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Processo nº 570/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., B. e C. reclamam para a conferência, ao abrigo do
disposto no art. 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator, de não
conhecimento do recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que rejeitou,
por irrecorrribilidade da respectiva decisão, o recurso interposto pelos
arguidos do despacho judicial proferido nos autos de instrução 92/05.6IDBRG-A,
do 2.º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão, que os pronunciou como autores
dos factos constantes da acusação e autores morais e materiais, em concurso
real, de dois crimes de abuso de confiança fiscal simples e de um crime de abuso
de confiança fiscal agravado, à data dos factos, e, agora, um crime de abuso de
confiança fiscal simples, p. e p. pelos artºs 6.º, n.º 1, e 24.º, nºs 1 e 5, do
Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, e, actualmente, pelos artºs
6.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
2 – Fundamentando a sua reclamação, alegam os reclamantes:
«1. Salvo todo o imenso respeito – que é muito – a decisão que
indeferiu a admissibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional deverá ser
revogada por outra que o admita.
2. Pois, conforme demonstraremos, os recorrentes cumpriram todos os
requisitos necessários para que fosse admitido o recurso.
Senão vejamos:
3. O art. 75º-A da L.T.C., em situações desta jaez, exige os seguintes
requisitos, os quais deverão constar no requerimento de interposição do recurso:
* Indicação da alínea do nº 1 do art. 70º ao abrigo da qual é
interposto o recurso;
* Indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver
apreciada;
* Indicação da norma ou princípio constitucional que considera
violado;
* Indicação da peça processual em que o recorrente suscitou a questão
de inconstitucionalidade.
4. Acontece que, os recorrentes deram cumprimento integral aos
requisitos supra enunciados, depois de terem correspondido ao convite de
aperfeiçoamento formulado pelo Relator.
5. No requerimento de interposição do recurso, os recorrentes declararam
que:
* “O recurso é sustentado pela al. b) do nº 1 art. 70º de C.P.C.”
* “Em causa está a violação do princípio da igualdade consignado no
art. 13º do C.R.P.”
* E, a violação daquele princípio “foi invocada no requerimento da
abertura de instrução e nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação.”
6. Instados para completar o requerimento de interposição do recurso, os
recorrentes vieram suprir a falta de indicação de norma constitucional que
pretendem ver apreciada.
7. No caso, declararam os recorrentes que “a norma cuja
constitucionalidade pretendem ver apreciada, é o DL. 303/2003 de 5/12, “maxime”
o seu art. 5º nº 1, no que tange aos efeitos processuais de cessão de créditos
do Estado e da Segurança Social.”
8. Pensamos, assim que os recorrentes deram cumprimento cabal aos
requisitos, consignados no art. 75º-A da L.T.C.
9. No entanto, o Venerando Relator entendeu que os recorrentes não
indicaram “qualquer critério material de decisão”, não identificando o
“conteúdo” de uma norma ou dimensão normativa.
10. Além disso, o Venerando Relator indeferiu o requerimento por, o
recorrente, não especificar os efeitos processuais.
11 Pois bem, parece-nos que o Venerando Relator pretendia que se
oferecessem, desde logo as alegações e fundamentação do recurso interposto!...
12. Salvo todo o respeito, o requerimento em apreço respeitou os requisitos
de admissibilidade do recurso.
13. Se o Tribunal Constitucional entender confirmar a decisão do Venerando
Relator – o que não se perspectiva – estaria a inverter um princípio fundamental
do Direito Processual: o princípio da supremacia do direito substantivo e
material sobre o direito adjectivo e instrumental.
14. No momento oportuno – aquando das alegações – os recorrentes apontarão
os requisitos pretendidos pelo Venerando Relator.
15. Diga-se ainda que, o acrescento de fundamentação indicado pelo
Venerando Relator não tem sustentabilidade, salvo melhor opinião.
16. Resulta inequívoco que os recorrentes invocaram a inconstitucionalidade
no requerimento de abertura de instrução e nas alegações do seu recurso para o
Tribunal da Relação, tendo formulado as respectivas conclusões.
17. Os Recorrentes acreditam que o despacho de indeferimento será revogado
por outro que admita o recurso.
18. Pois, se assim não for, o Tribunal Constitucional estaria a limitar – o
que não se espera – em demasia o acesso à Justiça Constitucional!...
Termos em que deve a presente reclamação ser julgada procedente e, por
consequência, ordenar-se a admissibilidade do recurso, revogando-se o despacho
do Venerando Relator, pois só assim se fará a habitual e almejada Justiça!... ».
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
respondeu dizendo ser a reclamação manifestamente improcedente, por ser
“inquestionável que os recorrentes não lograram substanciar minimamente – apesar
da oportunidade processual que lhes foi conferida – a questão de
inconstitucionalidade normativa que pretendiam submeter ao Tribunal
Constitucional – o que naturalmente acarreta a inadmissível indefinição do
objecto do recurso interposto”.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., B. e C. recorrem para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação do Porto
que rejeitou, por irrecorrribilidade da respectiva decisão, o recurso interposto
pelos arguidos do despacho judicial proferido nos autos de instrução
92/05.6IDBRG-A, do 2.º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão, que os
pronunciou como autores dos factos constantes da acusação e autores morais e
materiais, em concurso real, de dois crimes de abuso de confiança fiscal simples
e de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, à data dos factos, e,
agora, um crime de abuso de confiança fiscal simples, p. e p. pelos artºs 6.º,
n.º 1, e 24.º, nºs 1 e 5, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não
Aduaneiras, e, actualmente, pelos artºs 6.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do Regime
Geral das Infracções Tributárias.
2 – No requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, os arguidos limitaram-se a alegar que “em causa está a
violação do princípio da igualdade, consignado no art.º 13.º da CRP, o qual foi
invocado no requerimento da abertura de instrução e nas alegações de recurso
para o Tribunal da Relação”.
3 – O recurso foi admitido pelo tribunal a quo.
Esta decisão não vincula, todavia, o Tribunal Constitucional,
como se estabelece no n.º 3 do art.º 76.º da LTC.
Deste modo, configurando-se uma situação que se enquadra na
hipótese normativa recortada no art.º 78.º-A, n.º 1, da LTC, passará a
decidir-se imediatamente.
4 – No Tribunal Constitucional, o relator convidou os
recorrentes a “dar cabal cumprimento ao disposto no n.º 1 do art.º 75.º-A, da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual, e sob a cominação
estatuída no n.º 7 do mesmo preceito”.
Dando resposta a tal convite, vieram os recorrentes dizer que
«nessa conformidade, consignam que a norma cuja constitucionalidade pretendem
ver apreciada, é o DL. 303/2003, de 5 de Dezembro, “maxime” o seu art.º 5.º, n.º
1, no que tange aos efeitos processuais da cessão de créditos do Estado e da
Segurança Social, na medida em que viola, entre outros, o princípio da
igualdade, ao conceder a uma entidade particular prerrogativas próprias de um
Ente público».
5.1 – Como é consabido, o objecto do recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º
da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, disposição esta
que se limita a reproduzir o comando constitucional, corporiza-se na questão de
(in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito
efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí
decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
desenhado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. Cardoso da Costa,
«A jurisdição constitucional em Portugal», in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, I,
1984, pp. 210 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no
Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no
mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Neste domínio da fiscalização concreta de constitucionalidade,
importa, ainda, acentuar que a intervenção do Tribunal Constitucional se limita
ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal
a quo apreciou ou devesse ter apreciado, em termos da resolução da questão de
constitucionalidade poder, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida,
implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento.
Tal só é possível quando a norma cuja constitucionalidade o
Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão
recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
5.2 – Ora, no caso sub judicio, constata-se que a decisão
recorrida não fez aplicação das normas do Decreto-Lei n.º 303/2003, de 5 de
Dezembro, cuja inconstitucionalidade os recorrentes pretendem que o Tribunal
Constitucional aprecie.
Na verdade, após agrupar, em torno de quatro pontos, as
questões postas no recurso [“I-Recorribilidade da decisão recorrida; II-Relevo
da cessão de créditos na legitimidade do Ministério Público para promover a
acção penal; III-Verificação de simulação absoluta no texto do art.º 5.º, n.º 1,
do D.L. 103/2003, de 5/12; IV-Inconstitucionalidade do D.L. 303/2003, de 5/12,
derivada de o legislador conceder ao cessionário privado prerrogativas próprias
dos entes públicos”], o acórdão recorrido intentou a tarefa de identificar o
objecto do recurso jurisdicional.
E, nesse âmbito, concluiu que, segundo a interpretação
correcta a dar ao requerimento de interposição do recurso, se tinha de
considerar que aquilo que os recorrentes pretendiam discutir, no recurso, era
“se os factos imputados integram ou não ainda ilícitos penais”, sendo que,
relativamente a essa matéria, os recorrentes defendiam que a cessão de créditos,
entre o Estado e o D., “gerou, na realidade, a despenalização dos comportamentos
imputados no despacho de pronúncia” e não a ilegitimidade do Ministério Público
para promover a acção penal.
Partindo daquele pressuposto, o acórdão ajuizou, então, que a
situação processual cabia na hipótese delineada no n.º 1 do art.º 309.º do
Código de Processo Penal e que a decisão recorrida era, por força deste
preceito, irrecorrível.
Ora, não cabendo na competência do Tribunal Constitucional
sindicar a correcção do juízo feito pelo acórdão recorrido sobre qual o sentido
a dar ao requerimento de interposição do recurso para tal tribunal, nem da
aplicação, ao caso, do disposto na norma infraconstitucional constante do art.º
309.º, n.º 1, do CPP, importa relevar, apenas, que a decisão de rejeição do
recurso se fundou na aplicação deste preceito adjectivo e não no Decreto-Lei n.º
303/2003.
Mas, não tendo este diploma constituído ratio decidendi do
acórdão recorrido, falece, então, o analisado pressuposto específico do recurso
de constitucionalidade.
5.3 – Mas, independentemente desta razão e de se poder
cogitar se os recorrentes suscitaram a questão de constitucionalidade, em termos
adequados, nas suas alegações de recurso para o tribunal a quo, uma outra existe
que conduz ao mesmo resultado.
De acordo com o princípio dispositivo do processo e da
autoresponsabilidade das partes, que encontra consagração no n.º 1 do art.º
75.º-A da LTC, constitui ónus do recorrente identificar a norma ou normas que
constituem objecto do recurso de constitucionalidade.
Tratando-se de concretas ou determinadas acepções ou dimensões
normativas, extraídas por interpretação dos preceitos de direito positivo
infraconstitucional, essa identificação da norma passa pela definição do
respectivo critério normativo infraconstitucional que se pretende ver
fiscalizado constitucionalmente, em termos de o mesmo poder constituir objecto
do julgamento de inconstitucionalidade a decretar pelo Tribunal Constitucional.
Ora, tal não sucede no caso em apreço.
Na verdade, os recorrentes, apesar de convidados para tal, nos
termos do n.º 5 do art.º 75.º-A da LTC, vieram em resposta dizer, apenas, que «a
norma cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada, é o DL. 303/2003, de 5
de Dezembro, “maxime” o seu art.º 5.º, n.º 1, no que tange aos efeitos
processuais da cessão de créditos do Estado e da Segurança Social».
Trata-se de uma enunciação feitas em termos genéricos que não
permitem a definição de qual seja a concreta dimensão ou interpretação normativa
que está em causa no recurso de constitucionalidade.
O Decreto-Lei n.º 303/2003, de 5 de Dezembro é um diploma que,
constituído por nove artigos, “altera o Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de
Novembro, que estabelece o regime da titularização de créditos e regula a
constituição e a actividade dos fundos de titularização de créditos, das
respectivas sociedades gestoras e das sociedades de titularização de créditos, e
o Decreto-Lei n.º 219/2001, de 4 de Agosto, que estabelece o regime fiscal das
operações de titularização de créditos efectuados nos termos do Decreto-Lei n.º
453/99, de 5 de Novembro”.
Nas suas disposições, o Decreto-Lei n.º 303/2003 contém várias
normas ou critérios normativos de decisão.
Apontando todo o diploma como constituindo objecto do recurso
de constitucionalidade, os recorrentes acabam por não identificar qual é o
concreto critério normativo que pretendem ver fiscalizado constitucionalmente,
dentre os vários critérios que o constituem.
É certo que eles acentuam que «a norma de tal diploma cuja
constitucionalidade pretendem ver apreciada é “maxime” o seu art. 5.º n.º 1, no
que tange aos efeitos processuais da cessão dos créditos do Estado e da
Segurança Social».
Mas uma tal definição deixa indeterminado não só o âmbito da
relação ou conexão interpretativa que intercede entre esse artigo 5.º e os
demais artigos do diploma, no que importa à identificação de qual seja a
concreta norma deles extraída, como, limitando-se a dizer que a norma é
«”maxime” o seu art.º 5.º n.º 1, no que tange aos efeitos processuais da cessão
dos créditos do Estado e da Segurança Social», se demite de concretizar quais
sejam os concretos efeitos processuais que estão em causa que hajam constituído
ratio decidendi da decisão.
Essa identificação cabia aos recorrentes por força do referido
princípio da autoresponsabilidade processual, não cabendo ao Tribunal
Constitucional proceder a essa concretização perante a decisão recorrida.
E compreende-se que assim seja, porquanto não cabe ao Tribunal
Constitucional determinar o sentido com que, dentre os vários possíveis, as
normas terão sido aplicadas na decisão recorrida, mas apenas verificar se a
norma, pretendida fiscalizar constitucionalmente, constituiu ratio decidendi da
decisão recorrida e se a mesma viola normas ou princípios consagrados na
Constituição.
Temos, portanto, que, também, por falta de cumprimento do ónus
de adequada identificação da norma objecto do recurso de constitucionalidade não
se pode tomar conhecimento do mesmo.
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 8
UCs.».
B – Fundamentação
5 – Na sua reclamação, os reclamantes em nada contestam a
correcção dos concretos fundamentos em que se abonou a decisão reclamada para
concluir pelo não conhecimento do recurso. Tais fundamentos são, pela sua
bondade jurídica, de reiterar nesta sede.
Assim sendo, a reclamação deve ser indeferida.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelos reclamantes, com taxa de justiça que se fixa em
20 UCs.
Lisboa, 11 de Julho de 2007
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos