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Procº nº 542/2003
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA
1. Em 22 de Setembro de 2003 o relator proferiu decisão com o seguinte teor:
“1. Não se conformando com a decisão proferida em 13 de Julho de 2001 pelo Juiz do 11º Juízo Cível de Lisboa, que, para além de julgar improcedentes os embargos deduzidos A. na acção especial de posse judicial avulsa que contra si fora intentada por B. - vindo a ficar habilitados, na sua posição processual, C. e marido, D., E. e mulher, F., G., H. e I. -, ainda condenou o embargante, como litigante de má fé, na multa de Esc. 500.000$00 e na indemnização de Esc.
450.000$00 aos embargados, apelou o mesmo embargante para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 18 de Junho de 2002, julgou improcedente o recurso.
Deste aresto pediu o embargante revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na alegação adrede produzida, o recorrente, e para o que ora releva, discreteou assim:
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Os embargos deviam pois ter sido julgados procedentes.
A situação criada pelas decisões recorridas é juridicamente insustentável e cria um autêntico imbróglio jurídico, com infracção das regras fundamentais do Registo Predial com as quais se pretende assegurar a segurança jurídica.
Trata-se aqui, nestes embargos, também de uma questão de direito. A declarada litigância de má fé é pois insustentável.
Daí que se levante a questão da inconstitucionalidade do artigo 456 do Código de Processo Civil na versão que lhe dá o acórdão sob recurso, visto que limita o livre exercício do direito de defesa previsto no artigo 20. EM CONCLUSÃO
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10) A declarada litigância de má fé é insustentável. Trata-se de uma questão de direito com factos provados por documentos e perfeitamente viável.
11) Tem assim que se levantar a questão da inconstitucionalidade do artigo 456 do Código de Processo Civil, na interpretação que se lhe dá no acórdão sob recurso por ofensiva do direito de defesa previsto no artigo 20 da constituição.
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O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Maio de 2003 negou a revista, tendo discorrido, quanto à questão da litigância de má fé, do seguinte jeito:-
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A condenação do recorrente assentou, essencialmente, na circunstância de, perante situações definitivamente apreciadas e julgadas, vir litigando com persistência, de forma em que é manifesta a improcedência, de tal modo que, de forma clara, reproduz e põe em causa tais julgados, tudo com o único objectivo de não cumprir o decidido no acórdão do STJ de 21/7/87, constituindo obstrução à administração [da] justiça, causando graves prejuízos aos Recorridos e revelando intenso dolo instrumental e substancial.
O Recorrente entende ser insustentável a declaração de má fé na lide por se tratar também de uma questão de direito, tendo-a como limitativa do exercício do direito d[e] defesa.
Não tem razão.
O Recorrente tem perfeito conhecimento da situação jurídica do prédio, dos seus direitos e dos da Recorrida desde 1987.
Vem, efectivamente, desde então, utilizando os mais variados meios processuais para incumprir o julgado.
Neste processo distorce e subverte elementos e fundamentos de decisões para deles fazer extrapolações que manifestamente não comportam, como sucede com a insistência na inoponibilidade do acórdão do Supremo, subjacente à questão da legitimidade, recorrentemente posta com outras decisões desfavoráveis.
E tudo repete e repisa, sem respeito pelos julgados, no intuito de impedir
à Recorrida o exercício do direito que há muito lhe foi definitivamente reconhecido.
Quem assim age não exerce direito de defesa algum, legal e constitucionalmente tutelado. Abusa simplesmente dos direitos processuais que o sistema jurídico intenta garantir.
E a condenação por litigância de má fé prevista no art. 456º do CPC e tipificada na al. d) do seu n.º 2 é, justamente, a sanção para as situações que, como a presente, configuram abuso de direito processual.
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Notificado do aresto de que parte se encontra extractada, veio o embargante juntar aos autos requerimento com o seguinte teor:
‘A., recorrente no processo com o n.º à margem indicado, notificado do acórdão de fls., nos termos do disposto no artigo 75-A da lei n.º 28/82 e ao abrigo do n.º 1 do artigo 70 do mesmo diploma, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional -- recurso limitado à questão da condenação por litigância de má-fé -- sendo que a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 456 do Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrido, foi suscitada na alegação para este Supremo.
Sem prejuízo do que posteriormente vier a ser alegado no lugar próprio, esclarece-se desde já o Tribunal Constitucional que a interpretação dada pelo acórdão recorrido ao artigo 456 do Código de Processo Civil conduz à indefesa, portanto à negação do direito ao acesso aos Tribunais consubstanciado no artigo
20º da constituição.
Pois o que está em causa nos autos é uma questão puramente de direito, isto
é, do que se trata é da interpretação e aplicação de normas a factos - factos cuja evidência, aliás, o acórdão sob recurso também nega mas sem razão, como se demonstrará quando for oportuno.
‘Só a lide essencialmente dolosa justifica a condenação como litigante de má-fé e não já a lide meramente temerária ou ousada nem muito menos a sustentação de teses controvertidas na doutrina ou a defesa de interpretações, sem grande solidez ou consistência, de normas jurídicas’, (Ac. do Tribunal Constitucional n.º 442/91 - BMJ. 411, pág. 611).
Termos, assim, em que o presente recurso deve ser admitido, seguindo-se os demais termos até final’.
O recurso para este Tribunal veio a ser admitido por despacho proferido em 25 de Junho de 2003 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal
(cfr. N.º 3 do art.º 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro) e porque se entende, que recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do n.º 1 do art.º 78º-A da mesma Lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto desta impugnação.
Na verdade, e se bem se interpreta o requerimento de interposição do presente recurso, intenta o impugnante a apreciação da incompatibilidade constitucional da norma ínsita no art.º 456.º do diploma adjectivo civil [recte, deverá considerar-se a norma constante da alínea d) do n.º 2 do art.º 456º daquele diploma, já que foi essa a única aplicada no aresto sub specie e que constituiu fundamento do decidido no tocante à questão da condenação do embargante como litigante de má fé] num sentido interpretativo segundo o qual, postando-se em causa questões puramente de direito (ou, para se usar a fraseologia naquele requerimento empregue, a ‘interpretação e aplicação de normas a factos’), a defesa de determinados pontos de vista relativamente a essas questões (obviamente consubstanciada na utilização de diversos meios processuais), ainda que não atendidos por decisões judiciais incidentes sobre as pretensões fundadas nesses pontos de vista, não pode conduzir a que se declare litigante de má fé quem os defende.
Anote-se que, aquando da alegação da revista (e como resulta da transcrição supra efectuada), nunca o ora recorrente explicitou de modo minimamente perceptível qual a dimensão interpretativa do dito art.º 456.º que, tendo sido perfilhada pelo acórdão tirado no Tribunal da Relação de Lisboa, entendia como conflituante com a Lei Fundamental.
Ora, segundo determinada perspectiva, poder-se-ia, até, sustentar
(cfr., neste particular, o Acórdão deste Tribunal n.º 656/94) que, atento o modo como foi colocada perante o Supremo Tribunal de Justiça uma tal questão de inconstitucionalidade, a suscitação não foi levada a efeito de modo processualmente adequado, o que inviabilizaria o recurso consagrado na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º 28/82.
Mas, numa postura menos exigente ou rigorista, admitindo-se, tendo em atenção o que resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, que, afinal, o impugnante veio, com tal requerimento, a concretizar o sentido interpretativo da norma do art.º 456º [repete-se, mais concretamente o normativo precipitado na alínea d) do n.º 2 desse artigo] que entendia ser desarmónico com o Diploma Básico (sentido esse que é o que acima se deixou enunciado), dessa arte se projectando na suscitação ocorrida na alegação da revista, ponto é saber se a decisão judicial ora querida submeter à censura deste Tribunal veio a aplicar aquele normativo na dimensão interpretativa questionada, pois que só assim se poderia, na situação sub iudicio, afirmar que se congregava a totalidade dos requisitos do recurso.
Simplesmente, entende-se que o acórdão ora em análise, de todo em todo, não conferiu ao preceito constante da alínea d) do n.º 2 do art.º 456.º do Código de Processo Civil uma dimensão interpretativa de harmonia com a qual, estando em causa questões de direito, a sustentação de determinadas perspectivas quanto à interpretação e aplicação de normas, ainda que essas perspectivas não tivessem sido acolhidas por anteriores decisões judiciais tomadas, quer no mesmo procedimento, quer, inclusivamente, em providências processuais cujo objecto, de certo modo, apresentava alguma conexão com o do procedimento concreto, implicava a determinação de quem sufragasse aquela sustentação como litigante de má fé.
Efectivamente, o que foi entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão prolatado em 27 de Maio de 2003, foi que a actuação levada a efeito pelo ora recorrente, designadamente utilizando os mais variados meios processuais, visava, e só, incumprir um julgado tirado pelo mesmo Supremo Tribunal em 21 de Julho de 1987 e que já tinha constituído caso julgado, subvertendo os elementos e fundamentos do mesmo, com o único fim de impedir os ora recorridos de exercerem o direito que lhes fora reconhecido por aquele julgado.
Trata-se, assim, sem equívocos, de um juízo de valor sobre a actuação processual do condenado como litigante de má fé, actuação essa que, segundo tal juízo, não tinha por objectivo a defesa de pontos de vista sobre a interpretação e subsunção do direito à matéria de facto, antes sendo iluminada pelo desiderato de protelar e entorpecer a acção da justiça.
Aliás, e como deflui da pertinente transcrição do acórdão em apreço, em passo algum se descortina que a defesa de diferente ponto de vista, confrontadamente com o acolhido em decisões judiciais, sobre o modo como a matéria de direito haja de sofrer interpretação e aplicação, possa constituir actuação caracterizável como litigância de má fé.
Não compete, como é claro, a este Tribunal, sindicar o juízo de valor a que chegou o acórdão pretendido impugnar e que acima se explicitou (recorde-se:- o juízo segundo o qual a actuação do recorrente não visava a manifestação de uma diferente perspectiva sobre a aplicação do direito, antes tendo por objectivo não cumprir uma decisão, já transitada, tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça em Julho de 1987); e, identicamente, não lhe compete sindicar se a aplicação do direito à factualidade dos autos foi, ou não, errada em face da existência de factos cuja evidência o impugnante, no requerimento de interposição de recurso, intenta demostrar.
Neste contexto, porque o acórdão recorrido não levou a efeito uma interpretação normativa que o recorrente, antes da sua prolação, questionou
(mais precisamente, desejaria questionar - o que se diz em vista daquilo que, neste particular ponto, acima se explanou) quanto à respectiva harmonia com a Constituição, falece um dos requisitos do recurso, justamente o que consiste na aplicação, pela decisão querida submeter à apreciação pelo Tribunal Constitucional, da norma cuja inconstitucionalidade fora suscitada.
Termos em que se não conhece do objecto do recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando em cinco unidades de conta a taxa de justiça”.
Da transcrita decisão reclamou o recorrente A. para a conferência em síntese sustentando, após intentar historiar a situação dos autos e demonstrar que a sua actuação processual era plausível em face do ordenamento jurídico, que ele, recorrente, tinha fundamento legal para deduzir os embargos, tratando-se, por isso, de uma questão de direito controvertida, razão pela qual não podia, na defesa do seu ponto de vista, ser condenado como litigante de má fé.
Ouvidos sobre a reclamação, os recorridos vieram propugnar pelo respectivo indeferimento.
Cumpre decidir.
2. Como deflui do relato levado a efeito na decisão ora em apreço, o não conhecimento do objecto do recurso fundou-se na circunstância de o acórdão pretendido censurar perante o Tribunal Constitucional não ter conferido à norma vertida na alínea d) do n.º 2 do art.º 456.º do Código de Processo Civil a interpretação segundo a qual, numa situação em que uma «parte» assume a defesa de uma perspectiva sobre uma questão de direito diversa daqueloutra que não foi sufragada por decisões judiciais tomadas sobre as pretensões baseadas naquela mesma perspectiva, isso pode conduzir à condenação como litigante de má fé por parte de quem isso defenda.
Ora, essa interpretação seria, justamente, aquela que, precedentemente à prolação do dito acórdão, teria sido esgrimida pelo recorrente como sendo conflituante com a Lei Fundamental, sendo que, ao fim e ao cabo, na reclamação agora em análise, continua o impugnante a tecer armas no sentido de que o aludido sentido interpretativo é desarmónico com a Constituição.
Simplesmente, como se viu e foi devidamente vincado na decisão de que agora se cura, o Supremo Tribunal de Justiça não veio, no aresto de 27 de Maio de 2003, a aplicar ao caso que tinha de decidir o normativo ínsito na mencionada alínea d) do n.º 2 do art.º 456.º do Código de Processo Civil numa dimensão interpretativa consonante com aquela que o ora reclamante entendia como enfermando do vício de desconformidade com o Diploma Básico.
Na verdade, a manutenção da condenação do recorrente como litigante de má baseou-se na efectivação de um juízo de valor sobre a sua conduta processual, a qual se consubstanciou, na óptica do Supremo Tribunal de Justiça, na utilização dos mais variados meios processuais com o único fim de incumprir decisões já transitadas e, assim, impedir que os recorridos exerçam um direito que há muito lhes foi reconhecido por aquelas decisões.
Obviamente que, sendo assim, como é, a postura assumida por aquele Alto Tribunal não tem por base uma interpretação da alínea d) do n.º
2 do art.º 456.º do diploma adjectivo civil de acordo com a qual uma defesa, ainda que temerária, de determinados pontos de vista sobre a interpretação e a aplicação do direito, mesmo que não reconhecida por algumas decisões judiciais, pode ser subsumida ao conceito de litigância de má fé.
Isso significa que no acórdão recorrido se não assiste à aplicação da norma (alcançada por interpretação) cuja inconstitucionalidade foi questionada pela «parte» que, posteriormente ao seu proferimento, se veio a servir do recurso prescrito na alínea b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei n.º
28/82, motivo pelo qual falece, in casu, um dos pressupostos desta forma de impugnação.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se em quinze unidades de conta taxa de justiça.
Lisboa, 29 de Outubro de 2003
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida