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Processo n.º 269/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Coimbra, em que figura como recorrente A., LDA. e como
recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, foi interposto recurso, em 25 de Janeiro de
2007, de Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra [cfr. requerimento de fls.
263 dos autos], que julgou improcedente o recurso de decisão do 2º Juízo
Criminal de Coimbra que, por sua vez, julgou improcedente o recurso de decisão
de condenação em coima, por cometimento de contra-ordenação, proferida pela
Câmara Municipal de Coimbra, enquanto autoridade administrativa competente.
2. Convidada para tal pelo (então) relator (fls. 273), a recorrente veio
posteriormente indicar (fls. 280) quais as normas que pretendia ver apreciadas
por este Tribunal, por as reputar de inconstitucionais:
i) Artigos 4º, n.º 1, e 43º do Regulamento Municipal de
Publicidade de Coimbra [de ora em diante identificado por RMPC], aprovado pela
respectiva Câmara Municipal, em 18 de Abril de 2004, e pela respectiva
Assembleia Municipal, em 12 de Maio de 2004, e publicitado pelo Edital n.º
119/2004;
ii) Artigo 46º, n.º 2 do RMPC;
iii) Artigos 1º e 10º, n.º 1, alínea a) e b), da Tabela Anexa ao
RMPC.
Notificada para tal, a recorrente veio a produzir as alegações escritas que
constam de fls. 299 a 304-verso, tendo concluído nos seguintes termos:
«1 — OS ARTS. 4º-1 E 43º DO RMP, SÃO INCONSTITUCIONAIS E ILEGAIS NA PARTE EM QUE
SE REFEREM À “DIFUSÃO” DE MENSAGENS PUBLICITÁRIAS, POIS A LEI 97/88 APENAS
CONFERIU COMPETÊNCIA AOS ÓRGÃOS MUNICIPAIS PARA CONDICIONAR A LICENCIAMENTO A
“AFIXAÇÃO OU INSCRIÇÃO” DAQUELAS MENSAGENS PUBLICITÁRIAS.
2— As NORMAS DO RMP QUE TRIBUTAM A MERA PASSAGEM PELO TERRITÓRIO MUNICIPAL DE
UNIDADES MÓVEIS PUBLICITÁRIAS, NÃO SONORAS, NÃO ESTABELECEM UMA TAXA, MAS UM
VERDADEIRO IMPOSTO, PELO QUE ESTÃO TAMBÉM FERIDAS DE INCONSTITUCIONALIDADE
ORGÂNICA E FORMAL, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTS. 103º-2 E 165º-1 I) CRP,
3— PARA ALÉM DE TAMBÉM O ESTAREM DE INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL, POR VIOLAÇÃO
DO DIREITO FUNDAMENTAL DE DESLOCAÇÃO, CONSAGRADO NO ART. 44º CRP, E DO PRINCIPIO
DE PROIBIÇÃO DE DUPLA TRIBUTAÇÃO
4— AO OBRIGAREM OS VEÍCULOS DE EMPRESAS SEDIADAS FORA DA RESPECTIVA
CIRCUNSCRIÇÃO MUNICIPAL AO PAGAMENTO DE UMA TAXA MÍNIMA MENSAL POR UM ACTO
ISOLADO, POR UM DIA DE PERMANÊNCIA OU PELA MERA PASSAGEM EM TRÂNSITO PELA ÁREA
DO MUNICÍPIO, AS CORRESPONDENTES NORMAS DO GMP SÃO INCONSTITUCIONAIS E ILEGAIS
POR VIOLAÇÃO, NOMEADAMENTE, DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE E DO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE.
5— A DOUTA DECISÃO RECORRIDA VIOLOU POR ERRO DE INTERPRETAÇÃO, NOMEADAMENTE, O
DISPOSTO NA LEI 97/88 DE 17 AGO, OS ARTS. 13º, 44º, 103º, 165º-1 I) E 241º DA
CRP, E OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA DUPLA TRIBUTAÇÃO.»
3. Em 17 de Abril de 2007, os presentes autos foram redistribuídos à actual
Relatora, por ter cessado funções junto deste Tribunal o anterior Relator.
4. Em 25 de Maio de 2007, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal
Constitucional formulou as seguintes contra-alegações (cfr. fls. 305 a 308):
«O presente recurso vem interposto pela arguida A., Ldª, do Acórdão proferido
pela Relação de Coimbra em recurso contraordenacional, interposto da decisão da
respectiva Câmara Municipal que sancionou com coima o cometimento de múltiplas
contra-ordenações, consubstanciadas na violação reiterada do dever — resultante
dos artigos 2º, nº 1, 3º, nº 1, alínea a) e 4º, nº 1, do Regulamento Municipal
de Publicidade — de licenciar previamente qualquer difusão de mensagens
publicitárias, mesmo que feita através da sua afixação em viaturas que circulam
em espaços públicos.
Procedendo à delimitação do tipo e objecto do recurso, importa começar por notar
que não cabe obviamente ao Tribunal Constitucional sindicar da invocada
“ilegalidade” das normas regulamentares questionadas pela recorrente, por
violação do preceituado na Lei nº 97/88: tal questão não integra nenhum dos
casos de “ilegalidade qualificada”, previsto, nomeadamente, na alínea f) do nº 1
do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, cujos pressupostos se não
verificam.
Relativamente ao objecto do recurso fundado na alínea b) de tal preceito legal,
é manifesto que o Acórdão recorrido não aplicou à dirimição do caso as normas
regulamentares atinentes à “tributação” do pedido de licenciamento municipal,
aliás totalmente omitido pela recorrente: como se afirma expressamente, a p.
257, “nos autos reage a recorrente, não ao licenciamento, cuja necessidade o
Tribunal Constitucional nunca contestou ou à exigência de uma “taxa”, mas sim à
aplicação de uma coima — sanção contraordenacional — decorrente de a arguida não
ter procedido ao licenciamento municipal, nunca se pondo em crise a legitimidade
da CMC para fiscalizar e impor coimas. Dito de outra forma, o que poderá ser
inconstitucional não é necessidade de licenciamento ou a aplicação de uma coima
pela sua falta. O que poderá ser inconstitucional é a exigência de uma “taxa”
nesse processo de licenciamento, conquanto necessário, quando a mesma “taxa”, na
prática, seja equiparável a um imposto.
Ora, não se mostrando controvertida, nos presentes autos, qualquer “tributação”
da recorrente, é manifesto que o Acórdão recorrido apenas tratou de dirimir, em
função das normas regulamentares aplicáveis, a questão da exigência de
licenciamento municipal de certa forma de difusão de mensagens publicitárias (em
veículos) e a qualificação como contraordenação do comportamento omissivo da
arguida, que não requereu de todo tal licenciamento.
Feita esta advertência e delimitação do objecto do recurso — é manifesta a
improcedência da argumentação da recorrente — não se vendo minimamente qual
possa ser o princípio constitucional violado com a exigência de licenciamento
municipal da difusão, em espaços públicos, de mensagens publicitárias. Na
verdade, a situação dos autos — em que se não controverte a obrigação de
pagamento, por parte da recorrente, de qualquer prestação pecuniária à Câmara
Municipal — nada tem de análogo com os casos em que a jurisprudência
constitucional tem entendido que se não pode qualificar como “taxa” camarária o
tributo que incide sobre o exercício da publicidade levado a cabo, em exclusivo,
em espaços privados (cf. Acórdão nº 558/98, incidente sobre uma situação de
publicidade em veículos). É que — se a recorrente pretendesse efectivamente
discutir a admissibilidade de tal “tributação” - teria o ónus de requerer o
licenciamento municipal, exigido pelas normas regulamentares que integram o
objecto do recurso, impugnando a decisão que o condicionasse ao pagamento ou
exigência de certas quantias pecuniárias; o que naturalmente não poderá
legitimamente fazer é — só porque entende que tais “taxas”, eventualmente
devidas, são legal ou constitucionalmente inadmissíveis — optar por se abster de
peticionar o dito licenciamento, subtraindo-se à fiscalização cometida à
autarquia em tal sede.
Deste modo — e enquadrando-se o referido licenciamento municipal no âmbito das
atribuições de polícia das autarquias locais em matéria de urbanismo e ambiente
— não se vê — não estando em discussão, no caso dos autos, o pagamento de
qualquer “tributo” como contrapartida do mesmo — que ocorra violação de qualquer
norma ou preceito constitucional.
Note-se, aliás, que — como sustenta recentemente Cardoso da Costa (Homenagem a
José Guilherme Xavier de Basto, Coimbra, 2006, pag. 562 e segs.) sempre
importaria destrinçar as “taxas” que incidissem sobre o licenciamento prévio de
certas actividades, legitimamente sujeitas à fiscalização dos municípios, e os
que fossem devidos pelas meras “renovações” da licença — só estas podendo
efectivamente colocar dúvidas fundadas no plano da constitucionalidade: na
verdade — e como ali se sustenta — só estas últimas, não pressupondo qualquer
nova “actividade” de licenciamento e respeitando unicamente ao exercício,
durante um novo período temporal, da actividade publicitária licenciada,
estariam efectivamente desprovidas da “sinalagmaticidade” que é inerente ao
conceito jurídico-constitucional de “taxa”.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1°
As normas, constantes do Regulamento Municipal de Publicidade de Coimbra, que
sujeitam a prévio licenciamento municipal a difusão de mensagens publicitárias
em locais públicos ou destes perceptíveis, incluindo a publicidade móvel afixada
em veículos, não violam, em si mesmas, qualquer preceito ou princípio
constitucional.
2º
Na verdade, tal actividade de fiscalização ou polícia do município insere-se de
pleno nas suas tarefas de defesa do urbanismo e ambiente — não sendo
inconstitucional a qualificação e sancionamento, no plano contraordenacional, do
comportamento omissivo, que leva a cargo tais actividades sem obtenção do
referido licenciamento.
3º
Termos em que deverá improceder o presente recurso».
5. Por terem sido levantados obstáculos ao conhecimento do objecto do recurso
nas contra-alegações apresentadas por parte do Ministério Público junto deste
Tribunal, foi a recorrente notificada do despacho da ora Relatora, de 5 de Julho
de 2007, para se pronunciar sobre eles, ao abrigo do artigo 704º, nº 1 e 2, do
CPC, aplicável ex vi artigo 69º da LTC (cfr. fls. 309), tendo vindo aos autos
dizer o seguinte (cfr. fls. 311 e 312):
«Quanto ao objecto do recurso fundado na alínea b) do art. 70° da LTC, não é
verdade que “o Acórdão recorrido não tenha aplicado à dirimição do caso as
normas regulamentares atinentes à ‘tributação’ do pedido de licenciamento
municipal”, e muito menos que o mesmo tenha sido “totalmente omitido pela
recorrente”, conforme vem referido nas judiciosas contra-alegações do M°P°.
Salvo o devido respeito, que muito é, a afirmação extraída de p. 257 dos autos,
e que, por sua vez, já fora aí extraída do Ac. TC de 2003.03.14, de que “a
recorrente não reage ao licenciamento (...) ou à exigência de uma ‘taxa’, mas
sim à aplicação de uma coima”, não corresponde minimamente à verdade, e só se
explica por ter sido reproduzida daqueles arrestos, completamente
descontextualizada.
Outrossim,
Conforme resulta das suas conclusões nºs 1, 2, 3 e 4 e de todas as alegações que
a recorrente já produziu no processo, as questões controvertidas nos autos são,
precisamente, a necessidade de licenciamento da mera “difusão” de mensagens
publicitárias e a tributação dessa actividade, e não a questão da sanção
contraordenacional que apenas decorre daquelas.
Sendo inconstitucionais as normas que exigem o licenciamento e a respectiva
tributação, como defende, é óbvio que a recorrente não estava obrigada a
requerer tal licenciamento nem esse seu comportamento omissivo pode ser
qualificado como contraordenação.
Inexistem, assim, quanto a esta questão, quaisquer obstáculos que obstem ao
conhecimento do recurso.».
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. O conhecimento por este Tribunal, em sede de recurso, de questões relativas à
inconstitucionalidade de normas pressupõe sempre que aquelas tenham sido
efectivamente aplicadas pela decisão recorrida. Esta aplicação efectiva não se
basta com o facto de a decisão recorrida ter tomado em linha de conta tais
comandos normativos, em sede de apreciação e fundamentação, mas exige que as
normas em causa tenham constituído o critério decisivo que presidiu ao juízo
formulado, ou seja, a “ratio decidendi”.
Sucede que, conforme bem nota o Ministério Público, a decisão recorrida versa
sobre matéria contraordenacional, tendo a recorrente apenas impugnado
jurisdicionalmente (fls. 105 a 114) a coima única, em cúmulo jurídico, que lhe
foi aplicada pela Câmara Municipal de Coimbra, “por violação do artigo 4º, n.º 1
do Regulamento Municipal da Publicidade, (…) nos termos do n.º 1 do seu artigo
53º” (cfr. fls. 72 dos autos recorridos).
O artigo 4º, n.º 1 do RMPC (cfr. Edital n.º 119/2004, disponível in
http://www.cm-coimbra.pt/editais/ed119_2004.doc) determina que:
“1 – A afixação, inscrição ou difusão de mensagens publicitárias depende de
prévio licenciamento da Câmara Municipal de Coimbra”.
Por sua vez, o artigo 53º, n.º 1 do RMPC determina ainda que:
“1 – A afixação, inscrição ou difusão de mensagens que não tenha sido precedida
de licenciamento constitui contra-ordenação punível com coima de 150 € a 1500 €
para pessoas singulares e de 300 € a 3000 € para pessoas colectivas”.
Daqui decorre que a decisão administrativa proferida nos autos de
contra-ordenação, bem como as decisões jurisdicionais que sobre aquela versaram
não aplicaram efectivamente as normas contidas nos artigos 43º e 46º, n.º 2 do
RMPC e 1º e no artigo 10º, n.º 1, alínea a) e b) da Tabela Anexa ao RMPC e que
constituem o objecto processual fixado pelo requerimento de recurso apresentado
pelo recorrente (fls. 276).
Apesar de o recorrente ter sempre, por opção processual sua circunscrito a
impugnação da coima aplicada à questão de determinar se o pagamento de licença
fixado por regulamento municipal é jurídico-constitucionalmente aceitável, certo
é que aquele jamais pagou qualquer quantia a título de contra-prestação de uma
licença, mas apenas a título de coima, por cometimento de ilícito
contra-ordenacional.
Como o recorrente nunca colocou em causa a constitucionalidade do n.º 1 do
artigo 53º do RMPC, que serviu de fundamentação jurídica à aplicação da coima, o
Tribunal Constitucional encontra-se impedido, por força do artigo 79º-C da LTC,
de conhecer de tal questão.
7. Além disso, também não se verifica qualquer questão de “ilegalidade”, para
efeitos da aplicação da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, visto que a
alegada contradição entre as disposições constante do regulamento municipal em
causa e os artigos 1º, 4º e 11º da Lei n.º 97/88 não se configura como uma
contradição entre as leis de valor reforçado (artigo 112º, n.º 3 da CRP) e as
demais leis ordinárias.
8. Quanto à alegada inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 4º do RMPC, desde
já se diga que a exigência de licenciamento não se afigura apta a colocar em
causa, de modo desproporcionado, qualquer direito fundamental, designadamente, a
liberdade de iniciativa privada (artigo 61º da CRP) ou mesmo o direito de
propriedade privada, na vertente de não privação de parte do património com
vista ao pagamento de licença (artigo 62º da CRP).
Com efeito, o n.º 1 do artigo 4º do RMPC limita-se a reproduzir o sentido
normativo vertido no n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, que –
através do seu artigo 4º – fixa, de modo inequívoco, os critérios a atender para
proteger outros direitos e valores constitucionalmente consagrados, como o
direito à integridade física de terceiros (que não devem ser prejudicados pela
afixação de propaganda publicitária), a liberdade de circulação, ou ainda o
direito à qualidade de vida ou o direito ao ambiente, entre outros. Deste modo,
ainda que possa restringir direitos análogos a direitos, liberdades e garantias,
não se afigura que a imposição de licenciamento configure uma restrição
desproporcionada daqueles, conforme exigido pelo n.º 2 do artigo 18º da CRP.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no artigo 79º-C da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98,
de 26 de Fevereiro, decide-se:
i) Não conhecer do recurso interposto, na parte em que se
refere aos artigos 43º e 46º, n.º 2 do Regulamento Municipal de Publicidade de
Coimbra e aos artigos 1º e 10º, n.º 1, alínea a) e b), ambos da Tabela Anexa ao
mesma Regulamento;
ii) Negar provimento ao recurso interposto, na parte em que se
refere ao artigo 4º, n.º 1 do Regulamento Municipal de Publicidade de Coimbra,
não julgando inconstitucional a referida norma.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos
termos do artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 15 de Outubro de 2007
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão