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Processo n.º 638/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. O recorrente A. vem, ao abrigo do disposto no artigo
78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar para a conferência da decisão sumária, de 13 de Outubro de 2003, que decidiu, ao abrigo do n.º 1 desse artigo 78.º-A, não conhecer do recurso.
Nessa decisão sumária desenvolveu-se a seguinte argumentação:
“1. A. interpôs recurso para este Tribunal Constitucional do despacho do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, de 19 de Junho de 2003, que determinou o arquivamento dos autos, por o recorrente, ao qual não foi concedido o benefício do apoio judiciário, não ter pago a taxa de justiça devida. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), pretendendo o recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade, por pretensa violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 5, e 268.º, n.ºs 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da «norma do n.º 2 do artigo 26.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, com a interpretação de que não há formação de acto tácito, ainda que a decisão sobre o pedido de apoio judiciário seja tomada e notificada para além do prazo referido no seu n.º 1», e a inconstitucionalidade, por pretensa violação do artigo 20.º, n.º 1, da CRP, da «norma contida no artigo 20.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, com a interpretação de que para beneficiar do apoio judiciário não basta demonstrar-se que os rendimentos estão contidos nos valores legalmente estabelecidos para as presunções de insuficiência económica, devendo atender-se também ao património do requerente». Ambas as questões de inconstitucionalidade teriam sido suscitadas nas conclusões b), j) e k) do requerimento de impugnação da decisão administrativa.
O recurso foi admitido pelo juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, decisão que, porém, não vincula este Tribunal Constitucional (artigo
76.º, n.º 3, da LTC).
E, de facto, entende-se que o presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2. Como se disse, o presente recurso vem interposto com invocação da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Ora, é sabido que – para além de objecto do recurso de constitucionalidade só poder ser a questão de inconstitucionalidade de normas
(ou de interpretações normativas), e não a eventual violação da Constituição por decisões judiciais ou administrativas em si mesmas consideradas – o recorrente tem de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido, em regra antes de ele proferir a decisão recorrida, e que essa suscitação há-de ser feita «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de ele estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
No presente caso, o recorrente não suscitou, na aludida impugnação
(cf. fls. 44 a 46 destes autos), qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente a das normas (ou de determinadas interpretações das normas) dos artigos 20.º e 26.º, n.º 2, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
O que o recorrente suscitou, na conclusão b) da dita impugnação, foi a pretensa violação dos princípios da legalidade e celeridade previstos nos artigos 3.º do Código do Procedimento Administrativo e 20.º, n.º 5, da CRP, pelo facto de a decisão administrativa impugnada ter sido tomada e notificada após o prazo legal. E na conclusão j) dessa mesma peça processual o que o recorrente suscitou foi a violação, «pela decisão ora sindicada», dos dispositivos contidos nos artigos 20.º, n.º 2, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 20.º, n.º 1, da CRP. A conclusão k) é meramente remissiva para as duas conclusões anteriormente citadas.
Isto é: a violação da Constituição foi directamente imputada ao acto administrativo impugnado e não a qualquer norma ou interpretação normativa, que, aliás, o recorrente não identifica em termos minimamente perceptíveis.
Não tendo as questões de inconstitucionalidade sido adequadamente suscitadas, impõe-se a conclusão da inadmissibilidade do recurso, sem necessidade de apurar se, além disso, as interpretações normativas que o recorrente agora pretende ver apreciadas foram as concretamente acolhidas na decisão recorrida.”
2. A reclamação deduzida é do seguinte teor:
“A douta decisão sustenta o não conhecimento do recurso no facto de a questão da inconstitucionalidade das normas não ter sido suscitada de forma adequada e, por isso, ser inadmissível.
Salvo o devido respeito, que é muito, o recorrente discorda desse entendimento, porquanto é perceptível que a questão da inconstitucionalidade arguida na alínea b) das conclusões impugnativas, corolário da anterior, se refere preventivamente à violação, por a interpretação feita ser contrária à invocada formação de acto tácito que colidiria capitalmente com o princípio consignado no artigo 20.°, n.º 5, da CRP. Aí se diz que «A decisão administrativa que ora se impugna judicialmente mostra-se tomada, e notificada, após o prazo legal previsto no artigo 26.º, n.º 1, da LAJ, pelo que está o benefício tacitamente deferido e concedido (idem, n.° 2), como se fez menção no processo judicial respectivo». E, se dúvidas houvesse na alegada imperceptibilidade da redacção ali feita pelo próprio impugnante – ao abrigo do disposto no artigo 28.°, n.º 1, da Lei n.º
30-E/2000, de 20 de Dezembro (LAJ) – que não tem obrigação de ter especiais conhecimentos técnicos do direito, estariam elas saldadas pelo claro teor do requerimento de fls. 131 e seguintes, onde expressamente se diz que «A não ser julgado assim, reiteram-se as inconstitucionalidades da diferente interpretação dos artigos 20.°, n.º 2, e 26.°, n.° 1, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, além do artigo 3.° do CPA, inicialmente invocadas nas alíneas b), j) e k) das conclusões da impugnação judicial referida», e pelo teor do recurso interposto para esse Tribunal onde consta «pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 26.° da Lei n.º 30-E/2000, de
20 de Dezembro, com a interpretação de que não há formação de acto tácito, ainda que a decisão sobre o pedido de apoio judiciário seja tomada e notificada para além do prazo referido no seu n.º 1».
Ou seja, é indubitável, na perspectiva do recorrente, que ao homem médio se tornará perceptível que a interpretação dada ao n.º 2 do artigo 26.° da LAJ, considerando que o incumprimento do prazo estabelecido no seu n.º 1 não
é bastante para a formação do acto tácito, viola o direito do cidadão ao acesso
à justiça célere, sendo que o padrão dessa celeridade se encontra estabelecido na lei.
Ainda assim, sempre a falta imputada ao recorrente daria lugar à notificação para os efeitos do disposto no artigo 75.º, n.º 5, da LTC.
Por outro lado, a douta decisão em apreço é omissa quanto ao recurso interposto da interpretação feita do artigo 20.°, n.º 2, da LAJ, quando atribui ao património e não apenas aos rendimentos o valor padrão para aferir a invocada insuficiência económica do recorrente para suportar as despesas do pleito judicial a que se referia, interpretação essa que viola o imperativo contido no n.º 1 do artigo 20.º da CRP.
Termos em que requer a reapreciação da douta decisão com a consequente admissão do recurso.”
3. Notificado desta reclamação, o representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional apresentou a seguinte resposta:
“1.º – A presente reclamação é manifestamente infundada – sendo evidente que o reclamante não cumpriu o ónus de suscitar, durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso de fiscalização concreta interposto.
2.º – E sendo, nesta perspectiva, irrelevante o alegado no pedido de reforma de fls. 131, já que – como está perfeitamente assente – os incidentes pós-decisórios não são o instrumento adequado para a parte suscitar, pela primeira vez, uma questão de inconstitucionalidade que antes podia e devia ter colocado.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
4. No requerimento de interposição do presente recurso, o recorrente indicou que os locais onde teria suscitado as questões de inconstitucionalidade que pretendia ver apreciadas haviam sido, designadamente, as conclusões b), j) e k) do requerimento de impugnação da decisão administrativa (de indeferimento de concessão do benefício de apoio judiciário).
Na decisão sumária ora reclamada analisaram-se essas peças e concluiu-se que nelas não fora adequadamente suscitada nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, sendo a violação da Constituição directamente imputada ao acto administrativo de indeferimento de apoio judiciário, quer por pretensamente praticado fora do prazo legal, com violação dos princípios da legalidade e celeridade previstos nos artigos 3.º do Código do Procedimento Administrativo e 20.º, n.º 5, da CRP, quer por pretensamente ter atendido ao património, e não apenas aos rendimentos, do requerente, para avaliar da sua capacidade económica, com violação do artigo 20.º, n.º 2, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 20.º, n.º 1, da CRP. Isto é: antes de proferida a decisão recorrida, o requerente não suscitou adequadamente – em termos de o tribunal recorrido ficar obrigado a dela conhecer – nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, não identificando com o mínimo de precisão uma qualquer interpretação normativa que reputasse inconstitucional. E, naturalmente, não se vislumbra na decisão recorrida qualquer pronúncia sobre a matéria. O que vale quer para a questão da formação de deferimento tácito, quer para a questão da relevância do património do requerente para aferir da sua capacidade económica, tendo a decisão sumária reclamada abrangido expressamente as duas questões.
Vem agora o recorrente aduzir, em suma, que as questões de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciadas e que admite que não terão sido suscitadas do modo tecnicamente mais perfeito na impugnação da decisão administrativa (feita pelo próprio impugnante, que não por mandatário forense) foram arguidas, de modo explícito, no requerimento de fls. 131 e seguintes e no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Simplesmente, nem este requerimento de interposição de recurso, nem aquele requerimento, que consubstancia um pedido de reforma da decisão proferida por pretensamente ter incorrido em erro de datas, constituem momentos adequados de suscitação da questão de constitucionalidade.
Acresce que, como já se sugeria na decisão sumária ora impugnada, a decisão recorrida, quanto à formação, ou não, de deferimento tácito, não fez aplicação da interpretação normativa que o recorrente argui de inconstitucional. Segundo o recorrente, a decisão recorrida teria interpretado a norma do n.º 2 do artigo 26.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, no sentido de que “não há formação de acto tácito, ainda que a decisão sobre o pedido de apoio judiciário seja tomada e notificada para além do prazo referido no seu n.º 1”. Não foi esse, porém, o entendimento sufragado pelo tribunal recorrido; como resulta expressamente do despacho de 8 de Maio de 2003 (fls.
121), que indeferiu arguição de nulidade do despacho de 22 de Abril de 2003
(fls. 114-115), o tribunal a quo fez seu o entendimento da entidade administrativa consubstanciado nos n.ºs 9.º a 14.º da sua resposta à impugnação
(cf. fls. 31), no sentido de que, suspendendo-se a contagem do prazo para a emissão de decisão com a realização da audiência prévia do interessado (artigo
100.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo), no caso, a decisão foi emitida antes de expirado o respectivo prazo legal. Também por esta razão – não ter a decisão recorrida aplicado, quanto a este ponto, a interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo recorrente –, o presente recurso era inadmissível.
Por último, refira-se que, estando os motivos que determinaram a prolação da decisão sumária relacionados com a falta de verificação dos requisitos do recurso de constitucionalidade, e não com qualquer irregularidade de que o requerimento de interposição desse recurso padecesse, não se justificava a formulação de convite nos termos previstos no n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC.
5. Em face do exposto, sem necessidade de considerações suplementares, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 4 de Novembro de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos