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Processos n.º 306/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
1.1. A. intentou, no Tribunal do Trabalho de
Coimbra, acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual
de trabalho, contra o Instituto de Estradas de Portugal (ex‑ICERR), pedindo:
(a) se declare ilícito e nulo o seu despedimento; (b) se declare que é
trabalhadora do réu, ao abrigo de contrato sem termo, desde 7 de Junho de 2001;
(c) a condenação do réu a reintegrá‑la no seu posto de trabalho, sem prejuízo da
sua categoria e antiguidade [tendo vindo, no decurso da audiência de
julgamento, a optar, “em substituição da reintegração, pela indemnização
correspondente a um mês de remuneração base por cada ano de antiguidade ou
fracção, nos termos legais”]; (d) a condenação do réu a pagar‑lhe os salários e
subsídios que se vencerem desde o seu despedimento até ao trânsito em julgado
da sentença, acrescidos de juros de mora à taxa legal, a contar do vencimento
de cada uma dessas importâncias e até efectivo e integral pagamento, bem como a
quantia de € 1471,68, correspondente a férias não gozadas, subsídio de férias e
subsídio de Natal, que não lhe foram pagos.
Essencialmente, a autora assentou a sua
pretensão no entendimento de que a celebração sucessiva, a partir de 7 de Junho
de 2001, de contratos de trabalho a termo, de contrato de prestação se serviços
e de contrato de trabalho temporário, para satisfazer sempre as mesmas
necessidade do instituto público réu (onde a autora sempre exerceu as funções de
secretariado e de apoio à gestão na “Área de Planos”), determina a sua conversão
em contrato sem termo, conforme decorre do artigo 41.º-A do Regime Jurídico da
Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do
Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 64‑A/89, de 27 de
Fevereiro (doravante designada por LCCT), idêntico efeito derivando da
circunstância de o réu se ter limitado, no que tange à invocação do motivo
justificativo para a celebração de contrato a termo, a uma simples remissão para
os termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º da LCCT, ao que acresce que não
se verificou, no caso, nenhum motivo justificativo desse tipo de contratação,
não sendo verdadeiro o motivo invocado. Neste contexto, a comunicação, feita
pelo réu à autora, em 7 de Novembro de 2002, de não renovação do contrato de
trabalho a termo configura um despedimento ilícito, sem instauração de qualquer
processo disciplinar.
1.2. A acção foi julgada parcialmente
procedente pela sentença de 22 de Junho de 2005 do Tribunal do Trabalho de
Coimbra, que declarou a ilicitude do despedimento e condenou o réu a reconhecer
a existência de um contrato de trabalho sem termo, entre as partes, com efeitos
reportados a 7 de Junho de 2001, e a pagar à autora a quantia de € 7548,35, “a
título de remunerações e indemnização acrescida de juros de mora vencidos e
vincendos, à taxa legal, desde a citação (9 de Dezembro de 2003), até integral e
efectivo pagamento”.
Quando à questão da conversão do contrato em
contrato sem termo e consequente ilicitude da sua cessação, a sentença –
considerando que: (i) o ICERR, instituto ao serviço do qual a autora fora
admitida originalmente, foi entretanto integrado, por fusão, no IEP (Instituto
das Estradas de Portugal), ut artigo 1.º do Decreto‑Lei n.º 227/2002, de 30 de
Outubro; (ii) o IEP é um instituto público, dotado de personalidade jurídica,
autonomia administrativa e financeira e património próprio, sendo que o seu
pessoal está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de trabalho
(artigo 13.º, n.º 1, dos seus Estatutos, plasmados no referido diploma); (iii)
assim, aplica‑se aos seus trabalhadores a disciplina do contrato individual de
trabalho, do regime privado; (iv) esta consta da LCCT, dispondo sobre a
contratação a termo as normas constantes do seu Capítulo VII, complementadas
pelo artigo 3.º da Lei n.º 38/96, de 31 de Agosto; (v) admitido que foi dado
conhecimento à autora, previamente à sua contratação, de que ia celebrar com o
réu um contrato de trabalho a termo certo e o respectivo conteúdo, mas não
deixando de ser certo que falta a menção clara e concreta do motivo da
contratação (formalidade ad substantiam, cuja omissão é incontornável), quando o
réu comunicou à autora, a 7 de Novembro de 2002, a rescisão do contrato,
fazendo‑o o cessar, “está sem dúvida a proceder a uma cessação unilateral e
ilícita do contrato, o que consubstancia um despedimento ilícito, porque
efectuado no âmbito de um contrato sem termo, sem existência de justa causa e
sem a precedência de um processo disciplinar válido”; (vi) não tem qualquer
fundamento a invocação do “contrato de prestação de serviços” celebrado a
seguir, uma vez que de tal contrato apenas tem a designação, tendo a autora
continuado a exercer as mesmas funções que exercia antes, em iguais termos e
condições, de igual modo sujeita às ordens e direcção do réu, cumprindo
assiduamente o mesmo horário de trabalho; (vii) o diploma entretanto publicado
(o Decreto‑Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho), que também abrangeria o réu, não se
aplica ao caso dos autos, por força do princípio geral e universal da não
retroactividade da aplicação das leis, constante do artigo 12.° do Código Civil
e compaginado com o teor do artigo 26.° do novo regime – concluiu que o novo
regime não se aplica ao caso dos autos, mantendo-se plenamente válida a
disciplina contida nos Estatutos do réu, em cujos termos se determina a
aplicação do regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem qualquer
reserva ou limitação quanto à constituição de um vínculo laboral por tempo
indeterminado.
1.3. Inconformado, o réu interpôs recurso de
apelação, alegando (além de manifestar divergência quanto à forma de
determinação do subsídio de Natal, da “indemnização de antiguidade” e dos juros
de mora) que: (i) a proibição da conversão do contrato a termo firmado entre as
partes em contrato por tempo indeterminado resulta do Decreto‑Lei n.º 427/89, de
7 de Dezembro, e da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho; (ii) o erro ou lapso na
redacção do contrato quanto à não concretização do motivo justificativo do
termo apenas impõe a sua rectificação e não a cominação estabelecida no n.º 3 do
artigo 42.° da LCCT; (iii) a autora, ao celebrar posteriormente à cessação do
contrato de trabalho a termo um contrato de prestação de serviços com o réu, sem
apor quaisquer reservas, renunciou a quaisquer créditos emergentes da anterior
relação.
Por acórdão de 8 de Março de 2006, o
Tribunal da Relação de Coimbra concedeu provimento à apelação, revogou a
sentença impugnada e absolveu o réu do pedido, desenvolvendo, para tanto, a
seguinte fundamentação:
“Com efeito:
– O réu é um instituto público, dotado de personalidade jurídica e autonomia
administrativa e financeira, a quem compete exercer os deveres do Estado no
identificado domínio, desenvolvendo a sua acção na dependência e sob a
superintendência do Ministro da respectiva tutela.
– Através de sucessivas intervenções legislativas (v. g., Decretos‑Leis n.º
35/80, n.º 140/81 e n.º 184/89), foi sendo proibida a celebração de contratos de
trabalho sem termo na Administração Pública …
… Até que, no desenvolvimento da disciplina jurídica estabelecida neste último,
se concentrou no Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, o regime de
constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na
Administração Pública.
O Decreto‑Lei n.º 218/98, de 17 de Julho, lembrando preambularmente as linhas de
referência definidas naquele diploma (maxime a consagração da existência de três
tipos de vínculo possível na Administração Pública: a nomeação, o contrato
administrativo de provimento e o contrato a termo certo), visou o
aperfeiçoamento do regime instituído, intervindo nomeadamente ao nível das
regras relativas à contratação a termo certo, cuja incorrecta prática vinha
pervertendo as condições de utilização de tal prevista figura, transformando‑a
indevidamente num instrumento normal de contratação de pessoal... – cf.
respectivo preâmbulo.
E, assim, a nova redacção dada ao artigo 18.º daquele diploma pelo artigo único
deste, além de passar a conter a noção de contrato de trabalho a termo certo (é
o acordo bilateral pelo qual uma pessoa não integrada nos quadros assegura, com
carácter de subordinação, a satisfação de necessidades transitórias dos
serviços de duração determinada), estabeleceu os casos de admissibilidade de
celebração deste tipo de vínculo e prescreveu lapidarmente na previsão dos seus
n.ºs 4 e 5 que «O contrato de trabalho a termo certo a que se refere o presente
diploma não se converte, em caso algum, em contrato sem termo», sendo que a
celebração de contrato de trabalho a termo certo com violação do disposto no
presente diploma implica a sua nulidade … e constitui os dirigentes em
responsabilidade civil, disciplinar e financeira pela prática de actos ilícitos
…
(A jurisprudência do STJ era já segura ao apontar categoricamente este caminho,
podendo ver‑se, por todos, o acórdão do STJ, de 28 de Outubro de 1998, in
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 480, p. 236, em cujo sumário se contém que
«… É nulo o contrato de trabalho a termo certo celebrado pela Administração
Pública e um trabalhador, que exceda o prazo máximo previsto nos artigos 18.º e
20.º do Decreto‑Lei n.º 427/89, este último com a redacção do Decreto‑Lei n.º
407/91 …
… Mais se adiantando que não se transforma em contrato sem prazo o contrato de
trabalho a termo certo … mesmo que celebrado sob justificação diversa do motivo
realmente verificado).
É fora de dúvida o carácter imperativo das normas do Decreto‑Lei n.º 427/89.
As únicas modalidades previstas são a nomeação e o contrato de pessoal (este
nas formas de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a
termo certo, sendo que o primeiro conferia ao outorgante a qualidade de agente
administrativo, enquanto este, não atribuindo ao trabalhador aquele estatuto, se
regeria pela Lei geral sobre os contratos a prazo... com as especialidades
constantes desse diploma, ut seu artigo 14.º.
(O Tribunal Constitucional, em Acórdão de 11 de Julho de 2000,
publicado no Diário da República, I Série‑A, de 30 de Novembro de 2000, a que
foi conferida força obrigatória geral, veio proclamar a inconstitucionalidade
do artigo 14.°, n.º 3, do Decreto‑Lei n.º 427/89, na interpretação segundo a
qual o contrato de trabalho a termo celebrado pelo Estado se converte em
contrato de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração
total fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo ... por violação
do artigo 47.°, n.º 2, da CRP).
Uma dessas especialidades consta do artigo 43.°, n.º 1, que é explícito ao
estabelecer que, a partir da sua entrada em vigor, é vedada aos serviços e
organismos referidos no artigo 2.º a constituição de relações de emprego de
carácter subordinado por forma diferente das previstas no presente diploma, o
que implicava a automática derrogação do disposto na LCCT sobre as situações
(hipótese e circunstâncias) da conversão dos contratos a termo certo em
contratos por tempo indeterminado.
Os contratos celebrados que impliquem/implicitem uma qualquer contravenção ao
regime previsto não poderão deixar de considerar‑se nulos, nos termos dos
artigos 280.°, n.º 1, e 294.º do Código Civil.
Qualquer desvio ao regime adrede instituído sempre arrastaria consigo, pois,
como fatal consequência, a nulidade do contrato.
Este apenas produzirá efeitos, como se válido fosse, em relação ao tempo em que
esteve em execução – artigo 15.º, n.º 1, da LCT.
A etiologia e economia destes preceitos são afinal bem compreensíveis e, uma vez
percepcionadas e aceites, não se vê fundamento bastante para a autora acalentar
legítima expectativa a um vínculo duradouro nos quadros do réu/Administração,
por esta via (o direito alternativo à indemnização de antiguidade pressupõe o
direito à reintegração por ilícita ruptura de uma relação estabilizada):
Sendo através da nomeação que a Administração, por acto unilateral, preenche um
lugar do quadro, visando assegurar, de modo profissionalizado, o exercício de
funções próprias do serviço público que revistam carácter de permanência (ut
artigo 4.°, n.º l, do Decreto‑Lei n.º 427/89), se fosse possível aceder a um
vínculo definitivo mediante a pretensa inobservância do regime legal previsto
nos artigos 41.º e 42.° do Decreto‑Lei n.º 64‑A/89 estar‑se‑ia a afrontar
claramente – além das normas daquele diploma que constituem especialidades
relativamente ao regime geral sobre contratos a termo certo – o princípio
constitucional constante do artigo 47.°, n.º 2, da CRP, segundo o qual o acesso
à função pública se faz, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via
de concurso.
O Decreto‑Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, visou especificamente a definição do
regime jurídico do contrato de trabalho nas pessoas colectivas públicas,
conforme proclama o seu artigo 1.º, n.º 1.
Aos contratos de trabalho celebrados por pessoas colectivas públicas é aplicável
o regime do Código do Trabalho e respectiva legislação especial … com as
especialidades constantes da presente Lei (delas constando a proibição de
conversão, em caso algum, do contrato de trabalho a termo resolutivo em contrato
por tempo indeterminado, o qual caducará no termo do prazo máximo de duração
previsto no Código do Trabalho – cf. n.ºs 2 e 3 do seu artigo 10.º –, cominando
com a nulidade a celebração de qualquer contrato a termo com violação do
disposto na presente Lei), não conferindo o contrato a qualidade de funcionário
público ou agente administrativo, ainda que esta tenha um quadro de pessoal em
regime de direito público – cf. artigo 2.º.
Como se constata, as disposições fundamentais do diploma são perfeitamente
compagináveis com a filosofia e princípios gerais do Decreto‑Lei n.º 427/89 –
que não revoga/substitui – e para cujas especialidades antes remete, apenas lhe
introduzindo uma alteração à redacção do seu artigo 14.º e revogando os seus
artigos 18.° a 21.°, como se retira dos seus artigos 29.° e 30.°, alínea b).
Estando plenamente em vigor, ao tempo, o quadro normativo integrante daquele
Decreto‑Lei n.º 427/89, que vimos de analisar nos seus aspectos mais relevantes
e interessantes à solução da controvérsia decidenda, não se impõe sequer a
ponderação do invocado princípio da não retroactividade da aplicação da nova lei
(artigo 12.º do Código Civil), face à emergência entretanto verificada do
Decreto‑Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho.
O conteúdo das suas disposições finais e transitórias (artigo 26.º) destina-se
à cobertura de contratos de trabalho que abranjam pessoas colectivas públicas
(sic).
Da norma de prevalência (artigo 27.º), aproveitaremos apenas (por enfatizar, de
algum modo, a nossa hermenêutica ...), a indicação dela constante, conforme com
a natureza imperativa das faladas normas daquele diploma, em cujos termos cedem
à força da sua normatividade mesmo as normas especiais previstas nos Estatutos
das pessoas colectivas públicas.
Isto posto:
Independentemente das razões formais ou substantivas que pudessem afectar a
validade do contrato de trabalho a termo (ou outro, de natureza afim, mas com o
mesmo objectivo prático ...), oportunamente celebrado entre as partes,
susceptíveis de induzir a sua conversão em contrato por tempo indeterminado à
luz da disciplina adrede prevista no regime constante da LCCT (Decreto‑Lei n.º
64‑A/89, de 27 de Fevereiro), sempre esta seria nula, no presente contexto, por
a isso se oporem as identificadas normas imperativas, que não consentem a
conversão, em caso algum, de um contrato de trabalho a termo certo em contrato
sem termo.
Daí que a cessação unilateralmente operada pelo réu não possa considerar-se
como configurando um despedimento ilícito, proferido no âmbito de uma relação
juslaboral por tempo indeterminado, como erradamente se ajuizou.
Em conclusão:
Sendo nosso entendimento (sempre com ressalva do respeito devido por diverso e
quiçá melhor juízo, repete‑se) que a relação juslaboral em causa – estabelecida
entre o réu, um Instituto Público do Estado, e a autora – está sujeita à
disciplina legal constante do Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, que
definiu o regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de
emprego na Administração Pública, o contrato de trabalho a termo cessou, no
caso, por caducidade, com a comunicação do réu à autora, em 7 de Novembro de
2002, da não renovação do contrato de trabalho a termo, com efeitos a contar de
6 de Dezembro de 2002.”
1.3. A autora interpôs recurso de revista do
anterior acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), sustentando, em suma,
nas respectivas alegações, que: (i) não é aplicável ao réu o disposto no
Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, designadamente, quanto ao contrato de
trabalho a termo e consequências da sua invalidade; (ii) à relação laboral em
causa aplica‑se o regime jurídico do contrato individual de trabalho e,
consequentemente, o disposto no artigo 41.º da LCCT, convertendo-se o contrato
de trabalho a termo em contrato de trabalho sem termo, em virtude da invalidade
do contrato a termo, face à ausência de motivo justificativo; (iii) o réu tem
celebrado contratos de trabalho por tempo indeterminado, na sequência de
acordos de integração dos trabalhadores, na mesma situação da autora, no âmbito
de processos judiciais que correram termos no Tribunal do Trabalho de Coimbra e
sem a prévia existência de concurso público; (iv) significa então que é possível
a celebração inicial de contratos de trabalho por tempo indeterminado, sem a
precedência de processo de concurso, mas já não é possível a conversão dos
contratos a termo em contratos sem termo, mesmo quando a trabalhadora tenha sido
submetida a um processo prévio de avaliação dos currículos com entrevista de
selecção (ponto 8 da matéria de facto dada como provada); (v) tal posição
implica uma desigualdade de tratamento dos trabalhadores do réu, em manifesta
violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição;
(vi) caso se entenda que ao réu é aplicável o Decreto‑Lei n.º 427/89, não seria
legalmente possível a conversão dos contratos de trabalho a termo em contratos
de trabalho sem qualquer termo, pelo que o réu e o próprio Estado beneficiariam
de um tratamento mais favorável que o empregador privado, quando lhes incumbe
precisamente assegurar a legalidade e política de emprego (artigo 53.° da
Constituição); (vi) deve ser reconhecida a existência de uma relação laboral de
emprego privado regulada pelo direito comum de trabalho, atendendo à nulidade do
contrato de trabalho a termo certo celebrado entre a autora e o réu e à
consequente conversão do mesmo em contrato de trabalho sem termo; (vii) ao não
decidir nestes termos, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 41.º e
42.° da LCCT, os Decretos‑Leis n.º 237/99, de 25 de Junho, n.º 227/2002, de 30
de Outubro (artigo 14.°), e n.º 239/2004, de 21 de Dezembro, os Estatutos do
ex‑ICERR (artigo 13.°), do ex‑IEP (artigo 13.°) e da actual Estradas de
Portugal, EPE (artigo 11.º) e os artigos 13.° e 53.° da Constituição.
Por acórdão de 7 de Fevereiro de 2007, o STJ
concedeu a revista, revogou o acórdão recorrido e repristinou a sentença da 1.ª
instância (alterando, porém, a respectiva condenação, em relação ao montante do
subsídio de Natal no ano de 2003 a aos juros de mora referentes à indemnização
de antiguidade). Quanto à questão da admissibilidade da conversão do contrato em
contrato sem termo, expendeu‑se nesse acórdão:
“2.3. Resulta da matéria de facto assente que, em 7 de Junho
de 2001, a autora foi admitida ao serviço pelo extinto ICERR para exercer, por
conta, ordem e direcção deste último, funções de secretariado e apoio à gestão
na Área de Planos, nas instalações da sua sede, sendo‑lhe dado conhecimento que
iria celebrar um contrato de trabalho a termo e do respectivo conteúdo [factos
assentes 3), 4) e 5)].
Em 9 de Julho de 2001, as partes subscreveram um contrato de
trabalho com termo certo, referindo‑se, na cláusula 1.ª, que as funções e
tarefas para as quais a autora fora contratada – secretariado e apoio à gestão
na Área de Planos – eram «desempenhadas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 41.° do Decreto‑Lei n.º 64‑A/89, de 27 de Fevereiro, e do n.º 1 do artigo
3.° da Lei n.º 38/96, de 31 de Agosto» (n.º 2), tendo «a duração de seis meses,
renovável por iguais períodos até um máximo de duas renovações, de acordo com o
artigo 44.° do Decreto‑Lei n.º 64‑A/89, de 27 de Fevereiro» (n.º 3), mais se
consignando, na cláusula 7.ª, que o mesmo contrato produzia os seus efeitos a
partir do dia 7 de Junho de 2001 [factos assentes 6) e 7)].
No seguimento desse ajuste contratual, em final de Maio de
2002, o réu comunicou à autora a não renovação do contrato [facto assente 9)],
mas, apesar disso, o contrato renovou‑se por igual período de seis meses [facto
assente 10)], sendo que, em 7 de Novembro de 2002, «a autora recebeu do réu uma
carta registada com A/R, em que este lhe comunicou a não renovação do contrato
de trabalho a termo, fazendo cessar o mesmo em 6 de Dezembro de 2002, nos termos
constantes de fls. 39» [facto assente 11)], com a invocação do preceituado, por
um lado, no n.º 1 do artigo 46.° do Decreto‑Lei n.º 64‑A/89, de 27 de Fevereiro,
e, por outro lado, no n.º 6 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 97/2002,
de 18 de Maio, segundo o qual os contratos de trabalho a termo certo vigentes
nos serviços e organismos da administração central e dos institutos públicos que
revistam a natureza de serviços personalizados «caducam no final dos respectivos
prazos, sem possibilidade de renovação».
Do exposto flui, claramente, que as partes quiseram submeter o
contrato em causa ao regime da LCCT, diploma que, além do mais, disciplinava o
regime jurídico de celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo,
sendo que, no clausulado do sobredito contrato, não há uma única referência ao
Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, que define o regime de constituição,
modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública.
Mas será que, de todo o modo, o contrato em causa estava
imperativamente sujeito ao regime geral da relação jurídica de emprego na
Administração Pública, considerando as especificidades inerentes à natureza
jurídica do ICERR, o que conduziria à proibição da conversão do contrato a termo
em contrato por tempo indeterminado, nos termos do Decreto‑Lei n.º 427/89?
O Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro (alterado pelo
Decreto‑Lei n.º 407/91, de 17 de Outubro, pelo Decreto‑Lei n.º 175/95, de 21 de
Julho, pelo Decreto‑Lei n.º 218/98, de 17 de Julho, e pela Lei n.º 23/2004, de
22 de Junho), estabelece os princípios a que deve obedecer a relação jurídica de
emprego na Administração Pública e foi emitido pelo Governo em desenvolvimento
do regime jurídico estabelecido pelo Decreto‑Lei n.° 184/89, de 2 de Junho
(alterado pelas Leis n.ºs 30‑C/92, de 28 de Dezembro, 25/98, de 26 de Maio,
10/2004, de 22 de Março, e 23/2004, de 22 de Junho), diploma que aprovou
princípios gerais sobre salários e gestão de pessoal da função pública.
Segundo o regime do Decreto‑Lei n.º 427/89, a relação jurídica
de emprego na Administração Pública constitui‑se por nomeação e contrato de
pessoal (artigo 3.°), podendo esta última revestir as modalidades de contrato
administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo [alíneas a)
e b) do n.º 1 do artigo 14.°], sendo que, a partir da entrada em vigor do
diploma legal em referência, ficou vedado ao Estado a constituição de relações
de emprego com carácter subordinado por forma diversa das previstas no seu
artigo 14.°, com responsabilização dos funcionários e agentes que tal
possibilitassem (artigo 43.°).
O certo é, porém, que o Decreto‑Lei n.º 427/89, ao mesmo tempo
que prescrevia que as relações de emprego público não se poderiam constituir por
forma diversa das previstas no dito artigo 14.°, veio determinar, no n.º 1 do
seu artigo 44.°, epigrafado «Salvaguarda de regimes especiais», que ao pessoal
dos institutos públicos que revestissem a forma de serviços personalizados ou de
fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou pelo
contrato individual de trabalho aplicavam‑se as respectivas disposições
estatutárias.
Neste mesmo sentido era já a previsão do n.º 4 do artigo 41.°
do Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, regime jurídico que o Decreto‑Lei n.º
427/89 desenvolveu.
Consequentemente, estes dois preceitos salvaguardam a
existência de regimes especiais, determinando a aplicação das respectivas
disposições estatutárias ao pessoal dos institutos públicos que revistam a
natureza de serviço personalizado e se rejam pelo regime do contrato individual
de trabalho.
O contrato em causa foi celebrado com um instituto público na
modalidade de serviço personalizado do Estado, em que a vinculação jurídica do
seu pessoal estava sujeita ao regime jurídico do contrato individual de
trabalho, com as especificidades previstas nos respectivos estatutos e no
diploma que os aprovou, pelo que, estando esse pessoal sujeito ao regime do
contrato individual de trabalho, vigora a salvaguarda de regime especial
consagrada no n.º 4 do artigo 41.º do Decreto‑Lei n.º 184/89 e no n.º 1 do
artigo 44.° do Decreto‑Lei n.º 427/89, razão pela qual a disciplina dessas
relações contratuais deve observar as disposições estatutárias do instituto em
causa e não o regime geral da relação jurídica de emprego na Administração
Pública.
Deste modo, a salvaguarda de um regime especial e diferenciado
para o pessoal do ICERR obsta a que se aplique, no caso vertente, o regime geral
da relação jurídica de emprego na Administração Pública editado pelo Decreto‑Lei
n.º 427/89.
Não faz, por isso, sentido argumentar‑se com as formas de
constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública (artigo 3.°
do Decreto‑Lei n.º 427/89) para concluir pela impossibilidade de conversão dos
contratos a termo em contratos por tempo indeterminado, nem com a proibição de
conversão dos contratos de trabalho a termo certo em contratos por tempo
indeterminado, prevista no n.º 4 do artigo 18.° do Decreto‑Lei n.º 427/89, na
redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 218/98.
Por outro lado, também carece de fundamento legal invocar‑se a
violação da regra do concurso para ingresso na função pública, quando o
legislador estatuiu um regime especial para a relação de emprego a estabelecer
com o pessoal do ICERR, em que não se previa a obrigatoriedade de tal forma de
selecção e recrutamento de pessoal, o que vale por dizer que não tem aplicação,
no caso, a norma do n.º 2 do artigo 47.° da Constituição da República
Portuguesa.
E não se diga que, face aos termos da norma imperativa
constante do n.º 1 do artigo 43.° do Decreto‑Lei n.º 427/89, não era possível,
sob pena de nulidade da respectiva norma estatutária, os estatutos de um
instituto público preverem formas diferentes das admitidas no Decreto‑Lei n.º
427/89 para constituição de relações de emprego com carácter subordinado.
Em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.° do Código
Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender
essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir‑se
à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo,
tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que
a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º
1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a
interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser
considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da
lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso»
(n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete
presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube
exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).
Ora, o que emerge do texto do n.º 1 do artigo 43.° citado é
que, a partir da entrada em vigor do diploma legal em referência, ficou vedado
aos serviços e organismos referidos no respectivo artigo 2.° a constituição de
relações de emprego com carácter subordinado por forma diversa das previstas
naquele diploma – ressalvados, claro está, os regimes especiais prevenidos no
n.º 1 do seu artigo 44.° –, e não que, a partir dessa data, não é possível, sob
pena de nulidade da respectiva norma estatutária, os estatutos de um instituto
público preverem formas diferentes das consagradas no Decreto‑Lei n.º 427/89 com
vista à constituição de relações de emprego com carácter subordinado.
Nesta conformidade, remetendo as normas que regulam o vínculo jurídico do
pessoal do ICERR para as normas reguladoras do contrato individual de trabalho e
não havendo qualquer disposição dos respectivos estatutos que impeça a conversão
em contratos sem termo dos contratos a termo celebrados nesse âmbito, não se
vislumbra impedimento legal à referida conversão do contrato de trabalho a termo
celebrado entre as partes, por ilegalidade da estipulação do termo.
2.4. Em derradeiro termo, há que examinar o regime da Lei n.º 23/2004, de 22 de
Junho, que aprovou o regime jurídico do contrato individual de trabalho na
Administração Pública, revogando os artigos 18.° a 21.º do Decreto‑Lei n.º
427/89, que regulavam a «Admissibilidade», «Selecção de candidatos»,
«Estipulação do prazo e renovação do contrato» e «Limites à celebração» dos
contratos de trabalho a termo certo na Administração Pública.
No que respeita às regras especiais agora aplicáveis ao contrato de trabalho a
termo resolutivo, o artigo 10.º da Lei n.º 23/2004 estabelece que «[o] contrato
de trabalho a termo resolutivo certo celebrado por pessoas colectivas públicas
não está sujeito a renovação automática» (n.º 1), que «[o] contrato de trabalho
a termo resolutivo celebrado por pessoas colectivas públicas não se converte, em
caso algum, em contrato por tempo indeterminado, caducando no termo do prazo
máximo de duração previsto no Código do Trabalho» (n.º 2) e que «[a] celebração
de contratos de trabalho a termo resolutivo com violação do disposto na
presente lei implica a sua nulidade e gera responsabilidade civil, disciplinar
e financeira dos titulares dos órgãos que celebraram os contratos de trabalho»
(n.º 3).
Sucede que, nos termos do n.º 1 do artigo 26.° do aludido diploma legal,
«[f]icam sujeitos ao regime da presente lei os contratos de trabalho e os
instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados
antes da sua entrada em vigor que abranjam pessoas colectivas públicas, salvo
quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente
passados anteriormente àquele momento».
Ora, sendo a autora admitida ao serviço do réu em 7 de Junho de 2001,
ocorrendo, em 6 de Dezembro de 2002, a cessação do contrato de trabalho a termo
certo, e tendo a contratação da alegada prestação de serviços cessado em Junho
de 2003, é inquestionável que a Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, que entrou em
vigor «30 dias após a data da sua publicação» (artigo 31.º), não se aplica às
condições de validade e aos efeitos das relações jurídicas sucessivamente
estabelecidas entre as partes, porque referentes a factos e/ou situações
totalmente passados anteriormente à data da sua entrada em vigor.
O regime jurídico aprovado pela Lei n.º 23/2004 não se aplica, pois, ao caso.
Tudo para concluir que o contrato de trabalho em apreço está sujeito ao regime
geral do contrato individual de trabalho, como ajuizou a sentença proferida na
primeira instância, e não ao regime da relação jurídica de emprego na
Administração Pública, conforme decidiu a Relação, não se verificando, pois,
obstáculo legal à sua conversão em contrato por tempo indeterminado.
3. Estando em causa as condições de validade e os efeitos da celebração e
cessação de um contrato de trabalho a termo, ocorridas em datas anteriores à
entrada em vigor do Código do Trabalho (dia 1 de Dezembro de 2003 – n.º 1 do
artigo 3.° da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), aplica‑se o disposto no
anterior regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da
celebração e caducidade do contrato a termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
64‑A/89, de 27 de Fevereiro, na redacção anterior à Lei n.º 18/2001, de 3 de
Julho, conforme o estipulado no n.º 1 do artigo 8.° da Lei n.º 99/2003.
De acordo com o artigo 41.º da LCCT, diploma a que pertencem os demais preceitos
a citar neste ponto, sem menção da origem, a celebração de contrato de trabalho
a termo só é admitida nos casos seguintes: (a) substituição temporária de um
trabalhador que, por qualquer razão, se encontre impedido de prestar serviço ou
em relação ao qual esteja pendente em juízo acção de apreciação da licitude do
despedimento; (b) acréscimo temporário ou excepcional da actividade da empresa;
(c) actividades sazonais; (d) execução de uma tarefa ocasional ou serviço
determinado, definido e não duradouro; (e) lançamento de uma nova actividade de
duração incerta ou início de laboração de uma empresa ou estabelecimento; (f)
execução, direcção e fiscalização de trabalhos na indústria de construção civil,
obras públicas, montagens e reparações industriais, incluindo os respectivos
projectos e outras actividades complementares de controlo e acompanhamento, bem
como outros trabalhos de análoga natureza e temporalidade, tanto em regime de
empreitada como de administração directa; (g) desenvolvimento de projectos,
incluindo concepção, investigação, direcção e fiscalização, não inseridos na
actividade corrente da entidade empregadora; (h) contratação de trabalhadores à
procura de primeiro emprego ou de desempregados de longa duração ou noutras
situações previstas em legislação especial de política de emprego.
Nos termos do mesmo artigo 41.º, «[a] celebração de contratos a termo fora dos
casos previstos no número anterior importa a nulidade da estipulação do termo»
(n.º 2).
Já o artigo 41.º regula a forma do contrato de trabalho a termo, certo ou
incerto, estabelecendo que esse contrato está sujeito a forma escrita (n.º 1) e
acha‑se na dependência de várias formalidades cuja indicação consta das alíneas
do seu n.º 1; resta acrescentar que a lei aplicável considera contrato sem termo
aquele em que falte a redução a escrito, a assinatura e identificação das
partes, bem como, no caso de contratos a termo certo, quando se omita a
referência ao prazo estipulado ou a indicação do motivo justificativo (n.º 3).
Doutro passo, como se determina no artigo 3.º da Lei n.º 38/96, de 31 de Agosto,
a indicação do motivo justificativo da celebração de contrato de trabalho a
termo só é atendível se mencionar «concretamente os factos e circunstâncias que
integram esse motivo»; daí que não basta remeter para a previsão legal, sendo
necessário fazer referência à situação concreta que fundamenta o termo
estipulado.
Assim, o motivo justificativo da celebração do contrato de trabalho a termo terá
de ser indicado no documento que suporta o próprio contrato, sob pena de se
considerar nula a estipulação do termo e, nessa medida, de se converter em
contrato por tempo indeterminado.
No caso, o contrato ajustado entre as partes refere apenas, como motivo
justificativo da contratação a termo da autora, que «as funções e tarefas
previstas no número anterior [funções de secretariado e apoio à gestão na Área
de Planos] são desempenhadas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º do
Decreto‑Lei n.º 64‑A/89, de 27 de Fevereiro, e do n.º 1 do artigo 3.° da Lei n.º
38/96, de 31 de Agosto, nos termos descritos», não fazendo qualquer alusão aos
factos concretos em que se fundou a necessidade da contratação a termo, o que
constitui formalidade ad substantiam, limitando‑se a remeter para a norma
constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º da LCCT, o que não satisfaz, de
modo algum, a exigência legal.
O réu alega que tal omissão se deveu a lapso ou erro na redacção do contrato a
termo, que apenas impõe a sua rectificação e não a cominação estabelecida no
n.º 3 do artigo 42.° da LCCT, «independentemente de ser um contrato formal»,
sendo que, «[n] a pior das hipóteses deve ampliar‑se a matéria de facto no
sentido de se apurar se existiu, ou não, erro ou lapso na elaboração do
contrato, naquela parte da ausência do motivo justificativo».
Porém, ao contrário do contrato de trabalho sem termo, em que vigora o princípio
da liberdade de forma, conforme prevê o artigo 6.° do Regime Jurídico do
Contrato Individual de Trabalho (LCT), anexo ao Decreto‑Lei n.º 49 408, de 24 de
Novembro de 1969, o contrato de trabalho a termo é um negócio formal, sendo a
indicação do motivo justificativo da celebração do contrato de trabalho a termo
uma exigência de forma ad substantiam, que, por isso, não pode ser substituída
por qualquer outro meio de prova.
E, assim sendo, uma vez que o contrato de trabalho firmado entre as partes «não
contém qualquer motivo justificativo do termo que prevê», é nula a estipulação
do respectivo termo.
Ora, sendo ilegal a estipulação do termo, o contrato tem de considerar‑se sem
termo [artigos 41.°, n.º 2, e 42.°, n.ºs 1, alínea e), e 3, ambos da LCCT], pelo
que, tal como se afirmou na sentença da primeira instância, «quando o réu
comunica à autora, em 7 de Novembro de 2002, a rescisão do contrato, fazendo
cessar o contrato, está sem dúvida a proceder a uma cessação unilateral e
ilícita do contrato de trabalho, o que consubstancia um despedimento ilícito,
porque efectuado no âmbito de um contrato sem termo, sem existência de justa
causa e sem a precedência de um processo disciplinar válido».
Na verdade, convertido o contrato celebrado a termo em contrato sem termo, era
inadmissível a cessação do mesmo, operada em 6 de Dezembro de 2002, a qual
consubstancia um despedimento ilícito, com as inerentes consequências.”
1.4. É deste acórdão que, pelo Instituto de
Estradas de Portugal vem interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b)
e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por
último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por
LTC), referindo‑se no respectivo requerimento de interposição que:
“– pretende‑se ver apreciada a inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 41.º do
Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, e do n.º 1 do artigo 44.º do Decreto‑Lei
n.º 427/89, de 7 de Dezembro, com a interpretação com que foi aplicado no
acórdão recorrido, ou seja, de que tais normas salvaguardam um regime especial e
diferenciado para o pessoal do ICERR (instituto público personalizado) e
impedem que se aplique o regime geral da relação jurídica de emprego na
Administração Pública editado pelo Decreto‑Lei n.º 427/89, aplicando‑se, antes,
o regime jurídico do contrato individual de trabalho previsto no artigo 13.º dos
Estatutos do ICERR;
– tal interpretação do n.º 4 do artigo 41.º do Decreto‑Lei n.º 184/89 e do n.º 1
do artigo 44.º do Decreto‑Lei n.º 427/89, bem como do artigo 13.º dos Estatutos
do ICERR, viola o n.º 2 do artigo 47.º da Constituição da República Portuguesa;
– a questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, desde logo no
acórdão da Relação de Coimbra, de 8 de Março de 2006, nas contra‑alegações
apresentadas no recurso de revista e na resposta ao parecer do Ministério
Público junto do Supremo Tribunal de Justiça;
– pretende‑se, igualmente, ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 13.º
dos Estatutos do ICERR, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho,
aplicado pelo douto acórdão recorrido, tendo em conta que normas similares de
outros institutos públicos e outra norma [dos Estatutos] do ICERR, com o mesmo
âmbito do citado artigo 13.º, foram já julgadas inconstitucionais pelo Tribunal
Constitucional, através dos seguintes Acórdãos:
– Acórdão n.º 61/2004, de 27 de Janeiro de 2004 – Proc. n.º 47/01 – in Diário da
República, I Série‑A, de 27 de Fevereiro de 2004;
– Acórdão n.º 406/2003, de 17 de Setembro de 2003 – Proc. n.º 470/01 – in
www.tribunalconstitucional.pt;
– Acórdão n.º 140/2002, de 9 de Abril de 2002 – Proc. n.º 731/99 – in
www.tribunalconstitucional.pt;
– Acórdão n.º 147/2002, de 16 de Abril de 2002 – Proc. n.º 603/99 – in
www.tribunalconstitucional.pt;
– Acórdão n.º 310/2002, de 3 de Julho de 2002 – Proc. n.º 601/99 — in
www.tribunalconstitucional.pt.”
No Tribunal Constitucional, o relator
determinou a apresentação de alegações, “devendo as partes pronunciar‑se,
querendo, sobre a eventualidade de não conhecimento do recurso interposto ao
abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo por objecto a norma do
artigo 13.º dos Estatutos do ICERR, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25
de Junho, por falta de identidade entre essa norma e as normas julgadas
inconstitucionais pelos citados Acórdãos n.ºs 140/2002, 147/2002, 310/2002,
406/2003 e 61/2004”.
1.5. O recorrente apresentou em peças
processuais separadas a resposta à questão da eventual inadmissibilidade do
recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (fls.
411‑413), as alegações relativas ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC (fls. 416‑433) e as alegações relativas ao recurso
interposto ao abrigo da referida alínea g) (fls. 400‑408).
1.5.1. Naquela resposta, o recorrente
reconhece a inexistência de identidade entre a norma do artigo 13.º, n.º 1, dos
Estatutos do ICERR e as normas julgadas inconstitucionais nos Acórdãos n.ºs
140/2002, 147/2002 e 310/2002, mas sustenta que entre aquela norma e as normas
julgadas inconstitucionais pelos Acórdãos n.ºs 406/2003 e 61/2004, apesar de
estas últimas se referirem a outros institutos públicos, existe a aludida
identidade, por ser a mesma ou similar a questão de direito, podendo a
fundamentação e a decisão destes dois Acórdãos aplicar‑se, por igualdade e/ou
maioria de razão, ao caso dos autos.
1.5.2. Nas alegações relativas ao recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recorrente
formula as seguintes conclusões:
“1.ª – O recorr[ente], de acordo com os respectivos estatutos
anexos ao Decreto‑Lei n.º 237/99, é «uma pessoa colectiva de direito público
dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio» (n.º 1
do artigo 1.º), estando o seu pessoal «sujeito ao regime jurídico do contrato
individual de trabalho, com as especificidades previstas nos presentes
estatutos e no diploma que o aprova» (n.º 1 do artigo 13.º).
2.ª – Atentas as suas atribuições e estrutura orgânica e
funcional, é um instituto público, na modalidade de serviço personalizado do
Estado.
3.ª – O recorr[ente] é uma pessoa colectiva de direito público
– «instituto público» – sujeito à tutela e superintendência do Ministro do
Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, tendo por missão
representar o Estado como autoridade nacional em relação às infra‑estruturas
rodoviárias nacionais não concessionadas (autoridade nacional de estradas); no
exercício das suas funções detém poderes de suspender ou fazer cessar
actividades e encerrar estabelecimentos, determinar a imediata remoção de
ocupações indevidas de bens do domínio público, embargar e ordenar a demolição
de construções, autorizar a instalação de equipamentos e infra‑estruturas ao
longo das estradas, concedendo as autorizações necessárias, instrução e
aplicação de sanções em processos contra‑ordenacionais, efectuar expropriações,
liquidar e cobrar, mesmo coercivamente, taxas, executar coercivamente decisões
da autoridade (poderes de autoridade).
[…]
4.ª – Por outro lado, os princípios fundamentais do regime de
constituição, modificação e extinção da relação de emprego na Administração
Pública são definidos pelo Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, e pelo
Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, abrangendo, na sua disciplina, os
institutos públicos, nas modalidades de serviços personalizados do Estado.
5.ª – Os dois referidos diplomas estabelecem, taxativamente, o
modo de constituição da relação jurídica na Administração Pública, incluindo os
institutos públicos, nas modalidades de serviços personalizados do Estado
(contrato administrativo de provimento e contrato de trabalho a termo certo),
sendo vedado a tais serviços a constituição de relações de emprego com carácter
subordinado por forma diferente da prevista nos referidos diplomas legais (vide
artigo 43.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 427/89).
6.ª – Tendo, por sua vez, este último diploma, no n.º 1 do
artigo 44.º, epigrafado «Salvaguarda de regimes especiais», disposto que ao
pessoal dos institutos públicos que revestissem a forma de serviços
personalizados se aplicavam as respectivas disposições estatutárias.
7.ª – Tendo por base a aplicação desta última disposição, o
douto acórdão recorrido conclui que não está em causa uma relação jurídica de
emprego público, por aplicação do n.º 1 do artigo 13.º dos Estatutos do
recorrente, não tendo, por isso, qualquer cabimento a violação da norma do n.º 2
do artigo 47.º da Constituição.
Ora,
8.ª – O Acórdão n.º 683/99, analisando o n.º 2 do artigo 47.º
da Constituição, identificou um «direito especial de igualdade» no acesso à
função pública e um «interesse institucional» da Administração na promoção da
sua capacidade funcional e um interesse de transparência e democraticidade na
composição da função pública, que impõe um direito a um procedimento justo de
recrutamento e selecção de candidatos à função pública, que se traduz, em regra,
no concurso.
9.ª – Também no Acórdão n.º 406/2003, em que estava em causa a
apreciação da constitucionalidade de determinadas normas dos Estatutos do INAC
(Instituto Nacional de Aviação Civil), o Tribunal Constitucional, tendo em conta
as funções cometidas aos seus órgãos e agentes, justificava que ao recrutamento
e selecção do seu pessoal, ainda que sujeito ao contrato individual de
trabalho, se aplicassem as garantias de liberdade e igualdade de acesso que se
encontram fixadas no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
10.ª – E, no Acórdão n.º 471/2001, veio a dispor‑se que ainda
que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao regime do contrato
individual se não justifica a realização de um concurso público, nem por isso
se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal
deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegurem
a referida liberdade e igualdade de acesso.
11.ª – Daí que aos presentes autos seja integralmente aplicada
a jurisprudência dos Acórdãos n.ºs 683/99 e 368/2000 do Tribunal
Constitucional, no que respeita ao acesso à «função pública», em função das
exigências do n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
12.ª – Exigências essas que são aplicáveis mesmo quando a
actividade administrativa seja submetida ao direito privado (Acórdão n.º
406/2003).
13.ª – E não há dúvida sobre a natureza pública, equiparada
aos serviços autónomos do Estado, do ICERR, integrando‑se na «função pública»
(veja‑se, por igualdade de razão, o «caso» do INAC, tratado no Acórdão n.º
406/2003).
14.ª – Aplicando‑se, pois, ao recorrente a doutrina constante
do citado Acórdão n.º 406/2003:
– ainda que sujeito ao contrato individual de trabalho, devem
aplicar‑se as garantias de liberdade e igualdade de acesso que se encontram
fixados no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição;
– ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal
sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a
realização de um concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer que
a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de
procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de
acesso.
15.ª – O que demonstra que não existe qualquer
incompatibilidade entre o regime do contrato individual de trabalho e a
definição de garantias de liberdade e igualdade no acesso ao exercício de
funções nos institutos públicos, como se diz no Acórdão n.º 471/2001.
16.ª – Daí que tenha de concluir‑se que:
– A aplicação da norma constante do n.º 1 do artigo 44.º do
Decreto‑Lei n.º 427/89, no sentido de que o regime estabelecido pelo Decreto‑Lei
n.º 427/89 não é aplicável ao recorrente, aplicando‑se, antes, o regime
estabelecido nos seus Estatutos, esta norma – n.º 1 do artigo 44.º do
Decreto‑Lei n.º 427/89 – é inconstitucional, por violação do n.º 2 do artigo
47.º da Constituição da República Portuguesa, ao permitir‑se a contratação da
recorrida sem concurso, o que decorre da conversão do contrato a termo em
contrato sem termo;
– O artigo 13.º, n.º 1, dos Estatutos do ICERR, por remissão
da citada norma – n.º 1 do artigo 44.º do Decreto‑Lei n.º 427/89 –, na medida em
que prevêem uma plena liberdade de selecção e recrutamento dos trabalhadores,
sem estabelecerem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a
observância dos princípios da liberdade e da igualdade de acesso à função
pública, colidem com o preceituado no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição,
sendo por isso inconstitucional.
17.ª – Por outro lado, não existe qualquer justificação
material para um regime de excepção (aos princípios da liberdade e igualdade de
acesso à função pública), sejam elas de qualificações técnicas, natureza do
trabalho ou especificidade de funções, no âmbito da contratação no recorrente.
18.ª – Atenta a especialidade constante do artigo 43.º, n.º 1,
do Decreto‑Lei n.º 427/89, que derroga o disposto na LCCT sobre as situações
(hipótese e circunstância) da conversão dos contratos a termo certo em
contratos sem termo, os contratos celebrados pelo ICERR ao arrepio do regime
previsto naquele diploma são nulos, nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, e
294.º do Código Civil, produzindo apenas efeitos em relação ao tempo em que
estiveram em execução.
19.ª – Daí que o contrato de trabalho a termo certo celebrado
entre recorrente e recorrida tenha caducado quando o recorrente comunicou à
recorrida, por escrito, a vontade de não o renovar, independentemente do motivo
justificativo da contratação a termo satisfazer ou não as exigências de
concretização factual exigidas por lei.
20.ª – E não se pode dizer que o recorrente, enquanto
«infractor da lei», beneficia dessa ilegalidade, pois não se vislumbra que algo
de ilegítimo possa ser imputado a quem invoca a nulidade de um contrato por
violação de disposição legal, que, por consagrar princípios de interesse e
ordem pública, reveste carácter imperativo, e da regra constitucional do artigo
47.º, n.º 2.
21.ª – Concluindo‑se, a conversão do contrato a termo da
recorrida em contrato por tempo indeterminado, sem concurso, ligada à função a
exercer, padece de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade
estabelecido no artigo 47.º, n.º 2, da Constituição.”
1.5.3. Nas alegações relativas ao recurso
interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recorrente
formula as seguintes conclusões:
“1.ª – O Acórdão n.º 61/2004 declarou a inconstitucionalidade
da norma constante do artigo 22.º do Decreto‑Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto
(diploma que cria o IPCR – Instituto Português de Conservação e Restauro), por
violação do n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, com base nos seguintes
fundamentos:
a) A norma em causa permite a contratação de algum pessoal
mediante contrato individual de trabalho e sem que se preveja qualquer
procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta
o acesso em condições de liberdade e igualdade;
b) O IPCR é instituto público na modalidade de serviço
personalizado do Estado;
c) O IPCR tem algum pessoal a que é aplicável o regime geral
da função pública;
d) As atribuições e a natureza do IPCR, bem como as funções
cometidas aos seus órgãos e agentes;
e) A natureza pública do IPCR, equiparada aos serviços
autónomos do Estado;
f) A não existência de qualquer justificação material para um
regime de excepção (aos princípios da liberdade e igualdade de acesso à função
pública), sejam elas de qualificações técnicas, natureza do trabalho,
especificidade de funções, etc.
2.ª – No caso do ICERR, ora recorrente, e tendo e conta o
disposto nos seus Estatutos, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, verificam‑se
as seguintes condições e situações:
a) O n.º 1 do artigo 13.º dos seus Estatutos dispõe que o seu
pessoal está sujeito ao regime do contrato individual de trabalho, com as
especificidades previstas nos presentes estatutos e no diploma que o aprova,
isto é, esta norma permite a contratação de todo o pessoal mediante contrato
individual de trabalho e sem que se preveja qualquer procedimento de
recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em
condições de liberdade e igualdade;
b) O ICERR é instituto público na modalidade de serviço
personalizado do Estado;
c) O ICERR tem algum pessoal a que é aplicável o regime geral
da função pública;
d) O ICERR tem natureza pública, equiparada aos serviços
autónomos do Estado;
e) As atribuições e a natureza do ICERR, bem como as funções
cometidas aos seus órgãos e agentes, em que:
– é uma autoridade nacional de estradas, em representação do
Estado;
– ao seu pessoal são atribuídos poderes de autoridade, no
exercício de funções de vigilância, manutenção ou fiscalização;
– entre as suas receitas contam‑se as provenientes de coimas e
outras sanções ou de multas e/ou coimas, com o exercício de um correspondente
poder sancionatório «público»;
– entre as suas receitas contam-se «taxas», «emolumentos» e
outras cobradas por «licenciamentos, aprovações e actos similares e por
serviços prestados no âmbito das suas atribuições»;
– para a cobrança coerciva de tais receitas, estabelece‑se a
utilização do processo de «execução fiscal»;
– a sua gestão financeira e patrimonial, incluindo a
organização da sua contabilidade, rege‑se exclusivamente pelo regime aplicável
aos fundos e serviços autónomos do Estado;
– no exercício das suas funções detém poderes de suspender ou
fazer cessar actividades e encerrar estabelecimentos; determinar a imediata
remoção de ocupações indevidas de bens do domínio público; embargar e ordenar a
demolição de construções; autorizar a instalação de equipamentos e
infra‑estruturas ao longo das estradas, concedendo as autorizações necessárias;
instrução e aplicação de sanções em processos contra-ordenacionais;
f) A não existência de qualquer justificação material para um
regime de excepção (aos princípios da liberdade e igualdade de acesso à função
pública), sejam elas de qualificações técnicas, natureza do trabalho,
especificidade de funções, etc.
3.ª – Por maioria de razão, relativamente ao IPCR,
justifica‑se inteiramente que ao recrutamento e selecção do pessoal do ICERR,
ainda que sujeito ao contrato individual de trabalho, se apliquem as garantias
de liberdade e igualdade de acesso que se encontram fixadas no n.º 2 do artigo
47.º da Constituição.
4.ª – Se o Acórdão n.º 61/2004, declarou a
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 22.º do Decreto‑Lei n.º
342/99, de 25 de Agosto, por maioria de razão, e tendo em conta a identidade das
normas, deve ser julgado que n.º 1 do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR,
aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, é inconstitucional, por
violação do n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
5.ª – O Acórdão n.º 406/2003 declarou a inconstitucionalidade
da norma constante do n.º 1 do artigo 21.º dos Estatutos do INAC (Instituto
Nacional de Aviação Civil), aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 133/98, de 15 de
Maio, por violação do n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, na medida em que
comete ao respectivo Conselho de Administração a competência para decidir sobre
a admissão de trabalhadores sem que se preveja qualquer procedimento de
recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em
condições de liberdade e igualdade, e com os seguintes fundamentos:
a) O INAC é um instituto com vocação reguladora e inspectiva,
ao qual é atribuído o exercício de poderes de autoridade do Estado,
designadamente, nos seguintes aspectos: quanto ao licenciamento, certificação,
autorização e homologação de certas actividades e procedimentos; quanto à
emissão de regulamentos; quanto à realização de inquéritos, requisição de
informações e efectivação de actividades de inspecção; quanto à aplicação de
medidas administrativas e sancionatórias; quanto à liquidação e cobrança
coerciva de taxas, através do processo de execução fiscal; quanto à expressa
atribuição de poderes de autoridade ao pessoal que desempenhe funções de
fiscalização, que incluem, nomeadamente, «a suspensão ou cessação de actividades
e encerramento de instalações» a título preventivo;
b) O INAC é um instituto público com clara prevalência do
regime de direito público, exercendo poderes de autoridade pública através dos
seus órgãos e agentes; os seus trabalhadores desempenham, nestes termos, em
suma, uma função pública em sentido material;
c) A não existência de qualquer justificação material para um
regime de excepção aos princípios da liberdade e igualdade de acesso à função
pública.
6.ª – No caso do ICERR, ora recorrente, e tendo e conta o
disposto nos seus Estatutos, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, verificam‑se
as seguintes condições e situações:
a) O n.º 1 do artigo 13.º dos seus Estatutos dispõe que o seu
pessoal está sujeito ao regime do contrato individual de trabalho, com as
especificidades previstas nos presentes estatutos e no diploma que o aprova,
isto é, esta norma permite a contratação de todo o pessoal mediante contrato
individual de trabalho e sem que se preveja qualquer procedimento de
recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em
condições de liberdade e igualdade;
b) O ICERR é instituto público na modalidade de serviço
personalizado do Estado;
c) O ICERR tem algum pessoal a que é aplicável o regime geral
da função pública;
d) O ICERR tem natureza pública, equiparada aos serviços
autónomos do Estado;
e) As atribuições e a natureza do ICERR, bem como as funções
cometidas aos seus órgãos e agentes, em que:
– é uma autoridade nacional de estradas, em representação do
Estado;
– ao seu pessoal são atribuídos poderes de autoridade, no
exercício de funções de vigilância, manutenção ou fiscalização;
– entre as suas receitas contam‑se as provenientes de coimas e
outras sanções ou de multas e/ou coimas, com o exercício de um correspondente
poder sancionatório «público»;
– entre as suas receitas contam-se «taxas», «emolumentos» e
outras cobradas por «licenciamentos, aprovações e actos similares e por
serviços prestados no âmbito das suas atribuições»;
– para a cobrança coerciva de tais receitas, estabelece‑se a
utilização do processo de «execução fiscal».
– a sua gestão financeira e patrimonial, incluindo a
organização da sua contabilidade, rege‑se exclusivamente pelo regime aplicável
aos fundos e serviços autónomos do Estado;
– no exercício das suas funções, detém poderes de suspender ou
fazer cessar actividades e encerrar estabelecimentos; determinar a imediata
remoção de ocupações indevidas de bens do domínio público; embargar e ordenar a
demolição de construções; autorizar a instalação de equipamentos e
infra‑estruturas ao longo das estradas, concedendo as autorizações necessárias;
instrução e aplicação de sanções em processos contra-ordenacionais;
f) A não existência de qualquer justificação material para um
regime de excepção (aos princípios da liberdade e igualdade de acesso à função
pública), sejam elas de qualificações técnicas, natureza do trabalho,
especificidade de funções, etc.
7.ª – Por igualdade de razão, relativamente ao INAC,
justifica‑se inteiramente que ao recrutamento e selecção do pessoal do ICERR,
ainda que sujeito ao contrato individual de trabalho, se apliquem as garantias
de liberdade e igualdade de acesso que se encontram fixadas no n.º 2 do artigo
47.º da Constituição.
8.ª – Se o Acórdão n.º 406/2003 declarou a
inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 21.º dos Estatutos
do INAC, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 133/98, de 15 de Maio, por violação do
n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, por igualdade de razão, e tendo em conta a
identidade das normas, deve ser julgado que n.º 1 do artigo 13.º dos Estatutos
do ICERR, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, é
inconstitucional, por violação do n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.”
1.6. A recorrida A. contra‑alegou,
sustentando a inadmissibilidade do recurso quer com base na alínea g) (por
falta de identidade entre a norma do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR e as
normas julgadas inconstitucionais pelos Acórdãos n.ºs 140/2002, 147/2002,
310/2002, 406/2003 e 61/2004), quer com base na alínea b) (por não ter sido
suscitada, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma aplicada na
decisão recorrida) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, e, caso se venha a conhecer
do objecto do recurso, propugnando a sua improcedência, basicamente por entender
que, não estando em causa uma relação jurídica de emprego público, mas um
contrato individual de trabalho de direito privado, não ter cabimento a
invocação da violação do comando do artigo 47.º, n.º 2, da CRP, que determina
que o acesso à função pública se deve processar em condições de igualdade e
liberdade, em regra por via de concurso.
Para sustentar a inadmissibilidade do
recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC aduziu
a recorrida que:
“Para o Tribunal Constitucional poder conhecer do objecto do presente recurso é
necessário que a questão da constitucionalidade tenha sido suscitada de modo
processualmente adequado, ou seja, quando tenha sido indicada a norma que se
considera inconstitucional ou que se indique o princípio ou a norma
constitucional alegadamente violados e se apresente uma fundamentação da
inconstitucionalidade arguida.
Salvo melhor entendimento e da leitura cuidada das várias alegações do réu, não
nos parece que a questão da inconstitucionalidade tenha sido correctamente
suscitada nos autos.
Efectivamente, o recorrente não suscitou durante o processo essa
inconstitucionalidade, como tudo melhor resulta da leitura das suas alegações de
recurso.
Com efeito, o réu limitou‑se a invocar a inconstitucionalidade da norma do
artigo 44.º do Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e do artigo 13.º dos
Estatutos do ICERR no requerimento de reforma do acórdão recorrido, sem que
anteriormente a tenha suscitado nos autos.
Acresce ainda que o recorrente apenas no recurso de revista suscitou a questão
da alegada aplicabilidade do regime previsto no Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de
Dezembro, à relação contratual estabelecida entre autora e réu, sendo certo que,
nem na primeira instância, nem na alegação do recurso de apelação invocou tal
possibilidade, como tudo melhor consta da contestação e alegações de recurso.
Alegando que «admitindo‑se a conversão do contrato a termo em contrato sem
termo, a constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública
viola o princípio constitucional de acesso igualitário e não discricionário à
função pública e a regra do concurso (artigo 47.º, n.º 2, da Constituição)».
Ora, resulta de todo o exposto que o réu, nas suas alegações de recurso de
revista, não suscitou correctamente a inconstitucionalidade normativa, pois
limitou‑se a afirmar de modo muito vago e abstracto que uma dada interpretação
é inconstitucional.
Nem a alegada inconstitucionalidade quanto à interpretação do citado artigo 13.º
dos Estatutos do ICERR coincide com a alegação agora produzida pelo réu, como
vimos.
Nestes termos, deverá ser entendido que o réu não invocou qualquer interpretação
objectivamente imprevisível, pelo que o Tribunal Constitucional deverá entender
que não foi suscitada de modo adequado a questão da inconstitucionalidade
normativa e, assim, decidir não tomar conhecimento do recurso, ao abrigo do
disposto no artigo 78.º‑A da LTC.”
1.7. O recorrente respondeu à questão,
inovatoriamente suscitada nas contra‑alegações da recorrida, da
inadmissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, sustentando que, quer nas contra‑alegações do recurso de
apelação, quer nas alegações do recurso de revista, quer na resposta ao parecer
do Ministério Público no STJ, sempre suscitou adequadamente as questões de
inconstitucionalidade que pretende ver apreciadas.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Relativamente à questão, suscitada pelo
relator no Tribunal Constitucional no despacho para produção de alegações, de
não conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, tendo por objecto a norma do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR,
aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, por falta de identidade
entre essa norma e as normas julgadas ou declaradas inconstitucionais pelos
Acórdãos n.ºs 140/2002, 147/2002, 310/2002, 406/2003 e 61/2004, invocados pelo
recorrente, já se registou (supra, 1.5.1) ter o recorrente reconhecido a
inexistência de identidade entre a norma do artigo 13.º, n.º 1, dos Estatutos do
ICERR e as normas tidas por inconstitucionais nos Acórdãos n.ºs 140/2002,
147/2002 e 310/2002, embora continue a sustentar que entre aquela norma e as
normas reputadas inconstitucionais pelos Acórdãos n.ºs 406/2003 e 61/2004,
apesar de estas últimas se referirem a outros institutos públicos, existe a
aludida identidade, por ser a mesma ou similar a questão de direito, podendo a
fundamentação e a decisão destes dois Acórdãos aplicar‑se, por igualdade e/ou
maioria de razão, ao caso dos autos.
No entanto, como é sabido, a admissibilidade
do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC pressupõe
identidade entre a norma aplicada na decisão recorrida e a norma anteriormente
julgada ou declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, não
bastando que possa ser sustentado que as mesmas razões que levaram este
Tribunal a julgar inconstitucional determinada norma justificariam que juízo de
igual sentido fosse formulado a propósito da norma aplicada na decisão
recorrida. Ora, é manifesto que essa identidade não existe, desde logo pela
diversidade dos universos pessoais atingidos, entre, por um lado, a norma do
artigo 13.º dos Estatutos do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede
Rodoviária, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho (“1 – O
pessoal do ICERR está sujeito ao regime jurídico do contrato individual de
trabalho, com as especificidades previstas nos presentes estatutos e no diploma
que o aprova. 2 – As condições de prestação e disciplina de trabalho são
definidas em regulamento próprio do ICERR, a aprovar pelo conselho de
administração”), aplicada na decisão recorrida, e, por outro lado, a norma do
artigo 21.º, n.º 1 (“O pessoal do INAC está sujeito ao regime jurídico do
contrato individual de trabalho, com as especificidades previstas nos presentes
Estatutos e seus regulamentos”), conjugada com a do artigo 13.º, n.º 2, alínea
l) (“2 – Compete ao conselho de administração: (…) l) Decidir sobre a admissão e
afectação dos trabalhadores do INAC e praticar os demais actos relativos à
gestão do pessoal e ao desenvolvimento da sua carreira”), dos Estatutos do
Instituto Nacional de Aviação Civil, aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 133/98, de
15 de Maio, que foi declarada inconstitucional pelo Acórdão n.º 406/2003, ou a
norma do artigo 22.º do Decreto‑Lei n.º 342/99, de 25 de Agosto, que criou o
Instituto Português de Conservação e Restauro (“1 – O pessoal técnico superior
e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em investigação
laboratorial para a conservação e restauro poderá ser admitido em regime de
contrato individual de trabalho, mediante despacho do Ministro da Cultura. 2 –
O pessoal a que se refere o número anterior beneficia do regime geral da
previdência e não fica abrangido pelo estatuto da função pública”), que foi
declarada inconstitucional pelo Acórdão n.º 61/2004.
Não se conhecerá, pois, do recurso
interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo por
objecto a norma do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR.
2.2. Sustenta a recorrida a
inadmissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, por, em seu entender, o recorrente não ter correctamente
suscitado nos autos a questão de inconstitucionalidade que pretende ver
apreciada.
Entende‑se não assistir razão à recorrida. A
eventualidade de o recorrente não ter suscitado a questão de
inconstitucionalidade perante a 1.ª instância ou perante o Tribunal da Relação é
de todo irrelevante, bastando que a tenha suscitado adequadamente perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida (o Supremo Tribunal de Justiça) antes
da prolação desta decisão.
A norma aplicada nesta decisão e cuja
conformidade constitucional o recorrente pretende ver sindicada resulta da
conjugação dos artigos 41.º, n.º 4, do Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho,
44.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos Estatutos
do ICERR, os dois primeiros enquanto permitem a aplicação das disposições
estatutárias ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de
serviços personalizados ou de fundos públicos, concretamente enquanto permite a
aplicação do artigo 13.º dos Estatutos do ICERR, sujeitando o pessoal do ICERR
ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, designadamente na parte
em que permite a conversão de contratos de trabalho a termo em contratos sem
termo.
A suscitação da inconstitucionalidade desse
critério normativo já se podia considerar feita nas contra‑alegações do então
recorrido (ora recorrente) no recurso de revista, em que sustentava que o único
regime constitucionalmente admissível era o plasmado nas normas do Decreto‑Lei
n.º 427/89, designadamente a do seu artigo 43.º, n.º 1, que proíbe a
constituição de relações de emprego público com carácter subordinado por forma
diferente das previstas no seu artigo 14.º (nomeação, contrato de provimento e
contrato de trabalho a termo certo). Mas tal questão foi expressamente
suscitada na resposta do recorrente ao parecer da representante do Ministério
Público no STJ, ao referir que a interpretação do artigo 44.º do Decreto‑Lei
n.º 427/89 inserta nesse parecer “viola o n.º 2 do artigo 47.º da Constituição
da República Portuguesa, que determina que o direito de acesso à função pública
se deve processar «em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de
concurso»”, rebatendo a seguir o argumento de que “face ao disposto no n.º 1 do
artigo 13.º dos Estatutos do ICERR, não está em causa uma relação jurídica de
emprego público, não tendo, por isso, qualquer cabimento a alegada violação
daquele ditame constitucional”, e, após citação das anotações de J. J. Gomes
Canotilho / Vital Moreira e de Jorge Miranda / Rui Medeiros ao artigo 47.º da
CRP, conclui: “integrando‑se o pessoal do ICERR na função pública, para efeitos
do artigo 47.º da Constituição, a possibilidade de conversão dos contratos com
termo em contratos sem termo viria ofender de forma intolerável o direito de
acesso em condições de igualdade previsto no artigo 47.º, n.º 2, da
Constituição”.
Tendo esta resposta ao parecer do Ministério
Público sido apresentada perante o tribunal recorrido, antes de ele ter
proferido a decisão impugnada, tal suscitação é tempestiva e adequada, sendo,
assim, de conhecer do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2.3. Como é sabido, a questão central
objecto do presente recurso já foi objecto de diversas pronúncias deste
Tribunal, embora a propósito de outras normas. No Acórdão n.º 61/2004, na
sequência dos Acórdãos n.ºs 140/2002 e 406/2003, todos proferidos em sede de
fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade e tendo por objecto a
questão da admissibilidade da aplicação do regime do contrato individual de
trabalho, designadamente quanto à conversão dos contratos de trabalho a termo em
contratos sem termo, expendeu‑se:
“6.1. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a
jurisprudência constitucional
O mencionado n.º 2 do artigo 47.º da CRP
preceitua o seguinte:
Artigo 47.º
Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública
1. (...)
2. Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em
condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.
A questão do direito de acesso à função pública e da regra do
concurso foi recentemente analisada pelo já citado Acórdão n.º 406/2003,
relativo ao Instituto Nacional da Aviação Civil, com argumentação que se reitera
e que conduz à emissão de declaração de inconstitucionalidade.
Como se afirmou no Acórdão n.º 683/99 (Diário da República, II
Série, n.º 28, de 3 de Fevereiro de 2000, pág. 2351):
«Entre nós, retira‑se do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição,
como concretização do direito de igualdade no acesso à função pública, um
direito a um procedimento justo de recrutamento e selecção de candidatos à
função pública, que se traduz, em regra, no concurso (embora não um direito
subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação – assim, v. recentemente o
Acórdão n.º 556/99).
Este não pode, por outro lado, ser procedimentalmente
organizado, ou decidido, em condições ou segundo critérios discriminatórios,
conducentes a privilégios ou preferências arbitrárias, pela sua previsão ou pela
desconsideração de parâmetros ou elementos que devam ser relevantes (cf.,
recentemente, o Acórdão n.º 128/99, que fundou no artigo 47.º, n.º 2, da
Constituição, embora com votos de vencido quanto à sua aplicação ao caso, um
julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 36.º, alínea c), da Lei
n.º 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que, para a candidatura a Juiz do
Tribunal de Contas, em concurso curricular, não considerava o exercício durante
três anos de funções de gestão em sociedades por quotas).
É certo que o direito de acesso previsto no artigo 47.º, n.º
2, não proíbe toda e qualquer diferenciação, desde que fundada razoavelmente em
valores com relevância constitucional – como exemplos pode referir‑se a
preferência no recrutamento de deficientes ou na colocação de cônjuges um junto
do outro (assim G. Canotilho/V. Moreira, Constituição..., cit., pág. 265).
Poderá discutir‑se se do princípio consagrado no artigo 47.º, n.º 2, resulta,
como concretização dos princípios de igualdade e liberdade, que os critérios de
acesso (em regra, de decisão de um concurso) tenham de ser exclusivamente
meritocráticos, ou se pode conceder‑se preferência a candidatos devido a
características diversas das suas capacidades ou mérito, desde que não importem
qualquer preferência arbitrária ou discriminatória – assim, por exemplo, o
facto de serem oriundos de uma determinada região, ou de terem outra
característica (por exemplo, uma deficiência) reputada relevante para os fins
prosseguidos pelo Estado.
Seja como for, pode dizer‑se que a previsão da regra do
concurso, associada aos princípios da igualdade e liberdade no acesso à função
pública, funda uma preferência geral por critérios relativos ao mérito e à
capacidade dos candidatos (de «princípio da prestação» fala a doutrina alemã –
v., por exemplo, Walter Leisner, «Das Leistungsprinzip», in idem, Beamtentum,
Berlim, 1995, pág. 273 e seguintes –, sendo certo, contudo, que o respectivo
texto constitucional é, como vimos, explicitamente mais exigente).
E o concurso é justamente previsto como regra por se tratar do
procedimento de selecção que, em regra, com maior transparência e rigor se
adequa a uma escolha dos mais capazes – onde o concurso não existe e a
Administração pode escolher livremente os funcionários não se reconhece, assim,
um direito de acesso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits., anotação
XI; sobre o fundamento do procedimento concursal, v. também Ana Fernanda Neves,
Relação jurídica de emprego público, cit., págs. 147 e seguintes).
Assim, para respeito do direito de igualdade no acesso à
função pública, o estabelecimento de excepções à regra do concurso não pode
estar na simples discricionariedade do legislador, que é justamente limitada
com a imposição de tal princípio. Caso contrário, este princípio do concurso –
fundamentado, como se viu, no próprio direito de igualdade no acesso à função
pública (e no direito a um procedimento justo de selecção) – poderia ser
inteiramente frustrado. Antes tais excepções terão de justificar-se com base em
princípios materiais, para não defraudar o requisito constitucional (assim Gomes
Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.; Ana F. Neves, ob. cit., págs. 153‑4).»
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão n.º
368/2000 (Diário da República, I Série‑A, n.º 277, de 30 de Novembro de 2000,
pág. 6886). E, anteriormente, no Acórdão n.º 53/88 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 11.º vol., pág. 303 e seguintes) já se expressara o seguinte
entendimento, relativamente ao n.º 2 do artigo 47.º da CRP:
«Como decorre do seu próprio enunciado, este preceito
compreende três elementos: a) o direito à função pública, não podendo nenhum
cidadão ser excluído da possibilidade de acesso, seja à função pública em
geral, seja a uma determinada função em particular, por outro motivo que não
seja a falta dos requisitos adequados à função (v. g., idade, habilitações
académicas e profissionais); b) a regra da igualdade e da liberdade, não
podendo haver discriminação nem diferenciações de tratamento baseadas em
factores irrelevantes, nem, por outro lado, regimes de constrição atentatórios
da liberdade; c) regra do concurso como forma normal de provimento de lugares,
desde logo de ingresso, devendo ser devidamente justificados os casos de
provimento de lugares sem concurso.»
E, neste mesmo acórdão, ainda se acrescentou que «não existe
aqui nenhuma garantia de igualdade quando o provimento depende decisivamente de
uma escolha discricionária do serviço» e que «é precisamente contra o poder de
os serviços escolherem livremente o seu pessoal que se dirigem os princípios
constitucionais da igualdade e do concurso no acesso à função pública».
Ainda quanto à questão do direito de acesso à função pública e
da regra do concurso, no já citado Acórdão n.º 683/99 afirmou‑se igualmente que
«visando assim o concurso possibilitar o exercício do próprio direito de acesso
em condições de igualdade, a sua dispensa não pode deixar, como se afirmou, de
se basear em razões materiais – isto é, designadamente, em razões relevantes
para o cargo para o qual há que efectuar uma escolha (assim, por exemplo, para a
escolha de pessoal dirigente, para o qual poderá eventualmente revelar‑se
adequada a selecção sem concurso). Considerando esta necessidade de
justificação material da postergação da regra do concurso não pode, pois,
tirar‑se qualquer argumento do facto de o concurso não ser previsto
imperativamente pela Constituição como único meio de acesso à função pública».
Este Acórdão n.º 683/99 firmou, pois, o entendimento segundo o
qual a postergação da regra de concurso carece de uma justificação material,
entendimento esse que não foi questionado nos votos de vencido a ele apostos.
Próxima da apreciação da justificação material da postergação
do concurso, situa‑se a argumentação desenvolvida pelo Acórdão n.º 556/99
(Diário da República, II Série, n.º 63, de 15 de Março de 2000, pág. 4987).
Neste acórdão discutiu‑se a questão da conformidade constitucional do disposto
na alínea a) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 22.º do Decreto‑Lei n.º 46/88, de 11 de
Fevereiro, através do qual o legislador permitiu o ingresso nos quadros do
Ministério da Defesa Nacional a pessoal que, à data de 31 de Dezembro de 1987,
não tendo a qualificação legal de funcionário, quisesse obtê‑la; e, a propósito
de tal questão, afirmou‑se no citado aresto:
«No entanto, o direito de acesso à função pública não é um
direito de exercício incondicionado.
O n.º 2 do artigo 47.º da Constituição estabelece a regra do
concurso público, que será realizado sempre que as necessidades de
preenchimento de lugares de quadro se verificarem. Este concurso é uma forma de
selecção de candidatos, em função das aptidões demonstradas, não se podendo
afirmar, à partida, o direito subjectivo de qualquer dos candidatos à
contratação.
Da norma constitucional também não decorre uma exigência
absoluta de realização de concurso, em todos os casos, para o acesso à função
pública.
O artigo 6.º do Decreto‑Lei n.º 41/84, de 3 de Fevereiro
(diploma que aprova instrumentos de mobilidade nos serviços da Administração
Pública), proíbe, como regra, que, nos casos de criação ou alteração de quadros
de pessoal, se estabeleçam ‘promoções automáticas ou reclassificações de
pessoal’ (alínea a)) ou ‘integração directa em lugares de quadro a pessoal que
não tenha a qualidade de funcionário ou que, sendo agente, não desempenhe
funções em regime de tempo completo, não se encontre sujeito à disciplina,
hierarquia e horário do respectivo serviço e conte menos de três anos de
serviço ininterrupto’ (alínea b)).
Esta norma é uma concretização do imperativo constitucional do
recurso ao concurso público para preenchimento de lugares nos quadros da
função pública, em atenção, precisamente, ao respeito pela igualdade de
oportunidades dos candidatos e à transparência nas relações jurídicas
administrativas.
O artigo 22.º do Decreto‑Lei n.º 46/88 surge como uma
derrogação a este regime. Derrogação, porém, que, como se demonstrou, obedece
a imperativos de interesse público e à qual subjaz um critério objectivo, não
incompatível com a Constituição. A desigualdade no tratamento legislativo das
situações, ou seja, na fixação dos critérios de acesso aos quadros de
funcionários do Ministério da Defesa Nacional, tem uma base
constitucionalmente aceitável, que justifica a excepção à regra da realização do
concurso público.»
6.2. O n.º 2 do artigo 47.º da CRP e a celebração de contratos
individuais de trabalho
A primeira linha de argumentação da resposta do
Primeiro‑Ministro assenta na ideia de que o n.º 2 do artigo 47.º se destina à
função pública, interpretando esta expressão no sentido de a limitar ao
universo dos elementos ao serviço da Administração Pública a que corresponda o
qualificativo de funcionário público, com exclusão dos agentes não
funcionários e dos demais trabalhadores da Administração Pública não
funcionários nem agentes.
Seguindo, uma vez mais, a argumentação desenvolvida no Acórdão
n.º 406/2003, recordar‑se‑á que uma solução intermédia parece ser defendida por
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando referem (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 264, nota VIII ao artigo
47.º):
«A definição constitucional do conceito de função pública
suscita alguns problemas, dada a diversidade de sentidos com que as leis
ordinárias utilizam a expressão e dada a pluralidade de critérios (funcionais,
formais) defendidos para a sua caracterização material. Todavia, não há razões
para contestar que o conceito constitucional corresponde aqui ao sentido amplo
da expressão em direito administrativo, designando qualquer actividade exercida
ao serviço de uma pessoa colectiva pública (Estado, região autónoma, autarquia
local, instituto público, associação pública, etc.), qualquer que seja o regime
jurídico da relação de emprego (desde que distinto do regime comum do contrato
individual de trabalho), independentemente do seu carácter provisório ou
definitivo, permanente ou transitório.»
No entanto, Vital Moreira, mais tarde, viria a pronunciar‑se
em sentido mais amplo (Projecto de lei‑quadro dos institutos públicos,
Relatório Final e Proposta de Lei‑Quadro, Grupo de Trabalho para os Institutos
Públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro
de 2001, n.º 4, pág. 50, nota ao artigo 45.º), adoptando uma posição que tem
também sido defendida pelo Tribunal Constitucional, ao ponderar que:
«No entanto, mesmo quando admissível o regime do contrato de
trabalho, nem a Administração Pública pode considerar‑se uma entidade patronal
privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores comuns.
No que respeita à Administração, existem princípios
constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de
«gestão privada», ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam‑se a
necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da
igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé
(artigo 266.º, n.º 2, da Constituição), todos eles com especial incidência na
questão do recrutamento do pessoal.
Além disso, estabelecendo a Constituição que ‘todos os
cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e
liberdade, em regra por via de concurso’ (CRP, artigo 47.º, n.º 2), seria
naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adopção do regime de
contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e
recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito
laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a
observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.»
Estas últimas considerações afiguram‑se inteiramente
procedentes, principalmente quando, como é o caso, o regime laboral do
contrato individual de trabalho se reporta a um instituto público que mais não é
que um serviço público personalizado.
Com efeito, a exigência constitucional de «acesso à função
pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso»
apresenta duas vertentes. Por um lado, numa vertente subjectiva, traduz um
direito de acesso à função pública garantido a todos os cidadãos; por outro
lado, numa vertente objectiva, constitui uma garantia institucional destinada a
assegurar a imparcialidade dos agentes administrativos, ou seja, que «os
trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras
entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público» (n.º 1
do artigo 269.º da CRP). Na verdade, procedimentos de selecção e recrutamento
que garantam a igualdade e a liberdade de acesso à função pública têm também a
virtualidade de impedir que essa selecção e recrutamento se façam segundo
critérios que facilitariam a ocupação da Administração Pública por cidadãos
exclusiva ou quase exclusivamente afectos a certo grupo ou tendência, com o
risco de colocarem a mesma Administração na sua dependência, pondo em causa a
necessidade de actuação «com respeito pelos princípios da igualdade, da
proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé» (n.º 2 do artigo
266.º da CRP).
Esta perspectiva é particularmente importante quando se trate
de recrutamento e selecção de pessoal para entidades que exerçam materialmente
funções públicas, como acontece com o IPCR (cf., supra, 4.1).
A afirmação anterior não é desmentida pelo facto de o pessoal
técnico superior e o pessoal destinado a desempenhar funções especializadas em
investigação laboratorial para a conservação e restauro, ao contrário do
restante pessoal do Instituto, ser admitido em regime de contrato individual
de trabalho (artigo 22.º, n.º 1, do Decreto‑Lei em análise). De facto, e se bem
que se possa admitir que aquele regime se poderá adaptar melhor à situação do
pessoal técnico especializado (embora não de todo o pessoal técnico superior),
em virtude da sazonalidade e especificidade das tarefas que é chamado a
desempenhar, não podemos ignorar que, no decurso da sua actividade, também
poderá estar em causa o exercício de poderes de autoridade estadual,
nomeadamente, os poderes de superintendência e de certificação acima
mencionados.
Consequentemente, as atribuições e a natureza do IPCR, bem
como as funções cometidas aos seus órgãos e agentes justificam inteiramente que
ao recrutamento e selecção do seu pessoal, ainda que sujeito ao contrato
individual de trabalho, se apliquem as garantias de liberdade e igualdade de
acesso que se encontram fixadas no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
Ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal
sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a
realização de um concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer
que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de
procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de
acesso.
A recente Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro (Lei quadro dos
institutos públicos), no seu artigo 34.º, sob a epígrafe Pessoal, veio
justamente dispor:
«1 – Os institutos públicos podem adoptar o regime do contrato
individual de trabalho em relação à totalidade ou parte do respectivo pessoal,
sem prejuízo de, quando tal se justificar, adoptarem o regime jurídico da função
pública.
2 – O pessoal dos institutos públicos estabelece uma relação
jurídica de emprego com o respectivo instituto.
3 – O recrutamento do pessoal deve, em qualquer caso, observar
os seguintes princípios:
a) Publicitação da oferta de emprego pelos meios mais
adequados;
b) Igualdade de condições e oportunidades dos candidatos;
c) Fundamentação da decisão tomada.
4 – Nos termos do artigo 269.º da Constituição, a adopção do
regime da relação individual de trabalho não dispensa os requisitos e limitações
decorrentes da prossecução do interesse público, nomeadamente respeitantes a
acumulações e incompatibilidades legalmente estabelecidas para os funcionários
e agentes administrativos.
(...).»
Tratou‑se da generalização para todos os institutos públicos
de soluções que já vinham sendo adoptadas pelo legislador, como, por exemplo, no
Decreto‑Lei n.º 59/2002, de 15 de Março, que criou o Instituto Geográfico
Português (vide o n.º 6 do artigo 46.º dos Estatutos por ele aprovados), e no
Decreto‑Lei n.º 96/2003, de 7 de Maio, que criou o Instituto do Desporto de
Portugal (vide o artigo 33.º dos Estatutos por ele aprovados), o que demonstra
que não existe qualquer incompatibilidade entre o regime do contrato individual
de trabalho e a definição de garantias de liberdade e igualdade no acesso ao
exercício de funções nos institutos públicos.
Em suma: as normas em causa, na medida em que prevêem uma
plena liberdade de selecção e recrutamento do pessoal técnico superior e do
pessoal técnico especializado do instituto público em apreço, sem estabelecerem
qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos
princípios da liberdade e da igualdade de acesso à função pública, colidem com
o preceituado no n.º 2 do artigo 47.º da CRP.
6.3. A eventual existência de justificação material para um
regime de excepção
Como vimos, sustentou o Primeiro‑Ministro que existem aqui
específicas razões materiais que se apresentam como bastantes para se admitir a
dispensa do concurso público. Tais razões consistiriam na especial natureza,
pontualidade, sazonalidade e especificidade das funções a desempenhar,
conjugadas com as exigências da preservação, defesa e valorização da herança
patrimonial.
Ainda que assim seja, estas razões não colhem no que respeita
ao pessoal técnico superior, uma vez que estão em causa tarefas de gestão de
recursos humanos, biblioteca e documentação, arquivo, consultadoria jurídica e
informática, para os quais não se vislumbram quaisquer especificidades ou
sazonalidade justificativas da dispensa de concurso público (veja-se o mapa
anexo à Portaria n.º 288/2003, de 3 de Abril, que aprova o quadro de pessoal do
IPCR – cf., supra, 4.2).
Já quanto ao pessoal técnico especializado em conservação e
restauro (superior ou não), se as razões alegadas pelo Primeiro‑Ministro se
podem apresentar como procedentes para a opção pelo regime do contrato
individual de trabalho, e eventualmente mesmo para se não prever que o
recrutamento e selecção devessem ser efectuados por concurso público, o que
elas não podem justificar é a ausência de quaisquer regras e procedimentos
tendentes a assegurar que o acesso tenha lugar com efectivas garantias de
liberdade e igualdade. Efectivamente, as qualidades técnicas que deverão
constituir critério essencial de selecção do pessoal técnico especializado são,
em grande medida, objectivamente avaliáveis, pelo que não se compreende a
postergação daquelas regras.
De facto, se é verdade que este Tribunal definiu o
entendimento segundo o qual a regra do concurso pode ser postergada, caso exista
uma justificação material, uma vez que o n.º 2 do artigo 47.º apenas determina
que o recurso ao concursos deve ter lugar em regra, já se não descortinam nem
credencial constitucional nem, no caso vertente, quaisquer interesses que
pudessem determinar a eventual existência de motivos conducentes ao
afastamento de um recrutamento baseado em critérios que assegurem a liberdade e
igualdade de acesso à função pública.”
Estas considerações são inteiramente
transponíveis para o caso do presente recurso, sendo inquestionável que o
instituto em causa está investido de poderes de autoridade (cf., designadamente,
o n.º 3 do artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 237/99), e não se vislumbra nenhuma
razão válida, nomeadamente face à especificidade das funções desempenhadas, para
subtrair todo o seu pessoal, e especificamente a categoria profissional da ora
recorrida, à regra do concurso.
Não se ignora que, entre a matéria de facto
provada, consta que “a autora foi contratada na sequência de um processo de
avaliação de currículos dos candidatos, com entrevista de selecção” (n.º 8). No
entanto, para além de o critério normativo seguido no acórdão recorrido (e é
sobre esse que há-de incidir o juízo de constitucionalidade deste Tribunal) ter
considerado de todo irrelevante a existência, ou não, de procedimentos
objectivos de selecção do pessoal a contratar, o certo é aquele facto provado é
insuficiente (por nada revelar, por exemplo, sobre a prévia publicitação da
existência da vaga) para dar por adquirido que o procedimento em concreto
seguido tenha efectivamente garantido a todos os potenciais candidatos o acesso
ao cargo “em condições de liberdade e igualdade”. Competirá, naturalmente, ao
tribunal recorrido, ao proceder à reformulação da sua decisão, e se tal lhe for
processualmente permitido, apurar se, em concreto, estas condições terão sido
respeitadas, hipótese em que, adoptando então – como lhe é lícito – critério
normativo distinto do ora julgado inconstitucional, não está à partida excluída
a possibilidade de vir a julgar não inconstitucional esse novo critério.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do
artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída da
conjugação dos artigos 41.º, n.º 4, do Decreto‑Lei n.º 184/89, de 2 de Junho,
44.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, e 13.º dos Estatutos
do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR,),
aprovados pelo Decreto‑Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, interpretados no sentido
de permitirem a contratação de pessoal sujeito ao regime jurídico do contrato
individual de trabalho, designadamente na parte em que permite a conversão de
contratos de trabalho a termo em contratos sem termo, sem imposição de
procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta
o acesso em condições de liberdade e igualdade; e, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso,
determinando‑se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o
precedente juízo de inconstitucionalidade.
Custas pela recorrida, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos