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Processo n.º 850/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. (que também se identifica como A.1 e como A.2) e recorrido o
MINISTÉRIO PÚBLICO, a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que figura como recorrente A. (que também se
identifica como A.1 e como A.2) e como recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, a
primeira, não se conformando com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
proferido, em 02 de Maio de 2007, o qual rejeitou o recurso interposto por
omissão de pagamento da taxa de justiça, vem, nos termos das alíneas b) e f) do
nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional [LTC] interpor recurso para este Tribunal (fls. 2322 e 2323),
tendo o mesmo sido admitido pelo tribunal “a quo” (fls. 2336).
Através do requerimento de recurso, a recorrente limitou-se a solicitar que
fosse “apreciada a inconstitucionalidade das normas ínsitas nos artigos 80º do
CCJ e artigos 414º e 420º do CPP, na interpretação acolhida na decisão
recorrida, isto é, na interpretação que do mesmo fez a instância, «padece» de
inconstitucionalidade material, por violação do princípio constante do art. 32.º
n.º 1 da Constituição da República” (fls. 2322).
Perante a omissão de elementos essenciais à prossecução do recurso, em 29 de
Agosto de 2007, a Relatora proferiu despacho de convite a aperfeiçoamento, de
modo a que a recorrente viesse especificar quais os trechos normativos dos
referidos preceitos legais que reputava de inconstitucionais, bem como quais as
interpretações normativas que considerava inconstitucionais (fls. 2359), tendo a
recorrente apresentado a sua resposta ao convite, em 20 de Setembro de 2007
(fls. 2361 a 2364).
II – INADMISSIBILIDADE DO RECURSO
2. Apesar de o n.º 1 do artigo 76º da LTC conferir ao tribunal recorrido – in
casu, o Supremo Tribunal de Justiça – o poder de apreciar a admissão de recurso,
essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do
mesmo preceito legal, pelo que, antes de mais, cumpre apreciar se estão
preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos
artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
3. Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da
LTC, afigura-se evidente que a recorrente nunca suscitou qualquer questão de
ilegalidade “proprio sensu” perante o Tribunal recorrido, conforme imposto pelo
n.º 2 do artigo 72º da LTC. Aliás, diga-se que nem tão pouco poderia fazê-lo de
modo sustentado, na medida em que não se vislumbra qualquer contradição entre as
normas reputadas de ilegais e qualquer preceito normativo constante de lei de
valor reforçado (cfr. n.º 3 do artigo 112º da CRP). Deste modo, este Tribunal
decide não conhecer do recurso com fundamento em ilegalidade, por não ter sido
aplicada norma cuja ilegalidade haja sido suscitada no decurso do processo
tramitado nos autos recorridos.
4. Quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da
LTC, é igualmente forçoso concluir que este Tribunal não pode conhecer do seu
objecto, visto que a recorrente nunca suscitou a questão da alegada
inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 414º, n.º 3 e 420º, n.º 1,
ambos do CPP, ou da norma contida no n.º 4 do artigo 80º do CCJ, seja nas
motivações e conclusões do recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto,
seja através de qualquer outro acto processual, designadamente, após ter sido
notificada para pagamento de multa processual.
5. E nem se invoque – como ensaiado no requerimento de interposição de recurso –
que “a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada anteriormente,
porquanto a interpretação dada à norma na decisão recorrida foi de todo
imprevisível, não podendo razoavelmente a recorrente contar com a sua aplicação”
(fls. 2323).
É que, na sua motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a
recorrente indicou, de modo expresso, que juntaria mais tarde requerimento de
apoio judiciário, o que – a ser deferido pelas competentes entidades
administrativas – dispensaria o pagamento de taxa de justiça. Contudo, a
recorrente nunca veio a juntar tal comprovativo da concessão de apoio judiciário
até à data de proferimento da decisão recorrida.
Aliás, o mandatário da ora recorrente foi devidamente notificado para proceder
ao pagamento de multa processual, nos termos do n.º 4 do artigo 254º do CPC,
aplicável “ex vi” artigo 4º do CPP, pelo que dispôs da oportunidade processual
de suscitar a questão da inconstitucionalidade das normas agora em crise.
6. O facto de a notificação ter sido devolvida, por não ter sido reclamada junto
dos “CTT – Correios”, entre 23 de Novembro de 2006 e 06 de Dezembro de 2007,
poderia levantar dúvidas sobre se o recorrente teria tido oportunidade
processual de suscitar a questão da inconstitucionalidade. Porém, consultados os
autos, constata-se que o próprio Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25
de Outubro de 2006, foi notificado ao mandatário da ora recorrente (fls. 2193)
nos mesmos termos em que foi a multa de fls. 2220, tendo o envelope da referida
notificação sido devolvido àquele tribunal, por não reclamado (fls. 2197), de
modo idêntico ao sucedido posteriormente. Ora, apesar de a notificação de fls.
2193 ter sido devolvida ao Tribunal da Relação do Porto, tal não impediu a
recorrente de interpor o competente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Tal conduta processual do mandatário da recorrente demonstra que aquele tinha
conhecimento dos actos processuais praticados nos autos recorridos, ainda que
persistisse em não reclamar as sucessivas notificações enviadas pelos tribunais
recorridos.
A própria decisão recorrida foi notificada ao mandatário da recorrente para a
mesma e exacta morada para a qual foi expedida a notificação relativa ao
pagamento de multa (v.g., “Rua …, n.º ..,, .. – cfr. fls. 2319-verso). Ora,
desta feita, a recorrente recebeu a referida notificação, tendo, aliás,
interposto recurso da decisão notificada que deu lugar aos presentes autos.
Daqui decorre que, quer por força do n.º 4 do artigo 254º do CPC, quer por força
da conduta processual do mandatário da recorrente, esta não ficou objectivamente
privada de oportunidade processual para suscitar a inconstitucionalidade das
normas ora arguidas, perante o tribunal “a quo”.
7. Em segundo lugar, impõe-se igualmente refutar a alusão a uma pretensa
“decisão-surpresa” quanto à consequência do não pagamento de taxa de justiça
devida. É certo que a recorrente apenas foi processualmente confrontada com uma
decisão de recusa de admissão do recurso da decisão do Tribunal da Relação do
Porto, fundada no n.º 1 do artigo 420º do CPP e no n.º 3 do artigo 80º do CCJ,
no momento da notificação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Contudo,
nem por isso pode a recorrente afirmar que a decisão de recusa de admissão de
recurso fosse objectivamente imprevisível, inusitada ou insólita. É que a
recorrente apenas poderia ser dispensada do dever processual de prévia invocação
da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 420º do CPP e do n.º 3 do artigo 80º
do CCJ, caso não pudesse contar – de modo objectivo – com a decisão alvo de
recurso nos presentes autos.
Com efeito, conforme já notado por este Tribunal:
i) “A razão pela qual o Tribunal Constitucional tem
dispensado este ónus em casos excepcionais ou anómalos, como se refere na
decisão reclamada, é a de considerar não exigível antecipar um sentido
objectivamente inesperado, sobre o qual o recorrente não teve a oportunidade de
se pronunciar antes de proferida a decisão recorrida” (cfr. Acórdão n.º
394/2005)”;
ii) “Todavia, como este Tribunal também tem salientado (assim,
por exemplo, do citado Acórdão n.º 352/94), tal situação sofre restrições 'em
situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de
oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes
de proferida a decisão final'. É o que acontece também quando, pela natureza
insólita ou surpreendente da interpretação (ou da aplicação) da norma em causa
efectuada pela decisão recorrida, não era exigível ao recorrente que contasse
com ela.
Entende-se que é esta a situação no caso presente – tal como, por exemplo, nos
casos dos Acórdãos 74/00 e 56/01 (ainda não publicados), considerando-se como
'decisão-surpresa', de conteúdo imprevisível para o recorrente, a decisão
proferida pelo tribunal recorrido, para rejeição do recurso em causa” (cfr.
Acórdão n.º 120/2002);
iii) “O Tribunal tem considerado até que cabe às partes
considerar antecipadamente as várias hipóteses de interpretação razoáveis das
normas em questão e suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí
decorrentes antes de ser proferida a decisão” (cfr. Acórdão n.º 489/94);
iv) “(…) não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o
ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que
se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas
processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma
estratégia processual adequada). E isso – acrescentar-se-á – também logo mostra
como a simples «surpresa» com a interpretação dada judicialmente a certa norma
não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas
situações excepcionais (…) em que seria justificado dispensar os interessados da
exigência da invocação «prévia» da inconstitucionalidade perante o tribunal «a
quo».
Mas – e agora em segundo lugar – se alguma vez tal for de admitir, então haverá
de sê-lo apenas numa hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita
e imprevisível, que seria de todo o ponto desrazoável a parte contar (também)
com ela” (cfr. Acórdão n.º 479/89).
8. Ora, sucede que, para além da clareza da letra da lei, encontra-se
consolidadamente firmada, na doutrina, na jurisprudência e na prática judiciária
quotidiana, que a omissão de pagamento de taxa de justiça de peças processuais
obsta ao seu conhecimento. Deste modo, encontrando-se devidamente representada
por mandatário judicial, a recorrente não podia deixar de conhecer – logo no
momento da interposição de recurso para o tribunal ora recorrido – ser unânime e
incontroverso que qualquer recurso só pode ser alvo de conhecimento mediante o
pagamento da correspectiva taxa de justiça. Como tal, estava a recorrente
obrigada a suscitar a questão da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 420º
do CPP e do n.º 3 do artigo 80º do CCJ logo que interpusesse recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que: i) sabia não ter pago a
necessária taxa de justiça; ii) sabia, por ter solicitado a sua posterior
junção, que – à data da interposição de recurso – não beneficiava de apoio
judiciário; iii) sabia, por ser de conhecimento público e objectivamente
exigível a um recorrente devida e diligentemente representado por mandatário
judicial, que, caso não juntasse posteriormente o comprovativo da concessão do
apoio judiciário, teria que proceder ao pagamento da taxa de justiça devida.
Pelo exposto, o tribunal recorrido deveria ter recusado a admissão do recurso de
inconstitucionalidade, nos termos do n.º 2 do artigo 76º da LTC.
9. Mas, ainda que pudesse equacionar-se a existência de uma “decisão-surpresa”,
em sentido próprio, resulta igualmente evidente que – mesmo após convite para
aperfeiçoar o requerimento de recurso – a recorrente não indicou “qual a
interpretação das mesmas (leia-se: normas) acolhida na decisão recorrida que
reputa de inconstitucional” (fls. 2359). Através da sua resposta ao despacho da
Relatora que a convidou a aperfeiçoar, a recorrente limitou-se (com uma ressalva
infra analisada) a afirmar que:
“No requerimento de interposição do recurso pretendia-se referir que a
interpretação que o Tribunal recorrido fez das normas ínsitas no artigo 80º do
CCJ e artigos 414º e 420º do CPP padeceriam de inconstitucionalidade por
violação do artigo 32º da CRP e como tal contrárias à boa hermenêutica.” (fls.
2362).
Daqui decorre que a recorrente persistiu em não identificar “qual ou quais as
normas específicas dos preceitos que indica no requerimento de recurso para este
Tribunal que considera inconstitucionais” (fls. 2359), conforme convite
formulado por despacho da Relatora destes autos. A mera referência a preceitos
legais não é suficiente para individualizar as normas objecto de recurso, na
medida em que cada um daqueles preceitos legais contém inúmeras disposições
normativas que este Tribunal não pode nem deve individualizar, sob pena de
violação do princípio do pedido.
10. É certo que, indirectamente – e impulsionado pelo dever de assegurar um
pleno acesso a uma tutela jurisdicional efectiva –, este Tribunal ainda poderia
extrair da resposta ao convite (fls. 2362 a 2364) que a recorrente pretendia que
fosse sindicada a inconstitucionalidade das normas constantes no n.º 3 do artigo
414º, no n.º 1 do artigo 420º, ambos do CPP, e do n.º 4 do artigo 80º do CCJ.
Porém, no caso da norma do n.º 3 do artigo 414º do CPP – mesmo após convidado
para o fazer – a recorrente não indica qual foi a interpretação normativa
concretamente adoptada pelo tribunal “a quo” que reputa de inconstitucional.
Por outro lado, no que se refere à norma constante do n.º 1 do artigo 420º do
CPP, a recorrente afirma que aquela foi interpretada “no sentido de não apreciar
o recurso por o recorrente «não ter as condições necessárias para o fazer»”,
quando – em boa verdade – a decisão recorrida não interpretou aquela norma
naquele sentido minimalista, mas antes considerou, mediante remissão para outro
Acórdão daquele Tribunal que “o recurso é manifestamente improcedente quando no
exame preliminar perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode
concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da
jurisprudência, que aquele recurso está votado ao insucesso” (fls. 2291) e que
“face à omissão de pagamento das quantias referidas, há que considerar sem
efeito o recurso da arguida A.” (fls. 2293).
13. Por fim, apenas quanto à norma constante do n.º 4 do artigo 80º do CCJ,
constata-se que a recorrente indicou qual a interpretação normativa que
considera ter sido adoptada pela decisão recorrida, considerando ser aquela
“que, feita no sentido de que, apesar do recurso ter sido admitido, ainda que
tenha sido omitido o pagamento da taxa de justiça ou multa, o Tribunal recorrido
entendeu que tal pagamento terá de ser condição necessária para que o mesmo
possa ser apreciado” (sic, fls. 2363).
Ora, sucede que, o n.º 4 do artigo 80º do CCJ determina que “o recurso que tendo
por efeito manter a liberdade do arguido é recebido independentemente do
pagamento da taxa de justiça, aplicando-se-lhe os números anteriores”. Daqui
decorre que esta norma apenas prevê o dever de recepção de recursos que visem
impugnar decisão condenatória privativa da liberdade, mas não regula os efeitos
da omissão de pagamento posterior da mesma, que é remetida para as normas
anteriores do mesmo preceito legal. Assim, torna-se evidente que a decisão
recorrida não aplicou efectivamente o n.º 4 do artigo 80º do CCJ como “ratio
decidendi”, mas antes o n.º 3 do mesmo artigo 80º do CCJ, que dispõe que “A
omissão das quantias referidas no número anterior que o requerimento para
abertura de instrução, para constituição de assistente ou o recurso sejam
considerados sem efeito” (com sublinhado nosso).
Visto que este Tribunal Constitucional apenas dispõe de competências para
apreciar, em sede de recurso – e nunca “ex novo” – questões de
inconstitucionalidade que tenham sido adequadamente suscitadas perante os
tribunais comuns, jamais seria possível conhecer do objecto do presente recurso,
quer por a decisão recorrida não ter aplicado a norma constante do n.º 4 do
artigo 80º do CCJ, como “ratio decidendi”, quer por a recorrente não ter
indicado o alegado sentido interpretativo adoptado pela decisão recorrida que
reputa de inconstitucional, quanto às normas constantes dos artigos 414º, n.º 3
e 420º, n.º 1 do CPP.
Assim, a título subsidiário – e sem prejuízo da já verificada ausência de
suscitação processualmente adequada da inconstitucionalidade das normas objecto
do presente recurso – seria forçoso concluir pela impossibilidade de
conhecimento do objecto do recurso, na medida em que as normas não foram
efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, nos termos configurados pela
recorrente.
III. DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de
26 de Fevereiro, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto
do recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos
termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformada com esta decisão, vem a recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, com os fundamentos seguintes:
«A., com os sinais nos autos, tendo interposto recurso, ao abrigo das alíneas b)
do n.º do art. 70 da L.T.C., e sido notificada da Douta Decisão Sumária que
considerou que não cabe critica da decisão recorrida enquanto tal, vem da mesma
RECLAMAR para a conferencia, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 78°-A da
LTC, com os fundamentos seguintes:
Vem a presente reclamação para a Conferencia apresentada da decisão sumária de
fls. … que, em síntese, e com interesse para esta reclamação, decidiu “não tomar
conhecimento do objecto do presente recurso, quer por a decisão recorrida não
ter aplicado a norma constante do nº 4 do artigo 80º do CCJ, como ratio
decidendi, quer por a recorrente não ter indicado o alegado sentido
interpretativo adoptado pela decisão recorrida que reputa de inconstitucional,
quanto às normas constantes dos artigos 414°, nº 3 e 420º, n.º 1 do CPP”.
Com efeito, considerando os termos vertidos no requerimento de interposição do
recurso para o Tribunal Constitucional e atenta a fundamentação vertida na
decisão sumária em crise, não pode a Recorrente conformar-se com tal decisão.
Ora, a questão em crise concerne à delimitação do objecto do recurso,
determinando, neste domínio, o art. 71° e o nº 2 do art. 72°, ambos da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, que os
recursos das decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restritos às
questões da inconstitucionalidade suscitada, só podendo ser interpostos pela
parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar, obrigado a dela conhecer.
Assim sendo, considerou a decisão sumária que a recorrente “dispôs da
oportunidade processual de suscitar a questão da inconstitucionalidade das
normas agora em crise”, sustentando-a com base em dois pressupostos - por um
lado, porque entende que não foi colocada a questão de constitucionalidade
aquando da notificação da recorrente para pagar a multa, por outro, dado que
considera que a Recorrente foi devidamente notificada, apesar das cartas terem
sido devolvidas, e nunca suscitou antes de proferida a decisão recorrida,
qualquer questão de constitucionalidade com referência àqueles preceitos do
Código de Processo Penal e do Código das Custas Judiciais.
Posto isto, importa ter ainda em consideração que a Recorrente interpôs o
aludido recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70° da LTC, de acordo com
o qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais
que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada ao longo do
processo.
De acordo com a melhor Doutrina e Jurisprudência produzida neste âmbito, a
admissibilidade desta espécie de fiscalização concreta de constitucionalidade
depende, além de outros, da verificação cumulativa de dois requisitos
essenciais, por um lado, exige-se que a inconstitucionalidade da norma tenha
sido, previamente, suscitada pelo Recorrente durante o processo e de forma
processualmente adequada; e, por outro, que tal norma, não obstante a arguição
da sua inconstitucionalidade, tenha sido depois utilizada na decisão objecto do
recurso, como fundamento normativo do próprio julgamento da causa.
No que ao primeiro dos aludidos pressupostos concerne, apenas se pode ter por,
verificado quando o Recorrente haja suscitado a questão de constitucionalidade
de modo perceptível e directo, indicando a disposição legal arguida de
inconstitucionalidade ou, no caso de apenas questionar certa interpretação que
dela foi feita, enunciando qual o sentido ou a dimensão normativa que tem por
violadora da Constituição, sendo certo que esta suscitação terá que ocorrer
durante o processo.
Em face do exposto, impõe-se, agora determinar qual o sentido que deverá ser
atribuído ao pressuposto anteriormente explanado - ou melhor, o que deverá
entender-se pela expressão “durante o processo”.
É entendimento unanimemente sufragado este Tribunal Constitucional que aquela
expressão deve ser entendida por referência a um sentido funcional, ou seja, por
consideração de que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o
tribunal recorrido ainda pudesse conhecer da questão.
Ou o mesmo será dizer, que a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes
de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que aquela questão
de inconstitucionalidade respeita.
Esta é, inegavelmente, a orientação defendida por este Tribunal Constitucional e
que constitui a regra geral na aferição e determinação da admissibilidade e/ou
conhecimento do objecto do recurso.
Não obstante, não se trata de uma regra absoluta e, nessa medida, totalmente
impermeável a qualquer espécie ou tipo de excepção.
De facto, não haverá lugar à aplicação daquela regra sempre que “o Recorrente
não haja tido oportunidade processual para suscitar a questão de
constitucionalidade”, cfr. Acórdão nº 258/93 do Tribunal Constitucional, no
mesmo sentido, Acórdão nº 370/98 do Tribunal Constitucional.
Ora, da análise do requerimento de interposição de recurso apresentado pela
Recorrente, bem como da consideração dos princípios gerais aplicáveis no domínio
do processo penal, designadamente daqueles que concernem à tramitação dos
recursos, facilmente se constata que não poderia a Recorrente ter suscitado,
durante o processo (leia-se, em momento anterior data da prolação do Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça) e de forma processualmente adequada, qualquer
questão de constitucionalidade normativa reportada aos arts. 80° do CCJ e
artigos 414º, n.º 3 e 420°, n.º 1 do CPP, na estrita medida, e tão somente
porque, tal questão de inconstitucionalidade só é possível de ser levantada após
a prolação do referido acórdão.
Assim sendo, não poderia a Recorrente, por verdadeira e manifesta
impossibilidade jurídica, ter suscitado tal questão em momento anterior - seja,
durante o processo - simplesmente porque a mesma não se tinha ainda colocado,
até porque, a recorrente não tinha conhecimento das notificações anteriormente
efectuadas a prolação do acórdão.
E não se diga que o facto da notificação da decisão recorrida ter sido
notificada não mandatário da Recorrente para a mesma e exacta morada para a qual
foi expedida a notificação relativa à multa (v.g. Rua … pois sucede que a
notificação do acórdão do S. T. J. foi efectuado, por reenvio para a Praceta …
…- …, local em que o mandatário da Recorrente teve conhecimento do referido
acórdão.
Pelo que não poderia a Recorrente, e ao contrário do que nos conduz a decisão
sumária, ter antecipado tal questão, pois sempre, e tão só, se trataria de uma
mera hipótese, não estando a Recorrente, de qualquer modo, obrigado a agir
processualmente em razão de meras previsões, e sem que, em qualquer caso, tal
possa constituir impedimento de aquele formular e ver atendida - pelo menos,
apreciada - pretensão legítima e determinativa da intervenção daquela que é a
instância suprema de defesa e controlo da Lei Fundamental.
Pois se é certo que recai efectivamente sobre a parte o ónus de considerar as
várias possibilidades interpretativas susceptíveis de ser seguidas e utilizadas
na decisão e de utilizar as necessárias precauções, de modo a poder, em
conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar
a defesa dos seus direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o Acórdão
n.º 479/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14° vol., pgs. 149 e 150).
Do mesmo modo, nada mais resta senão concluir que o caso sub iudice configura
uma daquelas situações excepcionais, que legitimam e permitem que o Tribunal
Constitucional dispense a Recorrente do cumprimento do ónus de suscitar durante
o processo a questão de constitucionalidade normativa, atendendo à inexistência
de oportunidade processual para cumprir tal ónus - cfr., por todos, o Acórdão nº
155/ 95 do Tribunal Constitucional, in http//www.tribunalconstitucional.pt
Mas sempre se dirá ainda que, a Recorrente, ao invés do afirmado na decisão
sumária, suscitou a questão de constitucionalidade em crise de modo
processualmente adequado, uma vez que, aquele, no requerimento de interposição
do recurso, identificou, de forma clara e expressa, as normas cuja aplicação
refuta de inconstitucionais, ou melhor, a sua dimensão interpretativa aplicada
na decisão recorrida que se revela desconforme ao plasmado na Lei Fundamental,
indicou os princípio/norma constitucionais que considera violados e apresentou
uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida, não se
limitando, nessa medida, a afirmar, em abstracto, que ama dada e determinada
interpretação daqueles preceitos normativos fosse inconstitucional.
Em face do exposto, conclui-se que se tem por observado o primeiro dos
pressupostos elencados - a inconstitucionalidade das normas em questão foi
atempadamente suscitada pela Recorrente e de forma processualmente adequada.
Por seu turno, também o segundo dos pressupostos aludidos se tem por observado,
dado que o objecto do recurso, de acordo com o que resulta do requerimento de
interposição, assenta na interpretação normativa extraída do enunciado literal
vertido nos artigos 80° do CCJ, e 414°, n.º 3 e 420º, nº 1 do CPP, tendo tal
dimensão interpretativa sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
Por outro lado, impõe-se também concluir que a Recorrente, no seu requerimento
de interposição de recurso, coloca uma verdadeira questão de
inconstitucionalidade normativa, o que determina a existência de questão
susceptível de ser submetida aos poderes de sindicância e cognição do Tribunal
Constitucional.
De facto, e ao contrário do afirmado na decisão sumária, o que é suscitado e
questionado pela Recorrente no aludido requerimento é o de saber se a
interpretação que o S. T. J. fez da aplicação dos arts. 80º do CCJ e artigos
414°, n°3 e 420º, nº 1 do CPP, qual seja:
Se o facto de se ter omitido o pagamento da multa devida é impedimento de
apreciação e um recurso, estando em causa a manutenção do direito à liberdade,
um dos corolários do direito à vida.
Viola o princípio constitucional da plenitude do direito de defesa do arguido
consagrado e condensado no artigo 32° da Constituição da Republica Portuguesa.
Ora, esta é uma a questão de verdadeira inconstitucionalidade normativa, na
medida em que, o que a Recorrente invoca e questiona por desconformidade face à
Constituição, e à interpretação, manifestamente inconstitucional, extraída pelo
Supremo Tribunal de Justiça daqueles preceitos legais, e cuja aplicação ao caso
sub iudice determinou e permitiu sustentar o principio geral adoptado por aquele
Tribunal, de só ser feita justiça ao Recorrente Pagador, negado assim o direito
ao recurso que assiste à Recorrente, o que redunda no mais completo desrespeito
pelo princípio de que - o processo criminal assegura todas as garantias de
defesa – pedra estrutural e essencial de qualquer sistema jurídico assente no
princípio geral e fundamental do Estado de Direito Democrático.
Até violando, frontalmente os princípios consignados na Convenção Europeia dos
Direitos do homem a quem a Recorrente recorrerá, se disso tiver necessidade
para, perante tais instâncias, ver ser feita a justiça que lhe está a ser
negada.
Termos em que, e nos melhores de Direito, deve a presente reclamação para a
Conferência ser julgada procedente e, consequentemente, tomar o Tribunal
Constitucional conhecimento do recurso apresentado pela Recorrente na parte em
que pede a apreciação da constitucionalidade dos artigos 80° do CCJ, e 414°, nº
3 e 420°, nº 1 do CPP nos termos aplicados ao caso sub iudice, tudo com as
devidas consequências legais.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da
referida reclamação, veio responder-lhe nos termos seguintes:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade a argumentação da reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do recurso
interposto.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A ora reclamante vem colocar em crise a decisão sumária proferida nos
presentes autos com dois fundamentos distintos: i) por um lado, considera a
reclamante estar dispensada do dever processual de prévia suscitação da questão
de inconstitucionalidade, atenta a natureza alegadamente excepcional da
tramitação ocorrida nos autos recorridos; ii) por outro lado, considera a
reclamante ter colocado uma concreta questão de inconstitucionalidade normativa,
tendo aquela sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
Sucede, porém, que nenhuma das considerações genéricas formuladas na reclamação
se afigura apta a abalar a decisão reclamada.
5. Conforme abundantemente demonstrado na decisão reclamada (e aliás admitido
pela recorrente na reclamação), apenas em situações excepcionais se torna
possível dispensar os recorrentes do dever de prévia suscitação da
inconstitucionalidade, imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC, designadamente,
quando uma decisão jurisdicional aplica determinada norma ou interpretação
normativa de modo insólito, inesperado ou inaudito.
Reitera-se, em sentido consonante com a decisão reclamada, não ser este o caso
dos autos. A reclamante, como qualquer outro particular devidamente representado
por mandatário judicial que litiga perante um tribunal português, não podia
ignorar que a falta de pagamento de taxa de justiça inicial poderia implicar uma
interpretação das normas contidas nos artigos 414º, n.º 3 e 420º, n.º 1, ambos
do CPP, e da norma contida no n.º 4 do artigo 80º do CCJ, no sentido de que a
falta de pagamento obstaria ao conhecimento do objecto do recurso interposto.
Desde modo, tal interpretação não se afigura insólita, inesperada ou inaudita,
pelo que a ora reclamante nunca poderia ficar dispensada de invocar a questão da
inconstitucionalidade em momento que permitisse ao tribunal “a quo” apreciar a
questão colocada.
Daqui decorre que a ora reclamante teve oportunidade processual para suscitar a
questão da inconstitucionalidade, antes de tomada a decisão recorrida, só não o
tendo feito por negligência. A alegação de que “tal questão de
inconstitucionalidade só é possível de ser levantada após a prolação do referido
acórdão” não procede, visto que, conforme já abundantemente demonstrado por este
Tribunal, as partes processuais devem antecipar, de modo diligente, as hipóteses
previsíveis de decisão por parte dos tribunais (assim, já citados pela decisão
reclamada, ver Acórdãos 489/94, de 12 de Julho de 1994, disponível in «Diário da
República», IIª Série, n.º 289, de 16 de Dezembro de 1994, pp. 12756 e segs., e
479/89, de 13 de Julho de 1989, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, na medida em que a reclamante protestou juntar documento comprovativo da
concessão de apoio judiciário, forçoso se torna concluir que a mesma estava
ciente de que a consequência previsível e normal da não entrega de documento de
liquidação da taxa de justiça inicial seria o não conhecimento do objecto do
recurso.
Só esta circunstância já obstaria ao conhecimento sobre o objecto do presente
recurso.
6. Acresce, porém, que – conforme já demonstrado pela decisão reclamada – a
reclamante nem sequer colocou qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, tendo-se limitado, após convidada para aperfeiçoar o requerimento de
recurso, a afirmar que “(…) pretendia-se referir que a interpretação que o
Tribunal recorrido fez das normas ínsitas no artigo 80º do CCJ e artigos 414º e
420º do CPP padeceriam de inconstitucionalidade por violação do artigo 32º da
CRP e como tal contrárias à boa hermenêutica.” (fls. 2362).
Como é bom de ver, a ora reclamante nem sequer identificou expressa e
individualizadamente quaisquer normas concretas vertidas num determinado
preceito legal, tendo-se referido de modo global e generalizado a todas as
normas contidas nos artigos 80º do CCJ e 414º e 420º do CPP. Ao contrário do
alegado em sede de reclamação, torna-se evidente que a reclamante não colocou
qualquer questão precisa e específica de interpretação normativa.
7. Por último, conforme mais amplamente demonstrado pela decisão reclamada,
mesmo que se admitisse que a reclamante havia colocado, de modo adequado,
efectivas questões de inconstitucionalidade normativa, sempre seria forçoso
concluir – na linha já seguida pela decisão reclamada – que aquelas
interpretações normativas não foram efectivamente aplicadas pela decisão
recorrida.
Em suma, a reclamação ora apreciada não acrescenta novos argumentos que conduzam
a uma reponderação do sentido decisório patente na decisão reclamada que aqui se
confirma.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se:
a) Indeferir a presente reclamação;
b) Confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 25 de Outubro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão