Imprimir acórdão
Processo nº 381/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. vem reclamar da decisão sumária de fls. 282 e segs., que decidiu não
conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade por aquele interposto do
acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 270 e segs. Pode ler-se na
fundamentação da decisão ora reclamada:
3. Profiro para este caso Decisão Sumária, ao abrigo do nº 1 do artigo 78º‑A da
Lei do Tribunal Constitucional, por entender que, nele, não pode o Tribunal
conhecer do objecto do recurso.
4. A. pretende interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b)
do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
O recurso é interposto por meio de requerimento onde se diz, a fls. 278
Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade da norma do art. 292.°, n.° 2,
do Código Penal com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida,
isto é, quando interpretada no sentido de permitir a condenação do arguido por
condução sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou
produtos com efeito análogo sem ter sido apurada a quantidade de canabinóides
presentes no seu organismo. [itálico nosso]
Afirma ainda o recorrente (ibidem) que a inconstitucionalidade de tal norma,
assim interpretada, foi por ele suscitada durante o processo; e que a referida
interpretação normativa viola o artigo 32º, nº 2, da Constituição da República.
5. No entanto, e como bem se sabe, o controlo de constitucionalidade em direito
português incide sempre sobre normas e nunca sobre decisões judiciais. Como
disse o Tribunal Constitucional no Acórdão nº44/85, “saber se a norma era ou não
aplicável ao caso, ou se foi ou não bem aplicada – isso é da competência dos
tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional” (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 5, 1985, p. 408).
Semelhante jurisprudência não pode deixar de se manter intacta nos casos em que
se considera que o objecto do controlo de constitucionalidade não é tanto “a
norma” em si – ou seja, a regra de conduta ou o padrão de valoração de
comportamentos tomados independentemente do modo da sua aplicação ao caso
concreto – quanto a interpretação normativa de tal regra ou padrão – ou seja, o
modo como, nos processos de fiscalização concreta, a norma é interpretada pelo
julgador.
É evidente que, também em tais casos, terá o objecto do controlo de
constitucionalidade que ter natureza normativa, desde logo face ao disposto no
nº 1 do artigo 277º da Constituição.
Ora, é uma tal natureza normativa que falta sempre que o pretenso recurso de
constitucionalidade for interposto, não tendo em conta o critério normativo que
orientou a decisão judicial – critério esse que há‑de ser identificado e
enunciado sem necessidade de referência às circunstâncias únicas e irrepetíveis
do caso concreto –, mas tendo em conta, somente, a “concreta e casuística
valoração das circunstâncias próprias e específicas de um caso concreto, em boa
medida indissociáveis da matéria de facto e das «presunções naturais» em que se
alicerça a conclusão do tribunal” (Acórdão nº 81/2001, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
6. No caso, é bem evidente que A. não identifica nem enuncia o critério
normativo que, no seu entender, orientou a decisão judicial em desconformidade
com a Constituição. E não o faz porque a pretensa norma, cuja
inconstitucionalidade alega, aparece inextrincavelmente ligada às circunstâncias
próprias e específicas do caso concreto, indissociáveis da matéria de facto e
das valorações que para ele fez o julgador.
Como o Tribunal Constitucional não é uma instância de amparo, o objecto do
presente recurso situa‑se, claramente, fora do âmbito dos seus poderes
cognitivos.
2. O reclamante diz o seguinte na sua reclamação:
O recorrente requereu a inconstitucionalidade da norma 292.°, n.° 2 do Código
Penal, tal como foi interpretada e aplicada na decisão recorrida.
Este dispositivo legal consagra a punição do arguido por conduzir um veículo em
via pública ou equiparada, sob influência de estupefacientes, substâncias
psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, perturbadores da aptidão física,
mental ou psicológica.
A norma em causa permite a condenação de um cidadão sem ser necessário aferir a
concreta quantidade de substâncias psicotrópicas que consumiu.
Sendo certo que, é a quantidade do produto consumido que permite aferir a
perigosidade da condução.
Mais,
A pena a aplicar em concreto é aferida tendo por base a culpa do agente.
Apenas se poderá aferir a culpa do agente e consequentemente a medida da pena em
função da quantidade do produto estupefaciente ingerido.
Sob pena de se violarem os princípios da proporcionalidade das penas, da
igualdade e da presunção de inocência.
Salvo o devido respeito, o arguido não vislumbra que alguém pudesse ser
condenado por condução em estado de embriaguez (artigo 292.°, n.° 1 do Código
Penal), sem antes se ter aferido a taxa de álcool no sangue.
Afirmar que uma norma, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal afronta a
lei fundamental equivale à arguição de inconstitucionalidade, sendo fundamento
do recurso interposto – Cfr. Ac. 31/88.
Assim, a questão da inconstitucionalidade a que se alude no requerimento de
interposição de recurso diz respeito à interpretação da norma ali mencionada e à
forma como foi interpretada e aplicada na decisão recorrida.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu
pela seguinte forma à reclamação:
1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente – e, desde logo, porque a
Relação não realizou, no acórdão recorrido, a interpretação normativa tida por
inconstitucional.
2°
Na verdade – e como se refere a p. 244 – ao fixar a matéria de facto, em termos
obviamente insindicáveis no âmbito do controlo normativo cometido a este
Tribunal Constitucional, a Relação conclui que, ao dizer-se “que o exame citado
deu positivo, é dizer-se que no mínimo havia pelo menos 50 mg/ml de Delta 9”,
por se mostrarem preenchidas as “concentrações mínimas definidoras da
positividade”, tal como as define o artigo 25° da portaria 1006/98.
3º
Constando ainda cabalmente da matéria de facto assente que “o arguido bem sabia
que tinha consumido produtos estupefacientes em quantidade elevada e que se
encontrava perturbado nas suas capacidades normais de um condutor médio e que
punha em perigo a circulação rodoviária e das pessoas ao não se coibir de
conduzir veiculo automóvel naquelas condições” (p. 243).
4º
Face a este acervo fáctico, é evidente que a condenação não assentou em qualquer
indeterminação absoluta da quantidade de canabinóides presentes no organismo do
arguido, já que o Tribunal inferiu a quantidade mínima relevante, em função da
prova pericial produzida nos autos.
Cumpre decidir.
II
Fundamentos
3. Adiante-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento.
Com efeito, os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada para se
pronunciar no sentido do não conhecimento do recurso em nada são abalados pelas
afirmações constantes da presente reclamação, sendo também claro que essa
decisão se fundamentou na exigência de suscitação, perante o tribunal recorrido,
de uma questão de constitucionalidade de norma(s), em termos de aquele estar
obrigado a dela conhecer, prevista no artigo 72.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional).
O que se retira da leitura das alegações de recurso perante o tribunal a quo é,
porém, como se notou na decisão reclamada, que o recorrente suscitou, sim, uma
inconstitucionalidade, mas que a reportou, não a qualquer norma ou interpretação
normativa, mas antes à própria decisão judicial:
27°
No caso em apreço, apenas tendo sido detectado e dado como provado que o arguido
apresentava “cannabinóides” na urina, em quantidades que não foi possível
apurar, tal facto era insuficiente para a sua condenação pelo crime de condução
sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com
efeito análogo, conforme estipula o n.º 2, do art. 292.° do C.P..
28°
Pelo que, a sentença condenatória está sustentada, salvo o devido respeito, numa
presunção de culpa, inaceitável face à Constituição da República Portuguesa,
cujo art. 32.° n.° 2 há muito baniu do Processo Penal. (fls. 204‑verso e 205 dos
autos)
Como a desconformidade com a Constituição foi, assim, imputada pelo recorrente
não a qualquer norma mas à decisão judicial em si mesma considerada, não se
cumpriu um dos pressupostos dos recursos de constitucionalidade previstos tanto
na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição, quanto na alínea b) do nº 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a saber “o que exige que, ao
suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito
legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se
questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão
normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental” (Acórdão n.º
199/88, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989).
A exigência do cumprimento deste pressuposto não constitui, evidentemente, uma
formalidade cega.
Com efeito, ela é por um lado uma exigência natural num sistema de controlo de
constitucionalidade que, como o nosso, não incide sobre decisões – judiciais ou
administrativas – mas antes sobre normas (tomadas a se ou de acordo com a
interpretação que lhe for dada num certo processo de fiscalização concreta);
mas, além disso, ela [tal exigência] cumpre ainda uma outra função: a de
delimitar o âmbito dos poderes cognitivos do tribunal a quo, perante o qual se
suscita a questão de constitucionalidade da norma. Quando tal questão não é
devidamente enunciada ou identificada na sua exacta dimensão, o tribunal a quo
não pode logicamente saber (i) que tem uma questão de constitucionalidade
normativa para resolver; (ii) qual o seu exacto âmbito e alcance.
Foi exactamente isso que acabou por acontecer no caso concreto.
Como muito bem salienta o representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional, a norma que a decisão recorrida efectivamente aplicou não é
coincidente com a [pretensa] norma cuja inconstitucionalidade, antes, o
reclamante suscitara. Não é nem poderia ser. A deficiente suscitação da questão
de constitucionalidade durante o processo (limitada, repete‑se, à
inconstitucionalidade da decisão judicial em si mesma tomada) acabou por
condicionar irremediavelmente os poderes cognitivos do tribunal a quo, na parte
respeitante à questão de constitucionalidade.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e
confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar o
recorrente em custas, com 20 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 18 de Julho de 2007
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão