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Processo n.º 468/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 6 de Novembro de 2002 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento do recurso, com o seguinte teor:
«1. Em 29 de Abril de 1980, A. interpôs, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, recurso da decisão arbitral que fixou em 1 511 350$00 a indemnização que lhe era devida como proprietária de 16 400 m2 de um prédio em
------------------, parcela, essa, expropriada por utilidade pública com vista à instalação dos depósitos de recolha e oficinas da Companhia Carris de Ferro de Lisboa. Após vicissitudes diversas, por sentença de 15 de Junho de 2001 o 2º Juízo Cível de Oeiras fixou em 291 600 000$00 o montante da indemnização, a ser actualizado de acordo com os índices de inflação publicados pelo INE para os anos de 1999 e seguintes. Inconformada ainda, a autora levou recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa, invocando desconformidades constitucionais nas suas alegações:
“Registe-se a finalizar que o DL 511/75, de 20 de Setembro, e, consequentemente, o despacho do Senhor Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, de 76.07.15, que aplicou aquele diploma, constituem actos claramente inconstitucionais, pois invadiram a esfera de atribuições do Município de Oeiras e das competências dos seus órgãos, na medida em que fizeram cessar a validade e eficácia de um acto – acordo outorgado em 73.03.01 – que era imputável à Câmara Municipal de Oeiras.
(...) O despacho do Senhor Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, de 76.07.15, caducou em 79.10.05 ex vi do DL 341/79, de 27 de Agosto, e sempre seria inconstitucional (v. art. 242º da CRP), pelo que é absolutamente inaplicável in casu.
(...) Registe-se a finalizar que o douto Tribunal a quo, tal como este douto Tribunal não se encontram vinculados ao art. 83º/2 do CE, pois, além desta norma ser inconstitucional, os Srs. Árbitros e os Srs. Peritos violaram os arts. 13º e 62º da CRP e várias disposições do CE (v. Ac. TC n.º 316/92, DR, II Série, de
93.02.18, pág. 1853; Ac. Rel. Porto de 90.10.18, CJ, 1990, IV/206).” Estas questões de inconstitucionalidade foram retomadas nas respectivas conclusões:
“(...)
6ª (...) b) Não considera o Plano de Urbanização do ---------------
(---------------) para efeitos de determinação do valor da justa indemnização
(v. artigos 13º e 62º da CRP), tanto mais que o despacho do Senhor Secretário de Estado de Habitação e Urbanismo, de 76.07.15, já tinha caducado (v. DL 341/79, de 2 de Agosto) e sempre seria inconstitucional e ilegal (v. art. 242º da CRP);
(...)
7ª Este douto Tribunal, tal como o douto Tribunal a quo, não se encontram vinculados ao art. 83º/2 do CE 76, pois, além desta norma ser inconstitucional, os Srs. Árbitros e os Srs. Peritos violaram os arts. 13º e 62º da CRP e várias disposições do CE (...);
(...)
9ª A douta sentença recorrida enferma assim de manifestos erros de julgamento, tendo violado frontalmente, além do mais, o disposto nos arts. 13º, 62º e 242º da CRP, nos arts. 27º, 28º, 29º, 32º, 33º, 83º, e 131º do CE 76, no art. 62º da Lei dos Solos, no art. 4º do DL 69/90, de 2 de Março e no DL 341/79, de 27 de Agosto.” Por acórdão de 9 de Maio de 2002, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, não se pronunciando sobre quaisquer eventuais inconstitucionalidades da sentença recorrida, do despacho do Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, do Decreto-Lei n.º 511/75, ou do artigo 83º, n.º 2, do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro.
2. Ainda insatisfeita, veio a recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação das “questões da inconstitucionalidade das normas do DL 511/75, de 20 de Setembro e, consequentemente, do despacho do Senhor Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, de 76.07.15, por consubstanciar uma forma de tutela sob [sic] actos de órgãos da administração autárquica constitucionalmente inadmissível, em clara violação do disposto no art. 242º da CRP”, e indicando, como exigido pelo n.º 2 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, a “peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade” nos seguintes termos:
“As referidas questões foram suscitadas, além do mais, nos n.ºs 10 a 13 e conclusão 6ª b) das alegações apresentadas em 2000.11.23, bem como nos n.ºs 10 a
13 e conclusão 6ª b) das alegações apresentadas em 2001.11.12”(acima reproduzidas, na parte relevante).
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3. O presente recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal
(artigo 76º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional), e, uma vez que se entende não estarem verificados os requisitos necessários para se poder dele tomar conhecimento, é de proferir decisão sumária nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
4. Reportando-nos à indicação, supra transcrita, da peça processual em que a recorrente teria suscitado a questão da inconstitucionalidade, compreende-se, desde logo, a omissão de referência à conclusão 7ª, tendo em conta que a norma do n.º 2 do artigo 83º do Código das Expropriações de 1976 não foi constitucionalmente impugnada no requerimento de interposição de recurso. Bem como se entende a omissão de referência à conclusão 9ª, uma vez que a desconformidade constitucional (e legal) foi aí referida à própria sentença, sendo certo que, como se escreveu, v.g., no Acórdão n.º 318/93 (publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1993), “no sistema português de fiscalização de constitucionalidade só podem ser objecto de recurso de constitucionalidade normas jurídicas e não as decisões judiciais elas mesmas.” Assim, as únicas questões de constitucionalidade suscitadas durante o processo e que a recorrente pretendeu submeter à apreciação deste Tribunal (embora outras houvesse que não foram levadas ao requerimento de interposição do recurso) diziam respeito ao Decreto-Lei n.º 511/75, de 20 de Setembro – que, aliás, não foi impugnado na sua conformidade constitucional nas conclusões das alegações de recurso no tribunal a quo –, e ao despacho do Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo de 15 de Julho de 1976 (publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Julho de 1976), que suspendeu a “validade do contrato de urbanização de que é titular a A.”. Acontece, porém, que nem aquele diploma nem este despacho foram invocados na decisão recorrida, e não pode concluir-se que nela tenham sido aplicados, como se passa a demonstrar.
5. Na verdade, sobre a suspensão, operada por aquele despacho, do denominado
“Plano de Urbanização do ------------------------ (------------------)”
(“integrado no contrato de urbanização celebrado entre a Câmara Municipal de Oeiras e a expropriada”, como se referiu nos quesitos), o que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa referiu foi que “não resultando da factualidade dada como assente que haja tido seguimento o denominado Plano de Urbanização do
--------------- – na qual a apelante funda o respectivo cálculo – não poderia a sentença recorrida deixar de seguir, quanto a esse ponto, a aludida avaliação pericial.” Ora, ainda que se não entenda, como a entidade expropriante, que o acórdão recorrido “recorre, apenas, a matéria factual para fundamentar a sua decisão, mormente no que concerne à existência e seguimento de tal plano (...) [tendo] apenas, na base matéria de facto alegada pela Expropriada que não se considera provada”, poderá admitir-se, com a própria expropriada, que “o despacho do Senhor Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo de 76.07.15, que ordenou a suspensão do DL 341/79, de 27 de Agosto, caducou em 79.10.01 ex vi do Decreto-Lei n.º 341/79, de 27 de Agosto que decretou, além do mais, a caducidade de todos os despachos exarados ao abrigo do DL 511/75, de 20 de Setembro, pelo que sempre seria absolutamente irrelevante in casu.” E, de um modo ou de outro – i.e., aplicando a decisão recorrida implicitamente, ou não, o dito despacho – ainda restaria, nesta parte, como obstáculo ao conhecimento do recurso, a natureza não normativa desse despacho, que corporiza, antes, um acto administrativo (no sentido de que “fica suspensa a validade do contrato de urbanização de que é titular a A.”). Conclui-se, pois, que o objecto do recurso nunca poderia incluir a apreciação da constitucionalidade do dito despacho, dado o seu teor não normativo, quaisquer que fossem as circunstâncias do caso. E que não poderia, face às circunstâncias do caso, integrar o objecto do recurso, por ele não ter sido invocado pela decisão recorrida, seja por ter sido julgado caduco (como referido pela expropriada), seja por aplicação das regras do ónus da prova (como pretende a expropriante), seja por outra razão.
6. Sobre o Decreto-Lei n.º 511/75, de 20 de Setembro, cumpre desde logo notar que “o Tribunal Constitucional tem entendido, pelo menos nos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, que a menção de todo um diploma legal não vale como identificação da norma (ou normas) requerida no n.º 1 do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82” – cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 170/92 (de que se extraiu a citação), 442/91 e 376/91 (publicados no Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1992, o primeiro, e de 2 de Abril de 1992, os outros dois). Admitindo este Tribunal que tal seja corrigido em resposta ao despacho de aperfeiçoamento previsto nos n.ºs 5 e 6 da Lei do Tribunal Constitucional, se não se recorreu a ele é, porém, porque tal não permitiria também ultrapassar o
óbice ao conhecimento do recurso nesta parte, constituindo, portanto, um acto inútil. Na verdade, sendo o referido decreto-lei – rectius, o seu artigo 2º – o suporte normativo do despacho anteriormente considerado, logo a não invocação deste despacho para fundamentar a decisão exclui a relevância do decreto-lei em que ele se fundou, sendo certo que a nenhum outro título algum dos seus treze artigos foi invocado ou aplicado durante o processo. Ou seja: ainda que se admitisse a possibilidade de, em resposta a um despacho de aperfeiçoamento, vir a recorrente a identificar a norma, ou normas, que pretendia sujeitar a confronto com os parâmetros constitucionais, o certo é que a decisão recorrida não fez aplicação do despacho habilitado pelo referido decreto-lei, nem, consequentemente, deste diploma, e que, além disso, este não foi, em nenhuma das suas normas, autonomamente impugnado durante o processo. Pelo que também quanto a ele se não pode tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, e ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se: a) Não tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade; b) Condenar a recorrente em custas, com 5 (cinco) unidades de conta de taxa de justiça.»
2.Notificada desta decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, invocando, no essencial que:
“é manifesto que além das referidas questões jurídico-constitucionais terem sido oportunamente invocadas, nunca se poderia entender que o DL 511/75, de 20 de Setembro e o despacho do Senhor Secretário do Estado da Habitação e Urbanismo, de 1976.07.15 não foram aplicados in casu.
É que a indemnização devida à ora recorrente foi fixada nas sucessivas decisões proferidas no presente processo com base nos laudos e relatórios dos Senhores Peritos do Tribunal e da Expropriante, que consideram expressamente que o Plano de Urbanização do ---------------------- (------------------) não é aplicável à expropriação, por se encontrar suspenso em consequência de actos normativos que integram o objecto do presente recurso.
(...) a circunstância de o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
2002.05.09, não se ter pronunciado expressamente sobre a questão de constitucionalidade do DL 511/75, de 20 de Setembro, bem como do despacho do Senhor Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, de 1976-07.15, suscitada pela ora recorrente (...) sempre seria absolutamente irrelevante.
(...)
é manifesto que no douto acórdão recorrido se verificou, pelo menos, aplicação implícita das normas cuja inconstitucionalidade integra o objecto do presente recurso (v. Ac. TC de 1987.10.07, Proc. 82/87), pelo que a sua admissibilidade é inquestionável (v. art. 72º/7 do LTC).”
Respondendo à reclamação, escreveu a recorrida em conclusão:
“a) A reclamação deve ser desatendida dado o disposto no artigo 684º do C.P.C., porque a ora reclamante não invocou nas conclusões da alegação do recurso do acórdão arbitral interposto para o Tribunal da Comarca de Oeiras qualquer norma pretensamente inconstitucional que o referido acórdão tivesse aplicado; b) A reclamação deve, ainda, ser desatendida com fundamento no mesmo artigo 684º do C.P.C. porque nas conclusões da alegação de recurso interposto para [o] Tribunal da Relação de Lisboa a ora reclamante não fez qualquer referência à inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 511/75, tendo apenas referido a inconstitucionalidade de um despacho, cuja pretensa inconstitucionalidade não é susceptível de fundar um recurso para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta de normas - cfr. o artigo 280º, n.º 1 da Constituição; c) A reclamação deve, finalmente, ser desatendida porque a sentença recorrida não aplicou qualquer norma cuja inconstitucionalidade haja sido levantada no processo, tendo-se limitado a constatar, de facto, mas não de Direito, que o denominado Plano de Urbanização do ---------------- não teve seguimento.” Cumpre decidir. II. Fundamentos
3.Consultando o teor da presente reclamação, verifica-se que os argumentos apresentados pela reclamante não são novos, e que já foram contemplados na decisão reclamada. Ainda assim, a reclamante não contesta dois dos fundamentos desta: o de que, dada a natureza não normativa do despacho em causa, ele não poderia integrar o objecto do recurso, e o de que a decisão recorrida se baseou noutro fundamento (diverso do da suspensão do plano de urbanização pelo referido despacho) para não contemplar o dito Plano de Urbanização. Logo por tais fundamentos, não seria possível tomar conhecimento do recurso.
4.Toda a argumentação da reclamação assenta, pois, na similitude de efeitos das
“normas” em causa – ainda que por via diversa, o resultado final teria sido idêntico ao da aplicação da norma habilitante do despacho e à aplicação do despacho – e na anterior invocação do despacho e, consequentemente, da sua norma habilitante.
Sem razão, porém.
Na verdade, a própria reclamante invocou perante o tribunal recorrido a caducidade dos despachos exarados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 511/75, de 20 de Setembro, ex vi do Decreto-Lei n.º 341/79, de 27 de Agosto, o que, por si só, constituía fundamento legal bastante para o Tribunal da Relação não poder invocar o despacho impugnado – com a consequente irrelevância da norma habilitante desse Decreto-Lei n.º 511/75, já que, como se demonstrou, nenhuma outra das suas normas podia estar em causa nos autos (não obstante a sua impugnação em bloco). Por outro lado, uma eventual relevância da similitude de efeitos entre a norma impugnada e a aplicada, quando a decisão recorrida invoca apenas um ou outro dos preceitos em causa, haveria sempre de supor, pelo menos, o concurso das normas na situação que deu origem a esta decisão. Como se escreveu no Acórdão n.º
481/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Dezembro de 1994),
“Deve, na verdade, entender-se que há recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que aplicam o regime estatuído pela norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada, mesmo quando essa aplicação é feita sob a invocação de outro ou outros preceitos jurídicos.” Quando, porém – como no presente caso – o que se quer ver apreciado não é uma norma, e já nem sequer existe, do ponto de vista da vinculatividade jurídica, se a decisão recorrida é formulada com base noutros fundamentos normativos é claro que deixa de fazer sentido falar em qualquer aplicação implícita (tal como, por exemplo, a similitude de efeitos entre um regime revogado e o que lhe sucedeu não implica que o anterior seja aplicado implicitamente).
Não existindo, pois, razões para alterar a conclusão no sentido da impossibilidade de se tomar conhecimento do recurso, há apenas que confirmar a decisão reclamada.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada de não conhecimento do recurso, e condenar a reclamante em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 19 de Novembro de 2003 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos