos a tal propósito citados e em parte
transcritos pelo recorrente, como atrás se referiu, se reporta a tal questão.
Versam diferentes problemáticas, que o recorrente pretende, por analogia,
estender ao caso dos autos, mas relativamente às quais se não verifica a mesma
«ratio decidendi», a «eadem ratio» que constitui o fundamento do argumento
analógico.
XVII - Com efeito, o que a regra constitucional previne e visa impedir, bem como
a lei ordinária, para que aquela remete, é a falta de fundamentação das decisões
judiciais, não tendo, naturalmente, aplicação nos casos, como o presente, em que
a fundamentação da decisão recorrida é bem clara e, como tal, perfeitamente
inteligível.
XVIII - Tão clara, com efeito, foi a decisão recorrida que expressamente
indicou, como estando no cerne da dúvida irredutível dos julgadores, a eventual
qualificação da exposição dirigida pelos arguidos às autoridades sanitárias
como «denúncia para clarificação», efectuada no cumprimento dos deveres
deontológicos dos mesmos arguidos e, até, no exercício de um direito
constitucional de livre expressão.
XIX - Não sofre, assim, dúvida que o recorrente compreendeu perfeitamente o
sentido e o alcance da fundamentação do acórdão recorrido, pretendendo, tão-só,
prolongar o decurso do processo, arrimando-se a um argumento de
inconstitucionalidade que manifestamente não procede.
XX - Não poderá deixar de sublinhar-se, a este propósito, a incongruência de, no
entender do recorrente, a Relação ter, em seu acórdão, feito aplicação do
princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, vertido no artigo
32º, nº 2 da Constituição, “de forma absolutamente inconstitucional”, ou, o que
redunda no mesmo, interpretando, com alegada violação daquele preceito
constitucional, as disposições contidas nos artigos 127º, 363º e 412º, nº 4 do
Código do Processo Penal.
XXI - O entendimento em que se funda o recorrente é, nesta parte, manifestamente
contraditório, enquanto busca demonstrar que uma decisão como a recorrida, que
teve por base a aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência
do arguido, viola, por via da interpretação de determinadas disposições da lei
ordinária, aquele mesmo princípio.
Por seu turno, o recorrido A. apresentou igualmente contra-alegações, concluindo
da seguinte forma:
“(...)
A) – Constando da douta decisão quais os pressupostos de facto, quando se diz
que:
- atento “o teor da transcrição”, é quanto a nós duvidosa, segundo juízos de
experiência, a conclusão a que chegara, em matéria de facto dada como provada, a
1ª instância (sic) –fls. 133 –
- deu como provados dados factos, que o tinham sido em 1ª instância;
- deu como não provada matéria que o fora em 1ª instância e mais ainda “os
factos dados como provados, e que se relacionam com os elementos constitutivos
do crime, designadamente com o dolo”.
- e acrescentou o que figura a fls. 159 do douto acórdão, como na douta decisão
integradora do mesmo, estava “garantido o controlo da administração da
justiça... abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa
dos juízes...permitindo às partes um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios
das decisões judiciais recorridas” – Prof. G. Canotilho, in Direito
Constitucional, Teoria da Constituição, pág. 583 –, dando a para si “fiel
reconstituição dos factos que interessam ao exame e decisão da causa, obrigando
o julgador a traduzir, em termos objectivos e racionais as justificações da sua
preferência por uma das duas ou mais que duas versões que os intervenientes lhe
apresentam” – cfr. R.L.J., ano 130, pág. 11.
Ao agir assim, mesmo que formalmente pudesse ter adoptado outra posição,
satisfez a função “endoprocessual ,,, como heteroprocessual que é a “ratio” da
exigência constitucional da fundamentação”.
Não se violou, pois, o artigo 205, nº 1 da C.Rep, nem nenhum dos subprincípios
enumerados na conclusão 21ª do douto recurso.
B) – Á jurisdição constitucional não cabe curar de saber se era essa ou outra a
fundamentação que ao caso cabia.
C) – Não é caso de equacionar a valoração da dimensão normativa dos artigos 32,
nº 2 da C.Rep. e/ou 127 do C.P.P., ou 363º e 412º, nº 3 e 4 do mesmo diploma, se
e quando se discorda que, naquele caso e com aquela matéria, se pudesse alterar
a matéria de facto face a um tal registo da prova;
C. 1. – Não o é igualmente se, após dizer que “a conclusão a que o tribunal “a
quo” chegou na 1ª instância dando como provados factos fundados em juízos de
experiência, é quanto a nós duvidosa, pois o teor da transcrição assim o aponta”
(sic) – fls. 133 –, pois que esta levara a que se criasse convicção diferente
daquela a que chegou o tribunal “a quo” (sic – com sublinhado nosso!) se decide
em sentido contrário ao da 1ª instância.
C.2. – Se depois desta afirmação, acabasse por manter a condenação do arguido
estava, então sim a violar uma presunção, na medida em que, quando esta existe é
ao acusador que incumbe fazer a prova do contrário dos factos cobertos pela
presunção, como decorre da lei civil.
A douta decisão não fez qualquer aplicação em contrário do princípio da
“presunção de inocência”, antes interpretou o artigo 127 do C.P.P, à luz das
regras do artigo 32, nº 2 da lei fundamental
C.3. – O que o recorrente doutamente suscita é a questão de saber se, naquele
caso e com aquela matéria, se poderia alterar a matéria de facto face a um tal
registo da prova.
Mas isso nada tem a ver com a dimensão normativa dos artigos 127, 363 e 412,
nºs 3 e 4 do C.P.P, face ao artigo 32, nº 2 da Const. Rep.
Termos em que deve ser julgado improcedente, “in totum” o douto recurso.
(...)”.
*
Fundamentação
O recorrente – assistente e demandante civil nos autos – pretende submeter à
apreciação do Tribunal Constitucional as seguintes normas ou, melhor dizendo, as
seguintes interpretações normativas:
“a) as normas constantes dos artigos 374.º, nº 2, e 424., nº 5, do Código de
Processo Penal, quando interpretadas no sentido de ser desnecessária a
enumeração dos factos provados e não provados, quando em recurso é alterada a
matéria anteriormente dada como provada e não provada em primeira instância.
b) as normas constantes dos artigos 127.º, 363.º e 412.º, nº 4, do Código de
Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que um tribunal de recurso
possa absolver um arguido, condenado em primeira instância, com base em dúvidas
conducentes à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, independentemente do
grau de perceptibilidade de todos os meios de prova de que se servira a primeira
instância”.
1. Do não conhecimento da questão de inconstitucionalidade enunciada na alínea
b)
Nos termos do disposto no artigo 280.º, nº 1, alínea b), e no artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões
dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo'.
O recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do art. 70.º, da LTC, só pode ser
interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade
durante o processo, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer
(art. 72.º, nº 2, da LCT).
A questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada antes de se mostrar
esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre tal questão, na medida em
que o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe a existência de uma
decisão anterior desse tribunal sobre a questão de inconstitucionalidade que é
objecto do recurso.
Uma vez que, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a prolação da
sentença e que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro
material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem a torna obscura ou
ambígua, há‑de entender‑se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou
a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados
para suscitar a questão de inconstitucionalidade.
Só em casos muito particulares – em que o recorrente não tenha tido oportunidade
para suscitar tal questão antes de ser proferida a decisão recorrida, ou tendo
tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão
de inconstitucionalidade, ou em que, por força de preceito específico, o poder
jurisdicional não se tivesse esgotado com a prolação da decisão final – é que
será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão
tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
Segundo a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, as partes do
processo têm o ónus de considerar as várias hipóteses de interpretação razoável
das normas que a solução do caso pode convocar, por forma a criarem, logo que
possível, as condições processuais que permitam a adequada interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional.
No caso dos autos, o ora recorrente foi confrontado com os recursos interpostos
pelos arguidos relativamente à decisão que os tinha condenado pela prática de um
crime e teve a oportunidade de contra-alegar no âmbito desses recursos.
O recorrente sabia da amplitude dos fundamentos do recurso, pelo que,
obrigatoriamente, conhecia a amplitude dos poderes de cognição do Tribunal da
Relação e a modificabilidade da decisão recorrida.
O recorrente sabia que o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de
que pudesse conhecer a decisão recorrida (art. 410.º, nº 1, do C.P.P.), sabia
que as Relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º, nº 1, do C.P.P.) e,
para além disso, sabia que a decisão do tribunal de primeira instância sobre
matéria de facto pode ser modificada, nomeadamente se, havendo documentação da
prova, esta tiver sido especificamente impugnada (art. 431.º, b), do C.P.P.).
O recurso para o Tribunal da Relação, em matéria de facto, destina-se a
despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente
indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de
prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente
indicados (art. 412.º, nº 3, a) e b), do C.P.P.).
Na economia dos recursos que tenham por objecto a própria matéria de facto não
pode, pois, o recorrente alegar qualquer surpresa quando o tribunal superior
decida apreciar determinada prova gravada, segundo as regras da experiência e da
livre convicção, tal como já o tinha feito o tribunal de julgamento em primeira
instância.
Assim, tendo o recorrente acesso ao registo das gravações da prova produzida na
audiência de julgamento na primeira instância e sabendo dos poderes do Tribunal
da Relação em sede de alteração da decisão sobre a matéria de facto, a questão
da inconstitucionalidade da aludida interpretação normativa dos artigos 127.º,
363.º e 412.º, nº 4, do C.P.P., deveria ter sido suscitada perante o Tribunal da
Relação do Porto nas contra-alegações apresentadas, dando, assim, oportunidade a
esse Tribunal para apreciar tal questão.
Não tendo a questão sido colocada ao Tribunal da Relação do Porto, nesse
momento, por antecipação, a sua colocação nos incidentes pós-decisórios que se
seguiram já não se pode considerar atempada.
Não se mostrando satisfeito o requisito da suscitação atempada da questão de
inconstitucionalidade em causa perante o tribunal recorrido, não pode o Tribunal
Constitucional conhecer dessa questão.
2. Da questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos
374.º, nº 2, e 425.º, nº 4 do Código de Processo Penal de 1987
Antes de se iniciar a abordagem desta questão, que versa sobre a temática da
fundamentação das decisões dos tribunais, em especial, sobre a fundamentação das
decisões proferidas em sede de recurso sobre matéria de facto, no âmbito do
processo penal, importa precisar a interpretação normativa que está implícita na
decisão recorrida.
A propósito dos requisitos da sentença, o n.º 2, do art. 374.º, do C.P.P.,
dispõe que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos
factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível
completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam
a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a
convicção do tribunal”.
E o artº 379º, do C.P.P., comina com a sanção da nulidade a sentença que não
contiver as menções referidas no citado artº 374º, nº 2, do C.P.P..
Relativamente aos acórdãos proferidos em recurso, o n.º 4, do art. 425.º, do
mesmo diploma legal, prescreve que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos
proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º”.
O Tribunal da Relação do Porto fundamentou o respectivo acórdão, na parte que
importa para a decisão do presente recurso, da seguinte forma:
“(…) Perante o estado de dúvida a que nos temos vindo a referir, não podem
deixar de considerar-se como não provados todos os factos dados como provados e
que se relacionam com os elementos constitutivos do crime, designadamente com o
dolo, os quais passam, obviamente, para a matéria de facto dada como não provada
(…)”. E após ter concluído, assim, a sua análise da correcção da decisão sobre
a matéria de facto na 1ª instância, não descriminou quais os factos que tinham
sido considerados provados e que agora eram julgados não provados.
Requerida a aclaração do acórdão neste ponto, apesar da mesma ter sido
indeferida, o acórdão que sobre ela recaiu prestou o seguinte esclarecimento:
“(…) tudo o que está relacionado com o elemento subjectivo do crime foi
considerado como não provado, remetendo-se o assistente, nesta vertente, com a
devida vénia, para todo o acórdão recorrido. Daí que não haja agora necessidade
de proceder, também, a uma discriminação dos factos provados e não provados
porque o que está em causa é o elemento subjectivo da infracção e nada mais
(…)”.
Perante esta explicitação, deve precisar-se que a interpretação do disposto nos
artº 374º, nº 2, e 425º, nº 4, do C.P.P., efectuada pela decisão recorrida, é a
de que é desnecessária a discriminação dos factos provados e não provados em
acórdão, proferido em recurso, que altera a decisão sobre a matéria de facto,
quando se refere que todos os factos que tinham sido considerados provados na 1ª
instância, relacionados com o elemento subjectivo do crime, passam a integrar a
matéria de facto dada como não provada.
Uma vez que esta questão de inconstitucionalidade, excepcionalmente, é causa de
nulidade da decisão judicial recorrida, não podia o recorrente tê-la suscitado
previamente, pelo que a sua colocação em incidente pós-decisório revela-se
atempada, não tendo influência no seu conhecimento pelo Tribunal Constitucional
a recusa do Tribunal recorrido em apreciá-la.
Naturalmente, o parâmetro constitucional à luz do qual há-de avaliar-se a
constitucionalidade da interpretação normativa questionada é o art. 205.º, nº 1,
da C.R.P., com a redacção vigente, cujo teor é o seguinte:
“As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na
forma prevista na lei”.
O dever de fundamentação além de constituir uma das fontes de legitimidade da
jurisdição em geral (vide, nesse sentido, CRUZ VILLALON, em “Legitimidade da
justiça constitucional e princípio da maioria”, em “Legitimidade e legitimação
da justiça constitucional (Colóquio no 10.º Aniversário do Tribunal
Constitucional)”, págs. 87-89, da ed. de 1995, da Coimbra Editora, e MASSIMO
LUCIANI, em “Giurisdizione e Legittimazione nello Stato Costituzionale di
Diritto (Ovvero: Di Un Aspetto Spesso Dimenticato del Rapporto fra Giurisdizione
e Democrazia), em “Politica del Diritto”, Ano XXIX, n.º 3 (1998), págs.
376-377), é “uma garantia judiciária fundamental do cidadão no Estado de Direito
Democrático” (PESSOA VAZ, em “Direito processual civil. Do antigo ao novo
código”, pág. 220, da ed. de 1998, da Almedina).
Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/85 (pub. no B.M.J.
nº 360 (suplemento), pág. 195), citando Michele Taruffo (em “Notte sulla
garanzia costituzionale della motivazione”, estudo publicado no B.F.D.U.C., vol.
LV, e que impulsionou a introdução do dever de fundamentação no nosso texto
constitucional) “a fundamentação dos actos jurisdicionais em geral, cumpre duas
funções:
a) uma, de ordem endoprocessual, afirmada em leis adjectivas, e que visa
essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da
lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito
conhecimento da situação e colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir,
em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente;
b) e outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com a
referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de
tudo tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual,
lógica e jurídica da decisão”.
Na mesma linha, escreve Germano Marques da Silva, “a fundamentação dos actos
decisórios tem finalidades várias. Permite o controlo da legalidade do acto, por
uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca
da sua correcção e justiça, por outra parte, mas ainda é um importante meio para
obrigar a autoridade decisória a ponderar os motivos de facto e de direito da
sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrolo” (em “Curso de Processo
Penal”, vol. II, pág. 19, da 2.ª Edição, da Verbo). Acrescenta o mesmo Autor que
“a eficácia do recurso depende substancialmente da fundamentação e da
possibilidade de comprovação pelo tribunal ad quem dos pressupostos da decisão.
Por isso que a decisão deve ser fundamentada, quer no que respeita à
reconstituição do facto quer às motivações de direito (...). Sentença sem
fundamentação é corpo sem alma” (em “Registo da prova em processo penal”, em
“Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues”, Volume 1, pág. 806-807, da ed. de
2002, da Coimbra Editora).
Apesar da Constituição não determinar ela própria o alcance do dever de
fundamentar as decisões judiciais, remetendo para o legislador ordinário a
definição do respectivo âmbito, conforme escreveram Gomes Canotilho e Vital
Moreira, “a discricionariedade legislativa nesta matéria não é total, visto que
há-de entender-se que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do
próprio conceito de Estado de direito democrático (cfr. art. 2.º), ao menos
quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo,
como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de
garantia do direito ao recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a
fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição
concisa e completa dos motivos de facto, bem como das razões de direito que
justificam a decisão” (in “Constituição da República Portuguesa anotada”, 2º
vol., pág. 798-799, da 3.ª Edição, da Coimbra Editora).
Não são naturalmente, uniformes as exigências constitucionais de fundamentação,
relativamente a todo o tipo de decisões judiciais.
Segundo Germano Marques da Silva, “é hoje entendimento generalizado que um
sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece
com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as
profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso, todos os códigos
modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais, quer em matéria de
facto, quer em matéria de direito” (em “Curso de Processo Penal”, vol. III, pág.
288, da ed. de 1994, da Verbo).
É possível apreender, pois, um especial dever de fundamentação quando estão em
causa decisões finais em matéria penal, pelo grau de repercussão que podem ter
na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas.
Daí que, de acordo com a nossa lei processual, as sentenças penais, enquanto
actos decisórios que conhecem a final do objecto do processo, são sempre
fundamentadas, devendo especificar os motivos de facto e de direito da decisão
(art. 97.º, nº 1, a), e nº 4, do C.P.P.), e que, a propósito dos requisitos da
sentença, o n.º 2, do art. 374.º, do C.P.P., disponha que “ao relatório segue-se
a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados,
bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos
motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Podem-se destrinçar neste último normativo dois níveis de exigência do
legislador ordinário no que respeita à fundamentação das decisões judiciais
penais no plano do julgamento da matéria de facto.
Em primeira linha, a lei ordinária exige que o juiz da jurisdição penal enumere
os factos que julga provados e não provados.
Mas isto não é suficiente.
Para além disso, e ainda antes da operação de subsunção dos factos ao direito, o
juiz está ainda obrigado a explicitar o exame crítico das provas que serviram
para formar a convicção do tribunal.
Dir-se-á, no estádio actual da concepção do dever de fundamentação das decisões
judiciais penais em matéria de facto, que as duas operações acabadas de referir
são indissociáveis. Logicamente, a falta de enumeração dos factos provados e não
provados compromete seriamente e retira qualquer valor à mera operação de
indicação e exame crítico das provas.
O Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de se debruçar várias vezes
sobre a questão da fundamentação das decisões judiciais em matéria penal.
Relativamente à fundamentação das decisões proferidas em primeira instância, o
Tribunal Constitucional não foi confrontado com a singela questão da falta de
enumeração dos factos provados e não provados (1.ª parte, do n.º 2, do art.
374.º, do C.P.P.). A lei adjectiva é suficientemente clara e não deixa qualquer
margem para interpretações divergentes sobre esta exigência de fundamentação,
relativamente às decisões proferidas em primeira instância.
Neste âmbito, os problemas suscitados perante a jurisdição constitucional
passaram antes pela aferição do alcance da exigência da indicação e exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (parte
final, do n.º 2, do art. 374.º, do C.P.P.), como sucedeu nos acórdãos nº 680/98
(pub. em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 41º vol., pág. 451), 636/99 (no
site www.tribunalconstitucional.pt), 258/01 (pub. em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 50º vol., pág. 491), 487/04 (no site
www.tribunalconstitucional.pt) e 27/2007 (pub. no D.R., II Série, de 23-2-07).
Uma conclusão é segura após a leitura da fundamentação destas decisões,
independentemente do seu resultado. Se a lei processual penal ordinária não
contivesse a exigência de enumeração dos factos provados e não provados em
matéria de fundamentação das decisões de primeira instância, ou se essa
exigência fosse afastada por uma qualquer interpretação normativa, a justiça
constitucional não deixaria de considerar a norma ou a interpretação normativa
em questão afectada pelo vício da inconstitucionalidade.
Na verdade, sendo o apuramento dos factos provados e não provados o resultado
visado pelo exame crítico da prova produzida, se a enunciação desta é
considerada elemento imprescindível, por exigência constitucional, da motivação
da sentença penal, por maioria de razão o resultado desse exame também não pode
deixar de aí constar, através da enumeração dos factos provados e não provados.
Todavia, o caso dos autos respeita a uma decisão proferida pelo Tribunal da
Relação, em recurso.
Apesar de serem aqui aplicáveis os mesmos princípios que justificam a
obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais, as decisões dos tribunais
superiores, proferidas em recurso, apresentam algumas especificidades que
merecem um tratamento diferenciado, desde logo por parte da própria lei
ordinária.
Assim, nos acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de primeira instância, os quais não admitem recurso (art.
400.º, d), do C.P.P.), de acordo com o disposto no n.º 5, do art. 425.º, C.P.P.,
desde que não exista qualquer declaração de voto, podem limitar-se a negar
provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.
Esta solução legal radica inequivocamente em razões de economia processual e não
suscita qualquer desvalor de inconstitucionalidade no plano do dever de
fundamentação e da segurança jurídica.
O Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 281/2005 (pub. em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 62º vol., pág. 505) considerou “não padecerem de
inconstitucionalidade as normas dos artigos 97.º, nº 4, 379., nº 1., a), 425.º,
nº 4, 374., nº 2 e 379.º, nº 1, a), do C.P.P., interpretadas no sentido de que,
havendo lugar a uma total confirmação do anteriormente decidido, a fundamentação
da decisão em matéria de facto, proferida em acórdão de recurso que confirmou a
decisão de pronúncia, se basta com a remissão para a prova indicada na decisão
recorrida, não sendo exigível à decisão a proferir que explicite,
especificadamente, os fundamentos dessa adesão – autonomizando, em texto
próprio, a enumeração dessa prova, a especificação dos motivos de facto que
fundamentam a decisão e a análise da mesma -, mas tão-só que se indiquem as
razões pelas quais valida a conclusão fáctica e jurídica em apreço”.
Ainda que esta última situação respeite à fase de instrução e à confirmação
integral da decisão instrutória de pronúncia pelo tribunal de recurso, a ratio
decidendi da referida jurisprudência constitucional é a mesma que inspirou a
solução normativa consagrada no n.º 5, do art. 425.º, do C.P.P..
A fundamentação das decisões por remissão não gera por si só qualquer incerteza
jurídica.
Na verdade, como se disse no acórdão acima referido “o cumprimento do dever de
fundamentação das decisões está alcançado quando os respectivos destinatários –
e a comunidade globalmente considerada – conseguem conhecer cabalmente as
verdadeiras razões que subjazem ao concreto juízo decisório, isto é, quando as
decisões apresentam uma sustentada aptidão comunicativa dos critérios normativos
e fácticos que foram determinantes da decisão”.
Ora, ao remeter-se para os fundamentos da decisão recorrida, subscrevem-se os
pressupostos de facto e de direito dela constantes, aderindo-se, sem qualquer
reserva à sua fundamentação, a qual é conhecida e acessível a todos, pelo que se
mostram alcançadas todas as finalidades da obrigatoriedade de motivação das
decisões judiciais.
Diversamente, como bem vincou o Acórdão n.º 61/2006 deste Tribunal (pub. no
D.R., II Série, de 28-2-2006), a exigência constitucional da fundamentação das
decisões judiciais não fica satisfeita quando se instala justificadamente a
possibilidade de tentativas de “adivinhação” das razões específicas da decisão,
o que sucede quando desta não resulta suficientemente discriminada a matéria
factual que suporta o sentido da decisão.
O acórdão aqui em análise, proferido em recurso, não confirmou nenhuma decisão
absolutória proferida em primeira instância e, por isso mesmo, não podia
limitar-se a remeter integralmente para a fundamentação de facto, ao abrigo do
disposto expressamente no n.º 5, do art. 425.º, do C.P.P..
A decisão em crise convoca a interpretação e aplicação de outras normas
jurídicas, nomeadamente as constantes dos artigos 374., nº 2, e 425.º, nº 4 do
C.P.P..
Não cabe aqui sindicar ou tecer considerações relativamente ao acerto ou
desacerto da interpretação jurídica levada a cabo pelo Tribunal da Relação do
Porto, relativamente às referidas normas no mero plano da lei processual penal
ordinária.
Apenas interessa saber se o resultado hermenêutico, expressa ou implicitamente
alcançado pelo referido Tribunal, respeita as regras ou princípios
constitucionais.
A decisão em causa deu provimento aos recursos interpostos pelos arguidos e
revogou a decisão condenatória proferida em primeira instância, alterando a
fixação da matéria de facto que se encontrava enunciada no acórdão revogado ao
longo de 25 folhas de processado, sem enumerar os factos, que a final,
resultavam provados e não provados.
O Tribunal da Relação do Porto fundamentou essa alteração, após análise da prova
documentada e registada, da seguinte forma:
“(…) Perante o estado de dúvida a que nos temos vindo a referir, não podem
deixar de considerar-se como não provados todos os factos dados como provados e
que se relacionam com os elementos constitutivos do crime, designadamente com o
dolo, os quais passam, obviamente, para a matéria de facto dada como não provada
(…)”.
Posteriormente, reagindo a um pedido de aclaração, corrigiu aquela passagem e
esclareceu que:
“(…) tudo o que está relacionado com o elemento subjectivo do crime foi
considerado como não provado, remetendo-se o assistente, nesta vertente, com a
devida vénia, para todo o acórdão recorrido. Daí que não haja agora necessidade
de proceder, também, a uma discriminação dos factos provados e não provados
porque o que está em causa é o elemento subjectivo da infracção e nada mais
(…)”.
Repare-se que não se procede à supressão de um facto ou de vários factos
perfeitamente individualizados e identificados do elenco dos factos provados, os
quais passam a integrar a lista dos factos não provados, em termos de permitir
perceber, sem quaisquer dúvidas fundadas, quais foram afinal os factos dados
como provados e não provados.
A mera declaração no plano da fundamentação, de que se passam a “considerar como
não provados todos os factos respeitantes ao elemento subjectivo da infracção”,
e “nada mais que isso”, conduz necessariamente a um estado de incerteza
relevante, na medida em que os destinatários da decisão não podem contar com uma
interpretação razoavelmente uniforme relativamente ao que sejam os factos
(exclusivamente) respeitantes ao elemento subjectivo da infracção.
A referida fundamentação do acórdão de recurso pode propiciar diferentes
resultados interpretativos, tendo em conta os diversos destinatários
interessados na mesma, no que respeita à delimitação dos factos provados e não
provados.
É que a actividade de qualificação dos factos como respeitando exclusivamente ao
elemento subjectivo da infracção não é puramente mecânica, mas sim jurídica,
estando, por isso, inevitavelmente sujeita a uma diversidade de opiniões.
Não foi feita, pois, uma clara discriminação, efectuada de forma directa ou
indirecta, dos factos considerados provados e não provados.
Daí resulta uma falta de aptidão comunicativa da base fáctica que foi
determinante da decisão, não estando isenta de dúvidas a constituição das listas
de factos que se consideraram ou não provados.
Esta inaptidão impede o controlo da legalidade desta decisão, não permite
convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e
justiça e não obriga o seu autor a ponderar os seus pressupostos de facto,
falhando como meio de autocontrolo, tanto mais que o tribunal de recurso ao
reapreciar a decisão da matéria de facto tem de efectuar um exame crítico,
devidamente fundamentado da decisão recorrida nesta matéria.
Assim, a interpretação normativa que está implícita no texto do acórdão, mesmo
após o esclarecimento prestado, viola inequivocamente a exigência constitucional
da fundamentação das decisões judiciais, na medida em que abre a porta às
indesejáveis tentativas de “advinhação” dos fundamentos de facto da decisão por
parte dos respectivos destinatários.
Por isso, não se pode deixar de julgar que a interpretação normativa dos artigos
374.º, nº 2, e 425.º, nº 4, do C.P.P., adoptada pela decisão recorrida é
inconstitucional, por violação do art. 205.º, n.º 1, da C.R.P..
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Decisão
Pelo exposto, acorda-se em:
a) não conhecer da questão de inconstitucionalidade da dimensão interpretativa
imputada aos artigos 127º, 363º e 421º, nº 4, do C.P.P.;
b) julgar inconstitucionais, por violação do disposto no artº 205º, nº 1, da
C.R.P., as normas dos artigos 374.º, nº 2, e 425º, nº 4, do Código de Processo
Penal de 1987, quando interpretadas no sentido de que é desnecessária a
discriminação dos factos provados e não provados em acórdão proferido em
recurso, que altera a decisão sobre a matéria de facto, quando se refere que
todos os factos que tinham sido considerados provados na 1ª instância,
relacionados com o elemento subjectivo do crime, passam a integrar a matéria de
facto dada como não provada.
c) e, consequentemente, conceder parcialmente provimento ao recurso,
determinando a reformulação do acórdão recorrido, em conformidade com o presente
juízo de inconstitucionalidade.
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Custas do recurso pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC,
ponderados os critérios referidos no artº 9º, do D.L. nº 303/98, de 7 de
Outubro.
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Lisboa, 11 de Julho de 2007
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos