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Processo nº 299/07
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é
recorrente o Instituto de Segurança Social, IP e recorrido A., foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 7 de Dezembro de 2006.
2. Em 22 de Junho de 1992, o recorrido requereu o pagamento retroactivo de
contribuições para a Segurança Social relativas a períodos de exercício efectivo
de actividade profissional no Entreposto Comercial de Moçambique entre Janeiro
de 1969 e Junho de 1978, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 380/89, de 27
de Outubro. Por ofício de 21 de Agosto de 1992, foi-lhe comunicado o deferimento
do requerido e enviadas guias para liquidação do montante das contribuições
(624. 780$00), em 60 prestações mensais.
Em 6 de Abril de 2000, foi determinado o arquivamento do processo, com
fundamento na circunstância de o pagamento das contribuições em causa não se ter
iniciado no período estabelecido.
Em 14 de Março de 2001, o recorrido requereu que lhe fosse facultada a
possibilidade de proceder neste momento e de uma só vez ao pagamento das
contribuições correspondentes ao período de exercício de actividade profissional
em Moçambique. Por ofício de 8 de Maio de 2001, foi informado que o processo já
havia sido arquivado, por despacho do Senhor Chefe de Repartição de 6 de Abril
de 2000, em virtude do mesmo ter prescrito.
Em 25 de Março de 2002, o recorrido requereu ao Secretário de Estado da
Segurança Social a reapreciação do processo e da solicitação formulada em 14 de
Março de 2001, para pagamento da totalidade das contribuições e respectivos
juros de mora de molde a poder fazer contar, para o efeito de reforma, o período
de permanência em Moçambique, que lhe fora já deferido. Em 17 de Junho de 2002,
foi informado do indeferimento do requerido.
Em 18 de Agosto de 2004, o recorrido requereu, junto do Centro Distrital de
Solidariedade e Segurança Social, que lhe fosse permitido “o pagamento de
contribuições relativas ao período de exercício efectivo de actividade
profissional por conta da Sociedade Entreposto Comercial de Moçambique S.A.R.L.,
em Maputo, de Janeiro de 1969 a Junho de 1978 (ou data da independência de
Moçambique), sendo o montante global dessas contribuições, acrescidos dos juros
de mora contados até Março de 2001, liquidados para efeito do pagamento em uma
só prestação”.
Não tendo obtido resposta, o recorrido intentou, em 18 de Maio de 2005, acção
administrativa especial contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social
tendente “à prática de acto ilegalmente omitido, de atribuição do direito ao
pagamento retroactivo de contribuições correspondentes ao período de exercício
de actividade profissional, por conta da Sociedade Entreposto Comercial de
Moçambique SARL, em Maputo, de Janeiro de 1969 a Junho de 1978”. Por acórdão de
9 de Janeiro de 2006, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra negou
provimento ao pedido formulado.
3. O recorrido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central
Administrativo Sul. Este Tribunal, pela decisão agora recorrida, revogou o
acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e condenou o Instituto de
Solidariedade e Segurança Social de Lisboa à prática, pelo Director do Centro
Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa, do acto ilegalmente
omitido, que autorize A. a efectuar o pagamento de contribuições relativas ao
período de exercício efectivo de actividade profissional por conta da sociedade
“Entreposto Comercial de Moçambique, S.A.R.L”, em Maputo, de Janeiro de 1969 a
Junho de 1978, sendo o montante global dessas contribuições acrescidos dos juros
de mora contados até Março de 2001, liquidados para o efeito do pagamento de uma
só prestação.
Nesta decisão, o Tribunal Central Administrativo Sul recusou a aplicação do
artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/89, de 27 de Outubro, com fundamento em
inconstitucionalidade, nos seguintes termos:
«Embora numa primeira linha de análise se possa considerar que a Administração
estava vinculada a praticar tal acto [o acto que determinou o arquivamento do
processo por falta de pagamento das contribuições em causa] por força do
princípio da legalidade, a verdade é que o acto impugnado não poder deixar de
ser considerado ofensivo do conteúdo essencial de um direito fundamental, sendo,
portanto, para efeitos contenciosos, um acto nulo, susceptível de reacção a todo
o tempo.
Conclui-se, pois, pela não caducidade do direito à impugnação do acto em causa.
Isto posto, passemos à questão seguinte, que é a da natureza temporária do Dec.
Lei nº 380/89, de 27 de Outubro e suas consequências.
Como se viu, o Acórdão recorrido entendeu que, sendo tal diploma de natureza
temporária, não poderia o mesmo estender os seus efeitos para além do prazo que
o próprio expressamente definira. E que, ocorrida a sua caducidade, já não seria
invocável a inconstitucionalidade que dele poderia derivar.
Salvo o devido respeito, entendemos que o facto de uma lei ser temporária não a
exime da formulação de um juízo de inconstitucionalidade, inclusive no tocante à
própria norma que prevê a temporalidade, neste caso o artigo 24º do Dec. Lei nº
380/89, de 27 de Outubro.
Este diploma revela preocupações de protecção social, na medida em que veio
permitir o pagamento retroactivo de contribuições relativas a períodos de
exercício efectivo de actividade profissional por conta de outrem, visando
reconhecidas situações de desprotecção, relativas à contagem do tempo de
trabalho nas ex-colónias para efeitos de protecção social, à semelhança do que
sucedeu com o Dec. Lei nº 335/90, de 29 de Outubro (cfr. Ac. STA de 4.07.01,
Rec. 473/75; Ac. TCA de 13.05.2004, Rec. 11216/02, in “Antologia de Acórdãos do
Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Central Administrativo”, Ano VII,
nº 3, p. 259 e seguintes).
Todavia, o legislador, ao impor uma limitação temporal de cinco anos para o
exercício do direito ao pagamento retroactivo de contribuições, usando de um
critério cuja racionalidade se não vislumbra, veio atentar contra o disposto no
artigo 63º nº 4 da C.R.P., impedindo a consideração total do tempo de serviço
prestado pelo trabalhador.
Ora, como justamente refere o recorrente, citando o Acórdão nº 411/99, de 29 de
Junho, do Tribunal Constitucional, o legislador, ao impor a aludida cláusula de
caducidade, acabou por criar restrições ao direito social antes reconhecido,
esquecendo a obrigação de garantir a contagem integral do tempo de serviço.
Por se tratar de uma restrição excessiva e desproporcionada, julgamos ter sido,
igualmente, violado o disposto no artigo 18º nº 3 da Constituição, segundo o
qual, “As lei restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir
carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a
extensão e alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais”. –
Acresce que o regime de protecção social instituído pelo Decreto-Lei 380/89, de
27 de Outubro não pode contrariar o direito ao aproveitamento total do tempo de
serviço prestado, nem os direitos à universalidade e integralidade (arts. 63 nº
1, 3 e 4 da C.R.P), estando, naturalmente, sujeito à proibição do retrocesso
social. Pode dizer-se, de acordo com o alegado pelo recorrente, que o Estado,
após reconhecer o direito social em causa, constitui-se, igualmente, no dever de
se abster de atentar contra a concretização do mesmo, sob pena de atentar contra
o princípio da proibição do retrocesso social. (cfr. Jorge Miranda, “Manual de
Direito Constitucional”, IV, 3ª edição, Coimbra, 2000, p. 397). Também por esta
via o artº 24º do diploma em análise se mostra inconstitucional (cfr. Jorge
Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, Coimbra, 2005, Tomo
I, notas ao artigo 63º).
Finalmente, é notório que o artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/[8]9 viola o
princípio da igual[dade] desde o momento em que entrou em vigor, na medida em
que discrimina os interessados que não conseguiram reunir condições, até 1 de
Dezembro de 1994, para efectuar o pagamento das contribuições devidas, como é o
caso do recorrente (cfr. art. 13º nº 2 da C.R.P.). Ou seja, estamos perante uma
situação em que o legislador reconhece um direito social, mas logo de seguida o
retira aos que não dispõem a curto prazo das contrapartidas contributivas para o
exercício do mesmo, mediante a imposição de uma cláusula de caducidade cuja
justificação racional se não antevê, apenas se dizendo que o prazo concedido é
“suficiente”.
Conclui-se pois, que o artigo 24º do Dec. Lei nº 380/89, de 27 de Outubro, viola
o princípio da igualdade, ao tratar desigualmente os interessados que não
reuniram condições para pagar as contribuições retroactivas até 1 de Dezembro de
1994, discriminando deste modo os que mais deveria proteger.
E, deste modo, parece-nos claro que a norma citada viola o disposto nos arts
13º, 18º nº 3 e 63º nºs. 1º, 3º e 4º da Constituição, devendo, por isso, ser
desaplicado com fundamento no artº 204º da Constituição.
Razão pela qual se conclui que o A., ora recorrente, mantém o direito de
efectuar o pagamento retroactivo das contribuições referentes ao período de
exercício de actividade profissional desenvolvida em Moçambique, de Janeiro de
1969 a Junho de 1978».
4. O Instituto de Segurança Social, IP recorreu desta decisão para o Tribunal
Constitucional, para apreciação da inconstitucionalidade do artigo 24º do
Decreto-Lei nº 380/89, de 27 de Outubro. Notificado para alegar, formulou as
seguintes conclusões:
«a) O D.Lei nº 380/89, 27.10, que era uma lei temporária, caducou em 1.12.94,
nos termos do seu artº 24º, e não é inconstitucional, por não violar quaisquer
direitos ou princípios constitucionais;
b) Os direitos constitucionais assegurados aos cidadãos não excluem o
preenchimento de terminados pressupostos definidos, os quais não sendo
cumpridos, determinam, necessariamente, que os emergentes direitos não possam
ser assegurados na sua plenitude;
c) O direito á segurança social e o direito á contagem de todo o tempo de
serviço para efeito de pensão, não impede que esta contagem não esteja
condicionada, designadamente, ao pagamento atempado de contribuições;
d) O prazo de vigência de 5 anos, estabelecido no artº 24º do D.Lei nº 380/89,
não é desajustado ou intoleravelmente curto, com vista aos fins visados, e não
viola o núcleo essencial dum direito fundamental, mas apenas condiciona
temporalmente, a valorização dum benefício social;
e) Este diploma garantia a plenitude da igualdade, durante a sua vigência, a
todos aqueles que satisfizessem os seus pressupostos;
f) Ao recorrido foi assegurada a possibilidade de valorização dum benefício
social, satisfeito que fosse um pressuposto estabelecido, o pagamento de
contribuições, possibilidade que não foi aproveitada».
5. O recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1ª Viola a Constituição, devendo por isso ser desaplicado, o artigo 24.º do
Decreto-Lei n.º 380/89, de 27 do Decreto-Lei n.º 380/89, de 27 de Outubro, que,
ao estabelecer o prazo de caducidade de cinco anos para a vigência do próprio
diploma, fez caducar nesse termo o direito ali reconhecido de pagamento
retroactivo de contribuições para a Segurança Social relativas a períodos de
exercício efectivo de actividade profissional desacompanhado de carreira
contributiva no âmbito da Segurança Social.
2ª A questão da inconstitucionalidade do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 380/89,
de 27 de Outubro, coloca-se num plano estritamente normativo.
3ª Ao restringir no tempo a possibilidade de qualquer interessado beneficiar do
pagamento retroactivo das contribuições, o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º
380/89, de 27 de Outubro, é inconstitucional por violação do direito fundamental
de aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, previsto
no artigo 63.º, n.º 4, da Constituição.
4ª Na verdade, o preceito que estabelece a caducidade priva de importantes
segmentos da carreira contributiva e, eventualmente, do completamento de prazos
de garantia, para efeitos de segurança social, todos quantos, nos termos deste
diploma, prestaram trabalho por conta de outrem nos territórios das ex-colónias
mas que, por razões de ordem económica e/ou social, não tenham podido aceder ao
esquema de pagamento retroactivo de contribuições dentro do prazo
arbitrariamente fixado.
5ª Pelo que, se o conteúdo da norma constitucional postula um direito ao
aproveitamento total (e não meramente parcial!) do tempo de serviço prestado
pelo trabalhador, a norma que determina a caducidade do diploma corresponde a
uma verdadeira e própria ablação do direito para todos aqueles que, durante a
curta vigência de cinco anos do diploma, não tivessem reunido as condições
económicas para procederem ao referido pagamento, vindo a poder fazê-lo mais
tarde.
6ª A outro tempo, o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 380/89, de 27 de Outubro, é
ainda inconstitucional porquanto o prazo aí estipulado foi fixado de forma
arbitrária, postergando os direitos à universalidade e à integralidade da
protecção social (artigo 63.º, n.os 1 e 3, da Constituição), em articulação com
o princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 2.º da Constituição).
7ª Por último, através da referida limitação no tempo, prevista no artigo 24.º
do Decreto-Lei n.º 380/89, de 27 de Outubro, o legislador reinstaurou, quanto a
alguns cidadãos - entre os quais o ora Recorrido - a situação de desprotecção,
relativa à contagem do tempo de trabalho nas ex-colónias para efeito de
segurança social, que ele próprio se propusera eliminar graças às medidas ali
introduzidas.
8ª Ora, se a sua revogação simples (isto é, não substitutiva) se encontra
proscrita por força do princípio da proibição de retrocesso social - reconhecido
pelas jurisprudências constitucional e administrativa, bem como pela doutrina
dominante -, o mesmo acontece com a sua caducidade, designadamente quando
prevista no próprio diploma, pois, se assim não fosse, estariam abertas as
portas a fraudes à Constituição.
9ª O artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 380/89, de 27 de Outubro, viola também o
princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 2, in fine, da Constituição), por ter
discriminado, sem qualquer fundamento racional, quem não estava em condições
económicas de pagar retroactivamente as contribuições dentro do prazo aí
estipulado.
10ª Enfim, o mencionado inciso viola ainda o princípio da igualdade, por
discriminar quem se encontra na situação do A. em face dos cidadãos abrangidos
pelo Decreto-Lei n.º 335/90, de 29 de Outubro, os quais, por força da revogação
do seu artigo 4.º pelo Decreto-Lei n.º 465/99, de 5 de Novembro, poderão vir
requerer um benefício equivalente sem dependência do prazo».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O Tribunal Central Administrativo Sul recusou, com fundamento em
inconstitucionalidade, a aplicação do artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/89, de 27
de Outubro, por violação do disposto nos artigos 13º, 18º, nº 3, e 63º, nºs 1, 3
e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O artigo cuja aplicação foi recusada tem a seguinte redacção:
«Artigo 24º
Vigência
O presente diploma entra em vigor em 1 de Dezembro de 1989 e caduca passados
cinco anos sobre essa data».
2. A disposição legal acabada de transcrever insere-se no diploma que permite o
pagamento retroactivo de contribuições para a Segurança Social, segundo uma
modalidade que apresenta “natureza bastante extraordinária e conjuntural”, que
se caracteriza “pelo facto de as contribuições nunca terem sido devidas, mas a
lei ter aceitado o pagamento como se o tivessem sido” (Ilídio das Neves, Direito
da Segurança Social – Princípios fundamentais numa análise prospectiva, Coimbra
Editora, 1996, p. 438).
No âmbito da avaliação da experiência de aplicação do Decreto-Lei nº 259/77, de
26 de Dezembro, e do Decreto-Lei nº 124/84, de 18 de Abril, verificou-se que o
sistema de segurança social não enquadrava as “situações de trabalhadores que
haviam exercido actividade profissional nos antigos territórios ultramarinos, em
que não chegaram a vigorar regimes de segurança social, excepto em sectores
restritos das ex-colónias”, o que “determinou a necessidade de proceder à
modificação do regime de pagamento retroactivo de contribuições, ao alargamento
do seu âmbito de aplicação e ao aperfeiçoamento dos procedimentos a cumprir
pelos interessados” (cf. Exposição de motivos do Decreto-Lei nº 380/89).
A par da modalidade de pagamento retroactivo de contribuições, regulada naquele
diploma de 1984, que se caracteriza “pelo facto de as contribuições terem sido
devidas, ter entretanto ocorrido a prescrição, mas a lei autorizar
posteriormente o seu pagamento voluntário” (Ilídio das Neves, ob. cit., p. 437 e
s.), passou, então, a prever-se “a possibilidade de, mediante o pagamento
retroactivo de contribuições referentes a períodos de exercício de actividade
profissional por conta de outrem, mesmo que, nalguns casos, anteriores à Lei nº
2115, de 18 de Julho de 1962, a qual estabeleceu as bases de reforma da
Previdência Social, quando a tais períodos não tenha correspondido carreira
contributiva, serem completados os prazos de garantia das prestações diferidas
ou a carreira contributiva, tendo em vista a melhoria quantitativa daquelas
prestações” (cf. Exposição de motivos e artigos 1º, 2º, 3º e 5º do Decreto-Lei
nº 380/89). Dada a natureza extraordinária e conjuntural da medida, foi fixado
um período de vigência de cinco anos no artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/89
(entre 1 de Dezembro de 1989 e 1 de Dezembro de 1994), dentro do qual seria,
então, requerido o pagamento retroactivo de contribuições relativas a períodos
de actividade a que não tenha correspondido pagamento das mesmas, ainda que as
contribuições respeitem a períodos não abrangidos por qualquer regime de
previdência ou de segurança social (artigo 3º do mesmo diploma). Prazo que,
segundo a Exposição de motivos do diploma, se afigurou suficiente para permitir
que os interessados pudessem usufruir da medida.
3. O tribunal recorrido recusou a aplicação deste artigo 24º, por entender,
entre o mais, que “o legislador, ao impor uma limitação temporal de cinco anos
para o exercício do direito ao pagamento retroactivo de contribuições, usando de
um critério cuja racionalidade se não vislumbra, veio atentar contra o disposto
no artigo 63º nº 4 da C.R.P., impedindo a consideração total do tempo de serviço
prestado pelo trabalhador”. O que violaria, ainda, os artigos 18º, nº 3, e 63º,
nºs 1 e 3, da Constituição, bem como a proibição do retrocesso social.
3.1. O nº 4 do artigo 63º – introduzido pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de
Julho, correspondendo-lhe então o nº 5 do mesmo artigo – dispõe que todo o tempo
de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice
e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido
prestado, consagrando um direito fundamental de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias, ao qual se aplica o regime específico dos direitos,
liberdades e garantias, por força da extensão operada pelo artigo 17º da CRP (no
sentido desta qualificação, cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 411/99 e
467/2003, Diário da República, II Série, de 10 de Março de 2000 e de 19 de
Novembro de 2003 e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada,
Tomo I, anotação ao artigo 63º, ponto III).
No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 366/2006 (Diário da República, II
Série, de 17 de Agosto de 2006) salienta-se que este Tribunal já teve
oportunidade de se pronunciar sobre o sentido e alcance do nº 4 do artigo 63º da
CRP:
«Fê‑lo, primeiro, de modo incidental, no Acórdão n.º 1016/96, onde, apesar de
não ter tomado conhecimento do objecto do recurso, em que estava em causa uma
pretensa recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma
do artigo 80.º, n.º 1, do Estatuto da Aposentação, teceu algumas considerações
sobre o sentido do então n.º 5 do artigo 63.º da CRP, que interessa reter: “é
uma norma portadora de um sentido inovador (que naturalmente não teria se se
limitasse a remeter para a lei), consubstanciado no aproveitamento integral do
tempo de trabalho para efeitos de pensões de velhice e invalidez, o que implica
o direito de acumulação dos tempos de trabalho que tenham sido prestados, mesmo
que em regimes distintos, respeitado que seja o limite máximo de 36 anos”.
Por outro lado, no Acórdão n.º 411/99, o Tribunal Constitucional julgou
inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação,
desenvolvendo para o efeito uma argumentação que começou por analisar a génese e
o alcance da norma constitucional do artigo 63.º, n.º 4, da CRP:
“A aprovação da referida norma constitucional foi fruto de uma proposta do
Partido Socialista, no âmbito da revisão constitucional de 1989, a qual gerou
grande controvérsia. Justificando a alteração proposta, afirmou um Deputado
socialista que «a ponte que hoje falta entre os vários sectores de actividade
deve ser lançada no sentido de todo o tempo de trabalho contribuir – nos termos
da lei – para o cômputo das pensões de aposentação ou reforma. Não vemos razão
para que um tipo de trabalho seja, neste domínio, sobrevalorizado em relação a
outro» (Diário da Assembleia da República, II Série, n.º 23‑RC, de 7 de Julho de
1988, pág. 654).
Um outro Deputado do grupo parlamentar socialista pronunciou‑se no sentido
de «dever ser evidente que uma norma deste tipo não implica homogeneidades
lesivas, por exemplo, dos trabalhadores da função pública que têm regime
próprio. Esta norma é uma norma de máximo aproveitamento – aquilo a que se
poderia chamar em bom rigor uma norma de economia de tempos, mas não uma norma
que impulsione ou vincule a homogeneidade de regimes, designadamente
homogeneidade lesiva da situação específica dos trabalhadores da função
pública».
Afirmou‑se ainda na discussão parlamentar que a Constituição passaria a
admitir, após a alteração, uma intercomunicabilidade de regimes de aposentação
(entre a função pública e o sector privado). «A questão é que [a
intercomunicabilidade] faz‑se em termos que permitem manter a identidade de
dois regimes; os regimes são diferentes, pode‑se transitar de um regime para o
outro, há aproveitamento integral do tempo de serviço prestado e, digamos, dos
tempos não só de trabalho como dos tempos equivalentes que tenham sido vividos
num regime e noutro. Não há perda de tempo, por assim dizer, é essa a
preocupação fundamental. Daqui não deve emanar nenhuma preocupação de
homogeneidade de regimes, isto é, de unificação, por esta razão, de regimes. Mas
é preciso deixar isso claro.» (Diário da Assembleia da República, II Série, n.º
81-RC, de 9 de Março de 1989, pág. 2388).
A alteração constitucional de 1989 pretendeu, assim, promover um
aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador,
independentemente do sistema de segurança social a que ele tenha aderido, e
desde que tenha efectuado os descontos legalmente previstos.
É ainda hoje essa a intenção, que se encontra claramente manifestada no
n.º 4 do artigo 63.º da Constituição (versão de 1997): «Todo o tempo de
trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e
invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido
prestado.»”».
Por outro lado, este Tribunal conclui naquele aresto de 2006 – decidindo não
declarar a inconstitucionalidade da norma, reportada aos n.ºs 1 e 2 do artigo
80.º do Estatuto da Aposentação, segundo a qual, quando o aposentado, que tenha
voltado a exercer funções públicas, findo este novo período, opte pela
aposentação correspondente ao mesmo período, não é de considerar, para cômputo
da nova pensão, o tempo de serviço anterior à primeira aposentação – que:
«(…) o princípio do aproveitamento integral do tempo de trabalho, consagrado no
artigo 63.º, n.º 4, da CRP, não foi directamente concebido para situações que,
pela sua natureza, possuem uma configuração excepcional, em que se permite a um
trabalhador aposentado voltar a exercer funções e, no exercício destas,
acumular a pensão que vinha auferindo e uma parcela do vencimento correspondente
às novas funções.
Antes com ele se pretendeu designadamente evitar, como resulta da discussão
parlamentar referida no relatório do Acórdão n.º 411/99, que, no cômputo da
pensão de aposentação que um trabalhador receba ao concluir a sua vida laboral,
existam parcelas de tempo de serviço que não sejam contabilizadas. Trata‑se,
portanto, de um princípio que não foi gizado para situações, como a que ora se
nos depara, em que é concedida ao trabalhador uma opção que se situa à margem da
lógica global do sistema e que representa inequivocamente um plus em face dessa
lógica, e sim para aquelas situações (a que chamaríamos comuns, ou regra) em
que, ao calcular a pensão de um trabalhador no termo do seu período normal de
trabalho, há que considerar diversos sub-períodos em que aquele cotizou para
distintos sistemas de pensões. Em tal caso, o preceito constitucional em
questão impede que no cômputo do tempo de trabalho a proceder seja
desconsiderado qualquer daqueles sub-períodos, assim se realizando, para efeitos
de cálculo de pensão, o aproveitamento integral do tempo de trabalho».
Com efeito, é de concluir que a alteração constitucional de 1989 pretendeu
promover um aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador,
independentemente do sistema de segurança social a que ele tenha aderido, e
desde que tenha efectuado os descontos legalmente previstos (cf. Diário da
Assembleia da República, II Série, Números 23-RC, de 7 de Julho e 81-RC, de 9 de
Março de 1989, Diário da Assembleia da República, I Série, Número 75, de 5 de
Maio de 1989 e José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Publicações
Europa-América, 1989, p. 130). Assinalando Gomes Canotilho/Vital Moreira que o
número acrescentado em 1989 “pretende salientar o princípio do aproveitamento
total do tempo de trabalho para efeitos de pensões de velhice e invalidez,
acumulando‑se os tempos de trabalho prestados em várias actividades e
respectivos descontos para os diversos organismos da segurança social”
(Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, anotação ao
artigo 63º, ponto VIII).
3.2. A norma em apreciação nos presentes autos insere-se num diploma que permite
o pagamento retroactivo de contribuições relativas a períodos de exercício
efectivo de actividade profissional por conta de outrem ou por conta própria, em
que os interessados não apresentam carreira contributiva no âmbito do sistema da
segurança social (artigo 1º, nº 1). Nomeadamente para os efeitos previstos no
artigo 2º, permite o aproveitamento do tempo de trabalho, ao qual não tenha
correspondido o pagamento de contribuições, por as mesmas não serem então
devidas, o que extravasa o âmbito de protecção do nº 4 do artigo 63º da CRP, à
luz da interpretação que vem sendo feita deste preceito (cf. supra ponto 3.1.).
O artigo 24º insere-se num diploma legal que, diferentemente do sustentado na
decisão recorrida, não concretiza o direito constitucionalmente consagrado
naquele número do artigo 63º da Constituição. Pelo contrário, o Decreto-Lei nº
380/89 amplia o âmbito de protecção do direito ao aproveitamento integral do
tempo de trabalho tal como é definido pela norma constitucional (sobre
legislação ampliadora do alcance dos direitos fundamentais, cf. Vieira de
Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 19763, Almedina,
p. 229 e s.).
Para o efeito de calcular as pensões de velhice e de invalidez, o artigo 63º, nº
4, da CRP o que garante é o aproveitamento integral do tempo de trabalho,
independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado, ou seja,
independentemente do sistema de protecção social para o qual o trabalhador tiver
contribuído. A norma constitucional não abrange situações que, por razões
conjunturais, são legalmente configuradas de forma extraordinária, aceitando o
pagamento de contribuições que nunca foram devidas, como se o tivessem sido.
Logo, o artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/89 não viola o disposto no artigo 63º,
nº 4, da CRP – e, consequentemente, o artigo 18º, nº 3, e a proibição do
retrocesso social –, quando estabelece que é de cinco anos o período de vigência
do diploma que permite o pagamento retroactivo de contribuições relativas a
períodos de exercício efectivo de actividade profissional em que os interessados
não apresentam carreira contributiva no âmbito do sistema de segurança social.
3.3. Por outro lado, o artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/89, ao fixar o prazo de
cinco anos para ser requerido o pagamento retroactivo de contribuições que não
eram devidas, permitindo o aproveitamento do tempo de trabalho ao qual não
correspondeu qualquer carreira contributiva, em nada contende quer com o
princípio da universalidade – “Todos têm direito à Segurança Social” –
consagrado no nº 1 do artigo 63º da CRP; quer com o princípio da integralidade –
“O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice,
invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras
situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para
o trabalho” – estipulado no nº 3 do mesmo artigo.
4. O Tribunal Central Administrativo Sul recusou a aplicação do artigo 24º do
Decreto-Lei nº 380/89, com fundamento também na violação do disposto no nº 2 do
artigo 13º da CRP. Segundo a decisão recorrida, aquele artigo “viola o princípio
da igualdade desde o momento em que entrou em vigor, na medida em que discrimina
os interessados que não conseguiram reunir condições, até 1 de Dezembro de 1994,
para efectuar o pagamento das contribuições devidas, como é o caso do
recorrente”.
A norma que é objecto de apreciação, ao determinar que o diploma onde se insere
entra em vigor em 1 de Dezembro de 1989 e caduca passados cinco anos sobre essa
data, fixa um período de cinco anos (de 1 de Dezembro de 1989 a 1 de Dezembro de
1994) para a apresentação do requerimento para pagamento retroactivo das
contribuições em causa (cf. artigos 3º e 9º e ss. do Decreto-Lei nº 380/89 e
artigos 2º, 5º, 10º e 11º do Decreto Regulamentar nº 37/90, de 27 de Novembro).
Por outro lado, o artigo 17º do Decreto-Lei nº 380/89, ao prever que o pagamento
das contribuições correspondentes aos períodos a considerar para a retroacção
pode ser feito em prestações mensais de igual montante e em número não superior
a 60, fixa um período máximo de cinco anos para o pagamento, entretanto
deferido, das contribuições para a Segurança Social.
Significa o exposto que o período legalmente fixado para o pagamento das
contribuições em causa podia ir para além de 1 de Dezembro de 1994, já que esta
data se reporta exclusivamente à data limite para apresentação do requerimento
para pagamento retroactivo das contribuições. De resto, no caso em apreço,
sucedeu que este pagamento foi, inicialmente, requerido no período legalmente
fixado – em 22 de Julho de 1992 – tendo sido dada ao interessado a possibilidade
de pagar as respectivas contribuições, em prestações mensais, durante cinco anos
contados após a notificação do ofício do Centro Regional de Segurança Social de
Lisboa que lhe comunicou o deferimento do requerido, datado de Agosto de 1992.
O regime descrito, designadamente porque permite o pagamento das contribuições
em prestações mensais num período que pode ir até cinco anos, iniciado só depois
de ser notificado o despacho que defira o requerimento, garante até, por esta
flexibilidade, que os interessados não sejam prejudicados em razão da situação
económica. A cada um é garantida a possibilidade de afeiçoar a forma de
pagamento das contribuições – de uma só vez ou em prestações mensais de igual
montante em número não superior a 60 – à respectiva situação económica.
Assim sendo, o artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/89 não desrespeita o nº 2 do
artigo 13º da CRP, ao estabelecer que é de cinco anos o período de vigência
deste diploma, não se vislumbrando, por outro lado, que o legislador tenha
ultrapassado qualquer outro limite constitucional na sua actividade conformadora
da ordem jurídica.
5. Importa, pois, concluir que o artigo 24º do Decreto-Lei nº 380/89, de 27 de
Outubro, não viola o disposto nos artigos 13º, 18º, nº 3, e 63º, nºs 1, 3 e 4,
da Constituição da República Portuguesa.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Julho de 2007
Maria João Antunes
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração em anexo.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
A divergência que manifesto no presente caso reporta-se unicamente ao plano de
relevância da norma, que constitui objecto do recurso, na razão de decidir do
acórdão recorrido.
Na verdade, apesar das considerações tecidas nessa decisão sobre a
desconformidade constitucional da norma constante do artigo 24º do Decreto-Lei
n.º 380/89 de 27 de Outubro ('O presente diploma entra em vigor em 1 de Dezembro
de 1989 e caduca passados cinco anos sobre essa data'), o certo é que para a
condenação da entidade requerida à prática do acto, e consequente revogação da
decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra foi, a meu ver,
determinante – na lógica do próprio aresto aqui recorrido – a decisão quanto à
'não caducidade do direito à impugnação do acto', por força do alínea d) do n.º
2 do artigo 133º do Código de Processo Administrativo, bem como o julgamento
quanto à preexistência do direito invocado pelo requerente, por verificação dos
seus requisitos substantivos, e a constatação de que este direito, que se
cristalizara na esfera jurídica do requerente, não fora afectado pela natureza
temporária do diploma, decorrente do decurso do respectivo prazo de vigência.
Nestes termos, pronunciei-me pelo não conhecimento do recurso.
Carlos Pamplona de Oliveira