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Processo n.º 380/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
A. foi condenado no 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga pela
prática, em co-autoria material, de um crime de lenocínio previsto e punido pelo
artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de dois anos de prisão efectiva.
Da condenação interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães e na
motivação do recurso suscitou, para além do mais, que
“I – Deve considerar-se, senão parcialmente descriminalizada, inconstitucional a
norma vertida no n.° 1 do artigo 170º do Código Penal, por violar o preceituado
nos artigos 41° e 47º n° 1, conjugados o n.º 2 do artigo 18° da Constituição da
República Portuguesa.
II – Presente tal facto, a decisão condenatória que ao mesmo atenda deve ser
revogada, por aplicação de norma inconstitucional.
XVIII – Interpretação diversa resulta numa clara violação dos artigos 40. °,
70.° e 71°, n.°1 e n. °2 do Código Penal e do art. 170, n° 1”
Por Acórdão de 29 de Janeiro de 2007, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou
improcedente o recurso, negando assim provimento, no que ora importa, às
questões de inconstitucionalidade sustentadas pelo recorrente.
Exarou-se no mencionado acórdão, nomeadamente:
“O recorrente suscita a inconstitucionalidade da norma contida no n.° 1 do
artigo 170° do Código Penal, por violação dos artigos 41° (liberdade de
consciência) e 47º n.°1 (liberdade de profissão), conjugados com o n.° 2 do
artigo 18°, todos da Constituição da República Portuguesa.
A questão não é nova.
Com efeito, a questão da conformidade com a Constituição Portuguesa da norma
contida no artigo 170°, n.° 1 do Código Penal que pune o crime de lenocínio foi
primeiramente apreciada no Ac. do Tribunal Constitucional n.° 144/04, da 2ª
secção em que o tribunal se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade
(DR II, n.° 92, de 19 de Abril de 2004). No citado aresto foram tratadas
alegadas violações, pela norma em causa, não só do princípio da
proporcionalidade consagrado no artigo 18°, n.° 2, mas também dos artigos 41.°
(liberdade de consciência) e 47°, n.° 1 (liberdade de profissão), da
Constituição da República. Distinguiram-se então as questões de
constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre
a mesma norma, e concluiu-se, depois de identificar o bem jurídico protegido por
esta, que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo
criminal como o que tal norma prevê.
Posteriormente, em processo em que era invocada a violação, pela mesma norma,
dos artigos 18°, n.° 2, 26°, n.° 1, 27°, n.° 1, 47º e 58°, n.° 1, da
Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional por Acórdão n.°
196/04 de 23 de Março de 2004 concluiu novamente no sentido da sua não
inconstitucionalidade (proc.° n.° 130/04, 2ª secção, disponível in
www.tribunal.constitucional.pt).
Mais recentemente, no seu acórdão n.° 303/04, de 5 de Maio de 2004, o mesmo
Tribunal Constitucional considerou que o citado artigo 170º, n° 1 não viola a
Constituição da República Portuguesa e, designadamente, não ofende os princípios
enunciados no artigo 1° (proc° n° 922/03, 1ª secção, rel Maria Helena Brito, in
www.tribunalconstitucional.pt).
O mesmo juízo de constitucionalidade voltou a ser reafirmado no Ac. n.° 170/06,
de 6 de Março de 2006 (proc.° n.° 176/05, 2ª secção, rel. Vítor Gomes, in
www.tribunalconstitucional.pt), considerando-se que o citado artigo 170°, n.° 1
não viola o disposto no artigo 18°, n.° 2 da Constituição da República
Portuguesa.
Perante esta corrente jurisprudencial, firme e recente, do Tribunal
Constitucional, que sufragamos, e não se vislumbrando argumentos fundamentos ou
circunstâncias que não tenham já sido anteriormente ponderadas, é evidente que
improcede a arguida inconstitucionalidade (…).”
Reproduziu-se parte do Acórdão n.º 144/2004 deste Tribunal, publicado no Diário
da República, II Série, de 19 de Abril de 2004, com vista a “dissiparem-se todas
as dúvidas e interrogações com que o recorrente se confrontou”.
Do citado aresto interpôs o Recorrente recurso para este Tribunal ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do
Tribunal Constitucional), pretendendo ver apreciadas as questões de
inconstitucionalidade suscitadas no recurso que interpôs para a Relação da
decisão condenatória proferida em primeira instância.
Neste Tribunal, apresentou as respectivas alegações, concluindo pela seguinte
forma:
“I. Não incumbe ao Direito Penal a defesa de bens jurídicos transpersonalistas,
como é notoriamente o caso do art. 170º, n.° 1, do Código Penal com a
incriminação a que procede da conduta em apreço.
II. A ponderação de eventuais situações de risco e perigo para o agente que se
prostitui não deve redundar na consideração de que os valores da liberdade e da
integridade moral das pessoas que se prostituem (‘valores esses protegidos pelo
Direito, enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de
protecção para com pessoas em estado de carência social’) se encontram
arredados.
III. Deve considerar-se que a incriminação das condutas que constituem a
factualidade típica do n° 1 do artigo 170º do Código Penal, se encontra ferida
de inconstitucionalidade, por violar o preceituado nos artigos 41° e 47° n° 1,
conjugados com o n° 2 do artigo 18° da Constituição da República Portuguesa,
conflituando e restringindo o direito à liberdade de consciência, bem como o
direito de livre escolha de profissão.
IV. Datíssima vénia, as decisões judiciais que aplicaram a norma do n° 1 do
artigo 170° do Código Penal deverão ser revogadas, por aplicação de norma
inconstitucional.
V. Consequentemente, deve absolver-se o arguido A..”
Nas contra-alegações, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal
Constitucional, fundando-se em reiterada jurisprudência constitucional, pugna
pela improcedência do recurso.
Decidindo.
II – Fundamentação.
No que se reporta à questão da inconstitucionalidade suscitada a propósito do
artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal, por ofender, na perspectiva do Recorrente,
os artigos 41.º e 47.º, n.º 1, conjugados com o n.º 2 do artigo 18.º da
Constituição, importa fazer referência à jurisprudência que este Tribunal já
desenvolveu sobre a questão que, de novo, vem levantada.
Destacam-se os Acórdãos n.ºs 144/2004, 196/2004, 303/2004 e 170/2006 (o primeiro
e o terceiro publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de
19 de Abril e 20 de Julho de 2004 e os restantes disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
Em particular, no mencionado Acórdão n.º 144/2004, foram tratadas alegadas
violações, pela norma em causa, do princípio da proporcionalidade consagrado no
artigo 18.º, n.º 2 e dos artigos 41.º (liberdade de consciência) e 47.º, n.º1
(liberdade de profissão), todos da Constituição da República, distinguindo-se as
questões de constitucionalidade de quaisquer asserções, no plano
político-criminal, sobre a mesma norma e, concluindo-se, depois de identificar o
bem jurídico protegido por esta, que o legislador não está interdito de adoptar
um tipo legal de crime como o previsto no artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal,
na versão resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de
Setembro.
Assim, a fundamentação expendida no aludido acórdão n.º 144/2004 é inteiramente
transponível para os presentes autos.
De salientar, ainda, e, na lição de Vieira de Andrade, que “o princípio da
dignidade da pessoa humana (…) está na base de todos os direitos
constitucionalmente consagrados (…). (…) Pode ser diferente o grau de vinculação
dos direitos àquele princípio. Assim, alguns direitos constituem explicitações
de primeiro grau da ideia de dignidade, que modela todo o conteúdo deles: o
direito à vida, à identidade e à integridade pessoal, à liberdade física e de
consciência, por exemplo, tal como a generalidade dos direitos pessoais, são
atributos jurídicos essenciais da dignidade dos homens concretos.” (in Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., p. 102).
E acrescenta aquele Autor que “os direitos fundamentais não têm sentido nem
valem apenas pela vontade (…) que historicamente os impõe. O conjunto dos
direitos fundamentais é significativo e desvendável, porque é referido a um
critério de valor; os direitos fundamentais são obrigatórios juridicamente,
porque são explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana que lhes dá
fundamento. É que a unidade dos direitos fundamentais, como a unidade da ordem
jurídica em geral, há-de ser uma unidade axiológica, material que funde e
legitime o seu conteúdo normativo.” (ob. cit, p. 110).
Por outro lado, e como adiante Baptista Machado, existem outro tipo de
“‘realidades’ previamente dadas a que se acha vinculado o legislador (…), desde
valores, normas, ‘natureza das coisas’, estruturas da interacção humana (de
humana convivência), situação histórica, espírito de cultura de um povo,
instituições e papeis sociais, etc. Nesta concepção, renuncia-se a fazer
reverter o conceito de Direito Natural à ideia de que há critérios normativos
fundamentais que radicam numa natureza ou essência prefixada. (…). Abandona-se
(…) a vinculação a um conceito qualquer de ‘natureza’, substituindo-o pelo puro
e simples apego à ideia de ‘indisponibilidade’: tudo aquilo que está para além
do Direito Positivo e está, portanto, fora do alcance da ‘disponibilidade’
(poder de disposição) do legislador.” (in Introdução ao Direito e ao Discurso
Legitimador, p. 296).
Acresce que “(…) os princípios suprapositivos que necessariamente vinculam o
legislador não [são] de conceber como uma noção puramente negativa ou
limitativa; pois que esses princípios vinculam também, ou pelo menos informam, a
conformação, interpretação e aplicação das normas positivias que deles são
‘concretizações’. Todavia, o ponto de partida para uma filosofia material do
Direito, para uma filosofia do Direito que permitisse configurar e fundamentar
objectivos do Direito Justo numa determinada sociedade, teria sempre que partir
de um certo a priori, de uma certa ideia de ‘perfeição’ da vida e convivência
humanas. Supondo que esse a priori é a emancipação do homem (o que quer que isto
signifique na sua vaguidade), um óptimo ou um máximo de libertação de estruturas
de domínio efectivamente realizada e estavelmente assegurada, então estaria
também aqui o ponto de partida e o fundamento teórico da filosofia do Estado e
da teoria político-constitucional: a melhor organização do Estado seria aquela
que optimizasse o conhecimento e a realização prática daquele escopo do Direito
Justo, enquanto escopo emancipatório.”
Os aludidos valores fazem assim parte integrante não já da “natureza” de um povo
e de uma civilização, mas da sua própria “cultura”.
Nessa medida, e, voltando à situação em apreço, a jurisprudência reiterada deste
Tribunal considera que a norma constante do artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal
incorpora bens jurídicos merecedores de tutela criminal, não ofendendo,
consequentemente, a Constituição. Subjacente à aludida norma está o
reconhecimento de uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente
na defesa da dignidade da pessoa humana como “princípio suprapositivo (…) que
vincula(m) o legislador.”
Assim, e como se escreveu no Acórdão n.º 144/2004, citado, “uma Ordem Jurídica
orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não
deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão da liberdade de acção,
situações e actividades cujo ‘princípio’ seja o de que uma pessoa, numa qualquer
dimensão (…), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de
outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao
fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana.” Adianta-se
ainda naquele aresto que “tanto quem procure em valores morais a legitimação do
Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá,
inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens
normativas (…). Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não
negam que possam existir valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a
lógica deste e, por força dos seus critérios (…).”
Assente portanto numa legítima opção de política criminal, e na esteira da
jurisprudência constitucional já citada, não se ancorando a actividade de quem,
profissionalmente e com intenção lucrativa, favoreça ou facilite a prostituição
de outrem no âmbito de protecção da liberdade de consciência e da liberdade de
escolha de profissão, consagradas nos artigos 41.º e 47.º da Constituição, mais
não resta do que reiterar o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 170.º,
n.º 1 do Código Penal e, assim sendo, negar provimento ao recurso.
III – Decisão
Nestes termos, acordam, no Tribunal Constitucional em negar provimento ao
recurso, confirmando, no que se refere ao juízo de constitucionalidade, a
decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando em 25 UC a taxa de justiça.
Lisboa, 18 de Outubro de 2007
José Borges Soeiro
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão (votei a decisão por entender, como resulta dos
acórdãos N.ºs 170/2006 e 396/2007, que o Legislador não está constitucionalmente
proibido de adoptar um tipo criminal como o previsto no artigo 170.º, N.º 1,
do Código Penal).
Maria João Antunes (vencida, pelas
razões constantes da declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 396/2007)
Rui Manuel Moura Ramos