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Proc. n.º 667/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de -----------, de 7 de Fevereiro de 2002, foi a ora recorrente, A., condenada, como co-autora de:
“- um crime de associação de auxílio à emigração ilegal, p.p. art. 135°, nos 1 e
2, do Dec.-Lei n° 244/98, de 08/08 três (3) anos de prisão;
- um crime do art.134º, nos 1 e 2, do mesmo diploma preceitos a que correspondem os arts.135°,nos 1 e 2, e 134°, nos 1 e 2, do Dec.-Lei n°4/2001, de 10/01: quinze meses de prisão;
- um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158°, n° I do C. Penal, treze meses de prisão;
- um crime de coacção, p. e p. pelo art. 154°, n° 1: doze meses de prisão. No cúmulo jurídico: quatro anos de prisão.”
2. Inconformada com esta decisão a arguida recorreu dela para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo mantido igualmente interesse na apreciação de um recurso, entretanto interposto, respeitante à busca que fora efectuada em sua casa. Concluíra, então, a sua alegação, no que se refere à busca domiciliária, dizendo o seguinte:
“[...] I - A contagem do prazo para arguição de nulidade conta-se a partir do momento em que ao arguente tenham sido concedidas condições por ele requeridas que lhe possibilitem verificar e conhecer a invalidade, nomeadamente, pelo acesso a peças processuais que integram o inquérito e a quem tem direito a consultar. II – Está maculada de nulidade insanável a busca domiciliária que não seja presidida pelo juiz que a ordenou ou autorizou, salvo se existir comprovada razão que impossibilite a sua presença III - A razão da impossibilidade de presidência à diligência de busca domiciliária pelo juiz que a ordenou deve constar por escrito dos autos, em momento anterior IV – O acto de busca domiciliária comprime e limita os direitos fundamentais de reserva à intimidade da vida privada, inviolabilidade de domicílio e da dignidade da pessoa humana; V - Impondo que seja o juiz a presidir àquela diligência, o legislador introduziu um elemento de garantia e fiscalização de que tais direitos apenas serão limitados na medida do estritamente necessário à satisfação dos valores e interesse jurídicos de superior ou idêntica valia que justificam tal compressão. VI – Está também viciada de nulidade a busca domiciliária efectuada sem que à pessoa que tem a disponibilidade do domicílio e que aí tem residência fixada, previamente lhe seja entregue cópia do despacho que determinou a busca por forma a que quem a recebe compreenda o seu teor, razão, finalidade e limitações da busca ordenada. VII- Tal entrega visa dar conhecimento à pessoa que a recebe da diligência a realizar, seus fins, limitações e entidade que a ordena, bem como do direito de se assistir à realização da busca fazendo-se acompanhar ou substituir por pessoa da sua confiança, que se apresente sem delonga. VIII- Não cumpre aquela obrigação de comunicação a entrega à pessoa que tem a disponibilidade do domicílio, aí residindo, mas e que é cidadão estrangeiro, sem que compreenda a língua portuguesa, de cópia do despacho aludido escrito em português, sem que quem faça a entrega cuide de lhe explicar, por forma a que tal cidadão o compreenda, do teor do documento entregue, seu fim, finalidades e limitações do acto, bem como da entidade que o ordenou e do direito que lhe assiste de se substituir ou fazer acompanhar por pessoa da sua confiança, que se apresente sem delonga. IX- Se o cidadão estrangeiro não percebe português, nem os agentes que realizaram a busca falam a sua língua e se limitam a entregar-lhe cópia daquele despacho, verifica-se o incumprimento da obrigação imposta no art.176º, nº1 do C. P. Penal. X- Tanto este incumprimento como a falta da presença do juiz no acto da busca domiciliária determinam que este acto constitua intromissão abusiva na vida privada e no domicílio da recorrente. XI – A douta decisão em crise fez interpretação das normas dos arts. 174º, n.º
3, 177º, n.º 1 e 119º, al. b do C. P. Penal no sentido de que tratando-se de busca domiciliária, pode o juiz não estar presente na sua realização, quando deveria ter interpretado tais normas no sentido de que a presença do juiz que ordenou tal acto é obrigatória, salvo ocorrendo razão que impossibilite tal presença e que deverá estar documentada nos autos e que tal ausência macula de nulidade insanável aquele acto; XII- É inconstitucional a interpretação assim adoptada pelo douto despacho recorrido por desrespeitar os direitos de reserva da intimidade da vida privada, inviolabilidade do domicílio e da dignidade da pessoa humana consagrados nos arts. 26º, n° 1, 3 e 4 e 34°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa. XIII - A douta decisão em crise interpretou a norma do art. 176º, n.º 1 do C. P. Penal no sentido de que previamente à busca domiciliária é suficiente a entrega de cópia do despacho à pessoa que tem a disponibilidade do local, ainda que o não compreenda, quando deveria interpretá-la no sentido de que a obrigação ali imposta apenas é cumprida quando, previamente à busca é entregue àquela pessoa a dita cópia, por forma a que a mesma compreenda o seu conteúdo, o acto que ali ordenado, a sua finalidade, limitações e entidade que o ordenou e ainda de que tem o direito a fazer-se substituir ou acompanhar de pessoa da sua confiança na assistência a realização da busca.[...]”.
Por seu turno, já no que se refere ao recurso da decisão de 7 de Fevereiro de
2002, após 36 páginas em que discute a matéria de facto e 6 em que, “por mera cautela de patrocínio”, discute a matéria de direito, concluiu assim a recorrente a sua alegação:
“I - A matéria de facto descrita na douta acusação pública sob o número um é conclusiva, reportando-se a conceitos e não a factos concretos da vida real, pelo que [] tal matéria não é subsumível à previsão da norma incriminadora de nenhum dos tipos legais de crimes por que a recorrente[] foi condenada. II - A matéria de facto tida como provada no douto acórdão recorrido sob o número um do elenco da factualidade assim julgada, é conclusiva, reportando-se a conceitos, cláusulas gerais ou conclusões e não a factos concretos da vida real cuja autoria seja imputada concretamente aos arguidos, pelo que [] tal matéria não é subsumível à previsão da norma incriminadora de nenhum dos tipos legais de crimes por que a recorrente[] foi condenada. III - Atenta a fundamentação em que assentou a convicção do Tribunal recorrido, deveriam ter sido julgados não provados os factos descritos sob o número dois do elenco da factualidade julgada provada naquele douto aresto, na parte em que assenta que:
'onde sabiam encontrar-se a trabalhar B., melhor identificado a fls. 112 dos autos'; ' a fim de cobrarem importância por aquele devida a título de pagamento pela colocação laboral'; 'à resistência por aquele oposta ao pagamento, os arguidos dali o levaram contra sua vontade, para o efeito utilizando a força física e fazendo-lhe crer que o molestariam fisicamente, conduzindo-o à 'Pensão C.', na cidade de ------------------, onde foi obrigado a permanecer por uma noite, vigiado pelo D., que o impediu de dali se ausentar'; No dia seguinte, foi pelos mesmos arguidos colocado a trabalhar em local indeterminado, entre
-------------- e --------------, desempenhando actividade relacionada com a colocação de saneamento básico, onde permaneceu apenas alguns dias, após o que se ausentou'. IV - Atenta a fundamentação invocada pelo Tribunal recorrido, deveria ter sido julgado não provado o facto identificado com o número quatro na parte em que descreve que 'Porém. a partir de então passaram a ser abordados por indivíduos que lhes referiram poderem ambos vir a sofrer actos contra a sua integridade física”. V - relativamente ao facto ali indicado como número cinco, atenta a fundamentação em que se alicerçou a convicção do Tribunal recorrido, deveria ter sido julgado não provado que ' A agência russa, a qual tem por objecto a colocação de trabalhadores no estrangeiro' e ainda a parte em que refere 'para onde foram levados pela A. e pelo E.'. VI - Os factos julgados provados sob os números seis, sete e oito respeitando ao elemento subjectivo dos tipos de crime por que foram condenados, deverão ser julgados não provados por acessório aos relativos aos correspondentes elementos objectivos, pelas razões já ditas. VII - No elenco dos factos que a decisão impugnada fixou por verdadeiros, designadamente os ali indicados sob o números quatro e cinco, nada referem quanto à irregularidade da entrada dos cidadãos estrangeiros em Portugal; VIII - Foi nos factos indicados sob aqueles números quatro e cinco que a decisão fundou a sua convicção no preenchimento do tipo de crime de auxílio à imigração ilegal, com o que não deveria ter proferido decisão no sentido da condenação, nessa parte, por nada se ter julgado provado quanto a um dos elementos objectivos do tipo criminal em causa: a entrada irregular de cidadão estrangeiro em Portugal. IX- A acusação deve conter como elemento integrante os factos, enquanto ocorrências concretas da vida real, que sendo imputadas ao arguido, sejam adequadas ao preenchimento da previsão do tipo legal de crime: é com fundamento nestes factos que o julgador deverá, se caso disso for, decidir-se pela aplicação de uma pena ou medida de segurança. Não sendo alegados ou tidos como provados tais tipos de factos, não há lugar ao preenchimento da previsão de qualquer norma tipificadora de crime. X - A douta decisão em crise não julgou como provados quaisquer factos, actos ou omissões, imputáveis aos arguidos, que concretamente sejam subsumíveis à previsão do tipo de crime de associação criminosa para auxílio à imigração ilegal. XI- Quanto ao tipo legal de crime de auxilio à imigração ilegal, pelo douto acórdão em crise não foi julgado provado qualquer facto subsumível ao elemento objectivo do tipo correspondente à entrada ilegal de estrangeiros no nosso país. XII- Ainda que razão houvesse para a condenação da recorrente pelos tipos legais de crime em que o foi, sempre deveria o Tribunal 'a quo' ter optado por pena de multa e não pela de prisão. XIII- À recorrente apenas foi aplicada pena de prisão nestes dois tipos de crime por se tratar de cidadã estrangeira, oriunda dos países do antigo Bloco de Leste, sendo que em idênticas circunstâncias ao cidadão Português ter-lhe-ia sido aplicada pena de multa. XIV- Erradamente, interpretou a douta decisão recorrida a norma do artigo 70º do Código penal no sentido de que tratando-se a recorrente de cidadã de nacionalidade estrangeira, não há lugar à observância dos critérios de escolha da pena aí fixados, contrariamente ao que sucederia se se tratasse de cidadão português, quando devia ter interpretado tal norma no sentido de que qualquer arguido merece tratamento idêntico se a diferença entre ambos é à da nacionalidade. XV - Quando interpretada no sentido adoptado pelo Tribunal 'a quo' a citada norma do art. 70° é inconstitucional por violação do princípio e direito à igualdade de tratamento previsto na Constituição da República Portuguesa sob o artigo 13°, n° 2: XVI- A douta decisão recorrida interpretou erradamente a norma do art. 374°, n°
2 do ,C. P. penal no sentido de que os factos provados e não provados podem traduzir-se em cláusulas gerais, conceitos ou conclusões, quando deveria ter interpretado tal norma no sentido de que os factos provados e não provados aí referidos são as concretas ocorrências da vida real que a verificarem-se preenchem os conceitos e cláusulas gerais constitutivos das previsões das normas tipificadoras do crime. XVII- O douto acórdão recorrido socorreu-se de depoimentos indirectos para forma[r] a sua convicção, quando tal lhe é vedado pela norma do art. 129°, n° 1 do C. P. Penal. Ignorou, pois, esta limitação na aquisição e apreciação dos meios de prova em que formou a sua convicção. XVIII- Atento o disposto na norma do art. 412°, n° 5 do C. P. Penal, declara a recorrente que mantém interesse na apreciação do recurso que interpôs a fls.
375, pelo [qual] impugnou o douto despacho que lhe indeferiu a irregularidade da busca domiciliária e a inadmissibilidade de serem valorados os elementos apreendidos por esse acto por se tratar de meio de prova ilegalmente obtido.[...]”
3. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 23 de Outubro de 2002, julgou o recurso improcedente. Sobre as questões suscitadas, ponderou aquele Tribunal:
“[...] Teremos de começar por o fazer atendendo à prioridade dos recursos e, nessa medida, principiando por conhecer do respeitante à busca efectuada à residência da arguida A..
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
'A arguida A. veio a fls. 291 dos autos arguir a nulidade da busca efectuada à sua residência pela Polícia Judiciária no passado dia 19 de Abril de 2001. Alega para o efeito que é cidadã russa e tem dificuldade em perceber a língua portuguesa. Que no dia em que foi efectuada a referida busca foram-lhe exibidos uns papeis, que calcula serem os mandados emitidos pela autoridade judiciária competente, os quais se mostravam escritos em português e nenhum dos agentes que procedeu à busca fala russo, razão pela qual previamente à realização da busca nada foi explicado à arguida e só percebeu alguma coisa do que se havia passado aquando da sua presença no tribunal teve contacto com uma intérprete que lhe foi nomeada. Conclui pela violação do disposto no artigo 176° n.º 1 do C.P.P. Mais alega que tratando-se de busca domiciliária tal acto deveria ter sido presenciado pela autoridade judiciária que a ordenou, conforme o impõe o disposto no nº3 do artigo 174° do C.P.P. o que, ao que lhe consta não se verificou. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, promoveu no sentido do indeferimento do requerido pelos fundamentos constantes da douta promoção de fls. 319 e 320 dos autos.
»« Cumpre apreciar e decidir: Compulsados os autos verifica-se que por despacho judicial proferido em
09.04.2001, pela juiz de instrução, foi ordenada a busca à residência da arguida ora requerente. No referido despacho foi para além do mais aí constante, determinado que as diligência aí ordenadas seriam a realizar pela Policia Judiciária com observância do legal formalismo. Foram emitidos os respectivos mandados e mostra-se junto o respectivo auto de busca a qual segundo resulta do mesmo foi efectuada na presença da requerente após cumpridas as formalidades legais. Dispõe o n° 1 do artigo 176° do CPP do CPP que, antes de se proceder à busca é entregue a quem tiver a disponibilidade do lugar em que a diligência se realiza cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar. Ora, conforme é pela própria requerente referido foi-lhe entregue cópia do despacho que ordenou a busca, pelo que mostra-se cumprido o imposto na referida disposição legal. O facto de a arguida conhecer mal a língua portuguesa não invalida o que se acaba de afirmar pois a lei não impõe (nem permite, veja-se o disposto pelo artigo 92° 1 do CPP) que tivesse de se efectuar tradução dos mandados de busca ou que, os agentes tivessem na diligência de se fazer acompanhar de tradutor. Saliente-se por último que conforme bem refere o Exmo. Procurador e resulta do disposto pelo artigo 92° nº2 do CPP apenas quando haja de intervir, no sentido de participar no processo, designadamente para ser ouvida, pessoa que não conheça ou não domine a língua portuguesa é que se impõe a nomeação de intérprete. Tal, conforme resulta do alegado pela arguida e resulta dos autos foi plenamente observado, tendo sido nomeado um intérprete à arguida na altura em que foi presente a tribunal para ser sujeita a interrogatório, altura em que interveio (participou) no processo. Na busca, a arguida pode assistir à diligência, não participa nela. Pelo que, por tudo o exposto, improcede a arguição da alegada nulidade. No que se refere por seu turno à nulidade suscitada pela falta de intervenção na busca realizada, da autoridade judiciária que a ordenou, teremos de concluir do mesmo modo, pela improcedência da mesma. Com efeito, o n° 3 do artigo 174° do CPP estabelece apenas que a busca será presidida pela autoridade judiciária que a ordenou, sempre que pela tal se mostre possível. A lei não impõe que o magistrado tenha que justificar ou alegar motivos para a ausência à diligência. Se o magistrado não esteve presente na busca ordenada, foi porque tal não lhe foi possível. Não se vislumbrando aliás que no caso em apreço houvesse especiais circunstâncias que 'impusessem' essa presença. Do exposto resulta, improceder também, a arguida nulidade por falta da presença do magistrado à diligência de busca ordenada.' Compulsados os autos, verifica-se que a folhas 149 e verso se encontra o despacho que autorizou a busca, referindo-se, na sua parte final, que “as diligências serão a realizar pela Polícia Judiciária, com estrita observância das formalidades legais.” Daqui resulta com a mínima evidência que o juiz que ordenou as diligências constantes de tal despacho deferiu a competência para a sua realização ao órgão de polícia criminal que a propôs, prescindindo da possibilidade/faculdade de a ela presidir. Com efeito, se pretendesse estar presente à diligência teria mencionado tal circunstância no despacho determinativo, o que não fez. O próprio texto do art.174°, nº3 do Cod. Proc. Penal menciona que a diligência deve ser sempre que possível, presidida pela autoridade judiciária que a determinou (sublinhado nosso). Daí deriva que se não trata de uma disposição vinculativa, antes permitindo interpretação contrária à defendida pela recorrente, o que se compreende se pensarmos nas horas a que tais diligências são muitas vezes efectuadas, incompatíveis com o horário de funcionamento dos tribunais. Acresce que o normativo citado não comina a ausência da autoridade judiciária com a sanção de nulidade, ao contrário do que acontece no seu nº3 do art.177°. Estatuindo-se no art.118°, nº1 o princípio da legalidade relativamente às nulidades processuais, o alegado pela recorrente não cabe dentro das elencadas nos dois artigos seguintes, pelo que improcede o suscitado. Quanto à falta de tradução da cópia do despacho determinativo da busca, por a recorrente não perceber a língua portuguesa e não compreender o seu teor, tal não integra, também, qualquer nulidade, pelas razões anteriormente expostas, sendo de salientar que a lei processual penal não impõe a nomeação de intérprete nessa situação. Para tanto afigura-se suficiente citar dois arestos do S.T.J.:
'Não acarreta a nulidade da busca o facto de não ter sido entregue ao arguido cópia do despacho que a ordenou' (Ac. de 29/4/93);
'A falta de entrega de cópia do despacho que determinou a busca à pessoa que a esta assistiu, inobservando o disposto no art.º 176° do CPP, constitui, quando muito, nulidade suprível, sanada por falta da respectiva arguição em tempo
útil.'(Ac. de 8/11/95, ambos citados em anotação ao art.177° no Código de Processo Penal Anotado de Simas Santos e Leal Henriques). Mesmo adoptando esta última posição, a nulidade teria que ser arguida antes de terminar a busca (art.120°, nº3, al. a), todos normativos antes citados do Cod. Proc. Penal.). Tendo a diligência tido lugar a 19/04/2001, sendo a recorrente interrogada, com a presença de intérprete no dia imediato, só no dia 27 seguinte veio arguir a nulidade, pelo que estava precludida a possibilidade de o fazer. Pelo exposto, o recurso terá de improceder.
Como se verifica pelas respectivas conclusões, os recorrentes impugnam a matéria de facto fixada na decisão recorrida, o que lhes é permitido, dado que a prova produzida em audiência foi gravada (arts 364° e 428° do Cod. Proc. Penal). Todavia, tal também impõe que os recorrentes cumpram o que a legislação penal adjectiva estatui quando se pretenda usar de tal faculdade, nomeadamente que sejam especificados os pontos de facto que se considera como incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa, bem como as que devem ser renovadas. Nada disso fazem e a consequência de tal inobservância está consagrada no art.431°, al. b) do mesmo compêndio normativo, ou seja, este tribunal não pode modificar a matéria de facto. Tal afasta também a questão, que se poderia colocar, da necessidade de transcrição da prova.
[...] Em resumo : Neste primeiro passo de escolha da pena (art.º 70º) há que fazer apelo especialmente ao conceito da prevenção geral, entendendo-a neste contexto. Compete antes de mais ao direito penal a protecção de bens e valores fundamentais da comunidade social proporcionando as condições indispensáveis ao livre desenvolvimento e realização da personalidade ética. No segundo passo: Como se referiu, entra aqui o conceito de culpa e o da prevenção, mas esta sobretudo na sua vertente especial. Culpa: Seguindo o Prof. Figueiredo Dias, esta está ligada à ideia de retribuição ou expiatória da pena. Constitui o limite inultrapassável da pena. Toda a culpa é uma culpa de vontade. Só pode ser censurado como culpado o homem que pode, do ponto de vista da vontade e liberdade, fazer e na medida em que se determine, naquelas circunstâncias, por essa vontade, É a personalidade censurável, actualizada no facto praticado, que fundamenta o juízo de culpa. E é a medida de desconformação entre o (des)valor da personalidade do agente e o valor da personalidade jurídico-penalmente conformada (personalidade suposta pela ordem jurídica) que constitui a medida da censura que lhe deve ser feita. A concepção de culpa está referida ao facto (concretizada nele) e não tanto à personalidade do agente, a não ser que o próprio tipo de crime lhe dê relevância. Isto é, o quantum da pena tem a sua justificação mais no que se fez
(ou não fez) do que naquilo que se é (ou não é) . Repare-se na diferente consequência entre o conceito de culpa, assim entendido, e a necessidade de reintegração do agente: aquilo que se é (e não devia ser) torna-se relevante para a escolha da pena; aquilo que se fez é que se toma relevante para o quantum desta. Prevenção: Tudo o que se disse é aqui relevante mas na sua vertente especial. O quantum da pena depende da necessidade de prevenção que aquele indivíduo e naquele crime exigir. (Ac. deste tribunal proferido no recurso n.º 596/2001). Tendo em conta os parâmetros referidos e a matéria de facto apurada, vemos que a pena imposta ao recorrente se mostra ajustada. Com efeito, não descortinamos quaisquer factores que possam conduzir-nos a baixar a pena imposta, por não existirem elementos de relevo para tal. Há que considerar que tratando-se, os arguidos, de pessoas oriundas de países europeu, em situação irregular no nosso País, não tiveram quaisquer dúvidas em se aproveitar das carências de cidadãos em situações idênticas para disso se aproveitarem, organizando-se com tal objectivo. As necessidades de prevenção geral são prementes, tal a divulgação de situações idênticas que nos é transmitida pela comunicação social. E as de prevenção especial também mostram igual acuidade e não se mostra que tenha qualquer ocupação definida. Carece de qualquer fundamento o pedido de suspensão da execução da pena, instituto a utilizar apenas, e só, quando e verifique a existência de um juízo de prognose favorável ao arguido. Não vemos onde se possa alicerçar tal, face à matéria de facto considerada. Não se vê, nem o recorrente o invoca, qual o fundamento de onde recorre a inconstitucionalidade que invoca, já que o art.67° da CRP tem como vector fundamental a protecção da família . A sanção acessória de expulsão é consequência necessária da condenação, não sendo a circunstância de o recorrente ser casado que pode obstar a tal consequência. Quanto aos recursos dos restantes arguidos/recorrentes temos de considerar(conclusão I)que estamos na fase de julgamento e não do fim do inquérito. Há fases processuais em que o alegado teria razão de ser, nomeadamente, requerendo a abertura da instrução. Não o fizeram, sibi imputet. Não podem é agora vir referir argumentos que não foram 'esgrimidos' quando o deveriam ser. Relendo a matéria de facto que se deu como provada sob o n° um dos factos provados, não conseguimos descortinar onde se pode chegar à conclusão retirada pelos recorrentes de que é 'conclusiva'. Trata-se de factos do conhecimento, infelizmente, generalizado e não a qualquer conclusão. O que mais se poderia requerer ao tribunal? Que especificasse ainda mais? Basta-nos considerar o acima exposto quanto à forma como se forma a convicção e ao regime da prova. Coincidindo os recursos quase na totalidade, na parte restante, cumpre apenas referir que a opção pela pena não privativa da liberdade se teve em conta a gravidade dos factos, à evidência demonstrados. Nada há que alterar. Os critérios legais a ter em conta na escolha da pena são os constantes do art.70° do Cod. Penal, ou seja, o tribunal dá preferência à pena não privativa da liberdade desde que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Estas são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Que garantias poderemos ter neste último aspecto? Afigura-se que nenhumas. A personalidade dos arguidos, revelada através dos factos praticados, não nos dá qualquer garantia de que, em liberdade, viessem a adoptar outro comportamento. Saliente-se, novamente, a situação em que se encontram no nosso País e a dos ofendidos, que não pensaram em obviar, mas, antes, dela se aproveitarem em proveito próprio. A reintegração não se mostra, assim, possível. A adoptarmos outra solução estaríamos a potenciar a criação de um novo tipo de criminalidade indesejável. A personalidade dos arguidos, tal qual é demonstrada pelos factos praticados é indesejável. Não se descortina qualquer hipótese de xenofobia da escolha da medida da pena, pelo que já referimos, pelo que também não se vê qualquer inconstitucionalidade na aplicação feita do art.70° do Cod. Penal.[...] Improcedem, assim, todos os argumentos aduzidos pelos recorrentes. Pelo exposto, acordam em negar provimento aos recursos, mantendo a decisão recorrida. [...]”.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade das normas contidas nos “arts. 70º do Código Penal e arts. 174°, n° 3, 176°, n° 1 e
412°, n° 3 do Código de Processo Penal, com a interpretação que lhe foi dada no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.” Em relação às várias interpretações normativas que estariam em causa, afirmou a recorrente:
“A interpretação daquela norma [artigo 70º do Código Penal] no sentido apontado aos tribunais recorridos em vez de interpretada no sentido de que se em alternativa á pena detentiva há a possibilidade da pena não detentiva deve ser esta a escolhida, apenas se justificando tal interpretação pela diferente nacionalidade da recorrente, determina a inconstitucionalidade da norma do art.
70° do Código penal por violação do princípio da igualdade previsto na norma do art. 13°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa.
[...] A interpretação do normativo do art. 174°, n° 3 do C. P. Penal no sentido dado pelo Tribunal recorrido no sentido de que a garantia que a presidência do Senhor Juiz àquela actividade de busca domiciliária é dispensável sem motivo justificativo, indicado previamente nos autos, é inconstitucional por violar as normas dos arts. 26°, nos. 1, 2, é 4 e 32°, n° 8 da Constituição da República Portuguesa - já que na falta de observância daquele formalismo, a busca traduzir-se-á num acto de intromissão na vida privada não justificado, sem a garantia assegurada pela supervisão de Juiz de que a supressão dos direitos fundamentais do buscado à reserva da vida privada é a estritamente necessária à tutela dos fins de investigação visados pela diligência probatória em causa.
[...] Tratando-se de busca domiciliária e não se explicando à recorrente, por forma a que a mesma o compreendesse, qual o acto em curso, finalidade e autoridade de onde emanava, a sua realização constitui intromissão abusiva na vida privada e no domicílio da recorrente, pelo que aquela norma [176°, n° 1 do Código de Processo Penal] com a dita interpretação é inconstitucional por violar o disposto nas normas dos arts. 32°, nos. 1 e 8 da Constituição da República Portuguesa, bem como o direito à inviolabilidade do domicílio previsto na norma do art. 34°, n° 1 da Lei Fundamental portuguesa referida.[...] O acórdão interpretou a norma do art. 412°, n° 3 do C. P. Penal no sentido de que na falta de seu cumprimento deve o recurso para impugnação de matéria de facto ser julgado improcedente por não dever ser conhecido, sem que antes seja a recorrente convidada ao suprimento de tal falta. A norma do art. 412°, n° 3 do Código do Processo Penal, quando interpretada no sentido adoptado pelas instâncias recorridas, é inconstitucional por violação das normas dos arts. 13°, n° 1 e 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa.”
5. Já neste Tribunal proferiu o relator o seguinte despacho:
“A Recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 70º do Código Penal e 174°, n° 3, 176°, n° 1 e 412°, n° 3 do Código de Processo Penal. No que se refere ao citado artigo 70º, a Recorrente entende que a decisão recorrida interpretou a norma “no sentido de que o regime ali previsto que beneficia a opção pela pena não detentiva deverá ser afastado quando o arguido seja de nacionalidade estrangeira.” A verdade, porém, é que, ao contrário do que afirma, a decisão recorrida não aplicou a referida norma com a dimensão que lhe vem imputada. De facto, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que a pena não privativa da liberdade não realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tendo em atenção a personalidade dos arguidos, tal como demonstrada pelos factos praticados, acrescentando ainda não descortinar qualquer hipótese de xenofobia na escolha da medida da pena. Assim sendo, não tendo a norma sido aplicada na decisão recorrida com a dimensão em que vem questionada, não se poderá conhecer do recurso neste ponto. Em relação à norma contida no artigo 174°, n° 3, do Código de Processo Penal, entende a recorrente que a interpretação “no sentido dado pelo Tribunal recorrido no sentido de que a garantia que a presidência do Senhor Juiz àquela actividade de busca domiciliária é dispensável sem motivo justificativo, indicado previamente nos autos, é inconstitucional por violar as normas dos arts. 26°, nos. 1, 2, é 4 e 32°, n° 8 da Constituição da República Portuguesa”. Já no que se refere à norma contida no 176°, n° 1, do Código de Processo Penal, a recorrente entende que “é inconstitucional por violar o disposto nas normas dos arts. 32°, nos. 1 e 8 da Constituição da República Portuguesa, bem como o direito à inviolabilidade do domicílio previsto na norma do art. 34°, n° 1 da Lei Fundamental portuguesa referida”, se interpretada “no sentido de que previamente à busca domiciliária é suficiente a entrega de cópia do despacho à pessoa que tem a disponibilidade do local, ainda que o não compreenda.” Acontece, porém, que um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre as normas em causa não seria susceptível de se projectar em termos úteis na decisão recorrida, uma vez que na mesma se considerou que, ainda que a interpretação correcta dos preceitos em causa fosse a que lhe dá a recorrente, tal apenas daria lugar, quando muito, a uma nulidade sanável, que não foi arguida tempestivamente. Ora, como este Tribunal tem afirmado repetidamente (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 498/96, Diário da República, II Série, de 22 de Julho de
1996), “o recurso de constitucionalidade tem uma função meramente instrumental, aferindo-se a sua utilidade no concreto processo de que emerge, de tal forma que o interesse no conhecimento de tal recurso há-de depender da repercussão da respectiva decisão na decisão final a proferir na causa. Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso.” Assim sendo, também não pode conhecer-se do recurso em relação às normas contidas nos artigos 174°, n° 3, e 176°, n° 1, do Código de Processo Penal. Nestas circunstâncias, fica o recurso limitado no seu objecto à apreciação da constitucionalidade da norma constante do n° 3 do artigo 412° do Código de Processo Penal. Com esta limitação, notifique-se para alegações. Prazo 10 dias.”
6. Notificada, veio a recorrente alegar, tendo afirmado o seguinte:
“[...] O presente recurso está limitado à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 412°, n° 3 do Código do Processo Penal, na interpretação adoptada pelo Subido Tribunal Recorrido. Estatui esta norma que 'Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente provados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.' Ora, a fls. 29 e 30 o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra negou o conhecimento do recurso relativo à impugnação da matéria de facto, pela falta de cumprimento das formalidades previstas na norma do art.
412°, n° 3 do C. P. Penal. Com tal entendimento, aquele douto acórdão interpretou a norma do art. 412°, n°
3 do C. P. Penal no sentido de que na falta de seu cumprimento deve o recurso para impugnação de matéria de facto ser julgado improcedente por não dever ser conhecido, sem que antes seja a recorrente convidada ao suprimento de tal falta. Salvo o maior respeito por diversa opinião, entende a recorrente que tal interpretação cerceia e comprime de forma injustificada o seu direito de defesa constitucionalmente consagrado na norma do art. 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa. Assim, crê, também deverá ser o entendimento a adoptar por este Sapiente Tribunal. Aquela insuficiência é de menor gravidade do que a falta das indicações previstas no n° 2 da mesma norma. Para este caso foi já declarada a inconstitucionalidade da norma do art. n° 412°, n° 2 do Código de Processo Penal se entendida que tal falta determina a rejeição do recurso sem que previamente seja o recorrente convidado a supri a falta - Ac. n° 320/01, in DR de 7 de Outubro de 2002. No modesto entender da recorrente, sendo a insuficiência que determinou a recusa na apreciação do recurso por si interposto de menor gravidade do que a da falta dos elementos da norma do art. 412°, n° 2 referida, não se lhe afigura que dentro do espírito do sistema e dentro de um critério de proporcionalidade e adequação, deva ser dado tratamento diferenciado quando a insuficiência se funda na inobservância ou observância deficiente dos requisitos impostos pela norma do art. 412°, n° 3 do Código de processo penal. A ocorrer esta falta, deveria aquela norma ser interpretada no sentido de que antes de rejeitado o recurso na parte da impugnação da matéria de facto, dever a recorrente ser notificada para aperfeiçoar a motivação, suprindo as insuficiências apontadas. A ponderação de valores entre a eventual falta processual e, no caso, o direito a exercer a sua defesa relativamente a decisão que se pronunciou no sentido da sua condenação em pena de prisão impõe tal interpretação, sob pena de violação das normas dos arts. 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa. Aliás, a não ser resta a interpretação adoptada, tem a recorrente tratamento diferenciado relativamente a caso análogo da norma do art. 412°, n° 2 do C. P. Penal, pelo que, também por esta se via violaria o direito e norma consagrado no art. 13° n° 1 da Constituição da República Portuguesa. Entende, pois, a recorrente que a norma do art. 412°, n° 3 do Código do Processo Penal, quando interpretada no sentido adoptado pelas instâncias recorridas, é inconstitucional por violação das normas dos arts. 13°, n° 1 e 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa. [...]”.
7. Notificado para responder, querendo, à alegação da recorrente, disse o Ministério Público, a concluir:
“Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 - O direito ao recurso, ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa, envolve a possibilidade de o arguido provocar a reapreciação das decisões condenatórias, incluindo a decisão proferida acerca da matéria de facto.
2 - Cabe à lei de processo definir os requisitos ou condições processuais ou adjectivas de exercício do direito ao recurso, podendo condicioná-lo ao cumprimento de certos ónus ou formalidades, apenas estando vedado ao legislador infraconstitucional a prescrição de exigências funcionalmente inadequadas aos fins do processo ou o estabelecimento de cominações ou preclusões claramente desproporcionadas.
3 - Constitui exigência desproporcionada a que se traduz em cominar, para certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, a rejeição liminar do recurso, sem lhe possibilitar o aperfeiçoamento dos vícios formais detectados, ligados exclusivamente à apresentação, exposição ou condensação de uma impugnação, deduzida em termos concludentes e inteligíveis no âmbito da motivação do recurso.
4 - Porém, os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso não implicam que ao recorrente deve ser facultada oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a própria motivação do recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando seja manifesto, pelo teor da motivação apresentada, que a impugnação deduzida não se mostra formulada, em termos inteligíveis, concludentes e fundamentados.
5- Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II - Fundamentação.
8. Questão prévia. Delimitação do objecto do recurso.
No requerimento de interposição do recurso, afirmou a recorrente pretender ver apreciada a constitucionalidade dos “arts. 70º do Código Penal e arts. 174°, n°
3, 176°, n° 1 e 412°, n° 3 do Código de Processo Penal, com a interpretação que lhe foi dada no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra”.
Contudo, por despacho, de 9 de Outubro de 2003, com o qual se conformou a recorrente, foi já decidido excluir do objecto do recurso as normas constantes dos artigos 70º do Código Penal e 174°, n° 3, 176°, n° 1 do Código de Processo Penal, pelas razões constantes daquele despacho, que acima se transcreveu integralmente.
Está, assim, o recurso limitado no seu objecto à apreciação da constitucionalidade da norma constante do n° 3 do artigo 412° do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e do artigo 412º do Código de Processo Penal, tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência.
9. Julgamento do objecto do recurso
É o seguinte o teor do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
“Artigo 412º
(Motivação do recurso e conclusões)
[...]
3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
[...].”
9.1. O Tribunal Constitucional pronunciou-se já, por uma vez, sobre a alegada inconstitucionalidade de uma determinada interpretação normativa do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Fê-lo, concretamente, no Acórdão n.º 259/02
(publicado no Diário da República, II série, de 13 de Dezembro de 2002), tirado na 1ª Secção, em que concluiu pela não inconstitucionalidade daquele preceito quando interpretado em termos de a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação (sublinhados nossos).
Aquele julgamento de não inconstitucionalidade não é, porém, transponível para os presentes autos, uma vez que a dimensão normativa do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal que foi objecto daquele acórdão não coincide, em dois aspectos essenciais - no sentido de que contribuíram decisivamente para aquele julgamento -, com aquela que agora vem colocada à apreciação do Tribunal.
Vejamos melhor.
Por um lado, e decisivamente, enquanto que ali estava em causa um recurso interposto pelo assistente, nos presentes autos está em causa um recurso interposto por um arguido. Ora, esta diferença é essencial, na medida em que obriga a que, diferentemente do que acontecia nos autos que deram origem ao Acórdão n.º 259/02, a questão de constitucionalidade que agora vem colocada tenha de ser perspectivada à luz das garantias de defesa do arguido e, em particular, do direito ao recurso, expressamente consagrado no que se refere ao arguido no artigo 32º, n.º 1, da Constituição. É que, como também se explicitou no próprio Acórdão n.º 259/02, “a norma do artigo 32º, n.º 1, da Constituição não é aplicável ao assistente, nem existe qualquer preceito constitucional
(nomeadamente, o n.º 7 deste mesmo artigo 32º, que expressamente se refere ao ofendido) ordenando a equiparação do estatuto do assistente ao do arguido. Bem diversamente, as formas de intervenção do ofendido no processo penal são remetidas, pela Constituição, para a lei ordinária (cfr., a este propósito, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 579/2001, de 18 de Dezembro, publicado no Diário da República, II Série, n.º 39, de 15 de Fevereiro de 2002, p. 3050)”.
O parâmetro constitucional com o qual tem de ser confrontada a presente interpretação normativa do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal é, em suma, substancialmente diferente do parâmetro constitucional com o qual foi confrontada a interpretação normativa que foi objecto do Acórdão n.º 259/02. Como ali se reconheceu, “não sendo a posição do assistente que recorre idêntica
à do arguido que recorre”, no sentido de que o nível de protecção que à posição processual do arguido em processo penal é conferido pelo artigo 32º, n.º1, não coincide com o nível de protecção que à posição processual do assistente é conferido pelo n.º 7 do mesmo artigo 32º ou pelo artigo 20º da Constituição, é à luz daquele, e não destes, que deve ser perspectivada a questão de constitucionalidade que vem colocada.
Por outro lado, nos autos que deram origem ao Acórdão n.º 259/02, o tribunal recorrido, para poder concluir que o recorrente não havia impugnado a matéria de facto nos termos exigidos pelo artigo 412º, n.º s 3 do Código de Processo Penal, ponderou não apenas o teor das conclusões mas da própria motivação do recurso. Ora, nos presentes autos, não é possível produzir idêntica afirmação, como de seguida se demonstrará.
Em primeiro lugar porque, diferentemente do que acontecia naqueles autos, nestes não resulta do texto da decisão recorrida que, para poder concluir que a recorrente não havia impugnado a matéria de facto nos termos exigidos pelo artigo 412º, n.º s 3 do Código de Processo Penal, tenha sido ponderado não apenas o teor das conclusões mas da própria motivação do recurso, Com efeito, para concluir dessa forma, limitou-se aquela decisão a afirmar: “como se verifica pelas respectivas conclusões, os recorrentes impugnam a matéria de facto fixada na decisão recorrida, o que lhes é permitido, dado que a prova produzida em audiência foi gravada (arts 364° e 428° do Cod. Proc. Penal). Todavia, tal também impõe que os recorrentes cumpram o que a legislação penal adjectiva estatui quando se pretenda usar de tal faculdade, nomeadamente que sejam especificados os pontos de facto que se considera como incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa, bem como as que devem ser renovadas. Nada disso fazem e a consequência de tal inobservância está consagrada no art. 431°, al. b) do mesmo compêndio normativo, ou seja, este tribunal não pode modificar a matéria de facto”.
Em segundo lugar, e decisivamente, porque lendo a motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, dela parece resultar uma conclusão contrária à que foi pressuposta pelo Acórdão n.º 259/02. Com efeito, ao longo das 36 páginas refere-se a recorrente, por várias vezes, quer a concretos pontos de facto que, no seu entender, foram incorrectamente julgados, quer a elementos de prova que, ainda no seu entender impõem uma decisão diversa (cfr., a título meramente exemplificativo, fls. 1039, onde se refere que “o douto acórdão recorrido errou ao julgar a matéria de facto tida por provada sob o n.º 2 do elenco dos factos provados”, explicitando depois a recorrente, em relação a cada um dos elementos de prova utilizados pela decisão recorrida para dar como provado aquele facto, porque é que, no seu entender, esses elementos de prova impõem decisão diversa
(fls. 1040 a 1047).
9.2. Demonstrada a impossibilidade de transpor para os presentes autos a fundamentação e o julgamento de não inconstitucionalidade que se formulou no Acórdão n.º 259/02, é altura de enfrentar a questão que, nestes autos, vem colocada: é o n° 3 do artigo 412° do Código de Processo Penal inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, quando interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e do artigo 412º do Código de Processo Penal, tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência ?
A esta questão há que responder afirmativamente, por valerem aqui inteiramente as razões que levaram já o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 320/02
(publicado no Diário da República, I Série-A, de 7 de Outubro de 2002), a declarar, com força obrigatória geral, “a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”.
Para concluir desta forma o Tribunal Constitucional remeteu, naquele aresto, para a fundamentação utilizada no Acórdão n.º 288/2000, em que se ponderou:
“No que se refere à existência de preceitos, como é o caso do artigo 412º do Código de Processo Penal, que exigem que as alegações de recurso terminem com a formulação de conclusões - com determinado conteúdo obrigatório e elaboradas de determinada forma - este Tribunal afirmou já (cfr., designadamente, os Acórdãos n.º 715/96, 38/97 Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., p. 235 e 36º vol., p. 209, respectivamente), que a sua simples existência não afecta, só por si, o princípio da plenitude das garantias de defesa consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucionais. O problema não reside, porém, neste aspecto, mas antes, no quadro de um procedimento que ao arguido tem de assegurar todas as garantias de defesa (cfr. art. 32º, n.º 1 da Constituição), na circunstância de à falta de cumprimento dos
ónus estabelecidos no n.º 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal se associar um efeito preclusivo tão duro quanto a rejeição liminar do recurso. A questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração do Tribunal Constitucional pode, assim, enunciar-se nos seguintes termos:
É inconstitucional a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado ?
8. O Tribunal Constitucional considerou já inconstitucionais - por violação do disposto no artigo 32º n.º 1 da Constituição - os artigos 412º n.º 1 e 420º n.º
1 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido da falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem a formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões (cfr., nesse sentido, os Acórdãos n.º 193/97 - inédito -, 43/99, Diário da República, II série, de 26 de Março de 1999; e 417/99 - inédito -). Ponderou, então, o Tribunal Constitucional, logo no primeiro daqueles Acórdãos:
«A plenitude das garantias de defesa, emergente do artigo 32º n.º 1 do texto constitucional, significa o assegurar em toda a extensão racionalmente justificada de 'mecanismos' possibilitadores de efectivo exercício desse direito de defesa em processo criminal incluindo o direito ao recurso (o duplo grau de jurisdição) no caso de sentenças condenatórias (v. os Acórdãos deste Tribunal nºs 40/84, 55/85 e 17/86, respectivamente nos ATC, Vol. 3, p.241 e Vol. 5, p.
461 e DR-II de 24/4/86). Recentemente, no Acórdão n.º 575/96, ainda inédito, teve este Tribunal oportunidade de se pronunciar a este respeito, a propósito do artigo 192º do Código das Custas Judiciais, entendendo-o inconstitucional - por ofensa dos artigos 18º n.º 2 e 32º n.º 1 da Constituição - 'na medida em que prevê que a falta de pagamento, no tribunal a quo, no prazo de sete dias, da taxa de justiça devida pela interposição de recurso de sentença penal condenatória pelo arguido determina irremediavelmente que aquele fique sem efeito, sem que se proceda à prévia advertência dessa cominação ao arguido-recorrente'. Com interesse para a presente situação aí se escreveu:'... ao ditar irremediavelmente a imediata deserção do recurso, pelo simples não cumprimento do ónus de pagamento da taxa
(...) em determinado prazo, sem que ocorra qualquer formalidade de aviso ou comunicação ao arguido sobre as consequências desse não pagamento, a norma em apreço (trata-se, como se referiu, do artigo 192º do CCJ) procede a uma intolerável limitação do direito ao recurso e, consequentemente, ao direito de defesa em processo penal.' (sublinhado do texto). O argumento da celeridade conatural ao processo penal, como impossibilitando aqui a adopção de um sistema semelhante ao do processo civil (onde à deficiência e/ou obscuridade das conclusões corresponde um convite para aperfeiçoamento - artigo 690 n.º 3 do Código de Processo Civil), argumento decisivo na decisão recorrida, não colhe. A concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa é aqui possível e, mais que isso, é exigida pelo artigo 18º n.º 2 da Constituição, sendo certo que no caso contrário se estará a promover desproporcionadamente o valor celeridade à custa das garantias de defesa do arguido. Os artigos 412º n.º 1 e 420º n.º 2 contêm suficiente espaço de interpretação para possibilitar um entendimento que, face a conclusões de recurso tidas por não concisas (onde não se resuma as razões do pedido), não deixe de permitir-se uma possibilidade de aperfeiçoamento das mesmas, configurando uma interpretação constitucionalmente conforme. As normas em causa, na concreta interpretação que delas fez a decisão recorrida mostram-se, assim, violadoras do artigo 32º n.º 1 da Lei Fundamental». Por sua vez, nos Acórdãos n.º 43/99 e 417/99, pode ler-se, no mesmo sentido:
«Ora, uma interpretação normativa dos preceitos que regulam a motivação do recurso penal e as respectivas conclusões (artigos 412º e 420º do CPP) de forma que faça derivar da prolixidade ou de falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, que não permita um prévio convite ao aperfeiçoamento da deficiência detectada, constitui uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça». Por outro lado, agora no âmbito do processo contra-ordenacional, considerou já o Tribunal Constitucional ser incompatível com a Constituição uma interpretação normativa dos artigos 59º, n.º3 e 63º, n.º1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de
27 de Outubro, que conduzisse à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido quando se verifique “falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação” (cfr. Acórdão n.º 303/99, Diário da República, II Série, de 16 de Julho de 1999) ou quando tal recurso seja apresentado “sem conclusões” (cfr. Acórdão n.º 319/99, Diário da República, II Série, de 22 de Outubro de 1999). No Acórdão n.º 303/99, ponderou o Tribunal:
«Com efeito, sendo dado adquirido que a recorrente apresentou 'em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática da contra-ordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada', a lógica da
'concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa' impõe, na óptica do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, que se faça apelo ao sistema processual civil, em que pode funcionar um convite para aperfeiçoar as conclusões (artigo 690º, 4, do Código de Processo Civil). Tanto mais que in casu há uma conclusão, embora seja única (aliás, antecedida por considerações acerca da matéria de facto e da aplicação do direito a essa matéria), e não era necessário 'chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem o valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido', na linguagem do Acórdão n.º 193/97”. Tanto basta para concluir que a interpretação e a aplicação que foi feita das normas referidas, afectando desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), revelam-se violadoras das normas conjugadas dos artigos 32º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição». Por sua vez, no Acórdão n.º 319/99, pode ler-se:
«Quanto à falta de concisão ou prolixidade das alegações, o Tribunal já decidiu que a rejeição do recurso pelo facto de as conclusões estarem afectadas daquelas deficiências, sem que o recorrente tenha sido previamente convidado para as corrigir, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), garantido pelo artigo 32º, n.º1, da Constituição (cf. Acórdãos n.º 193/97 e 43/99, ainda inéditos). Não se vê razão para concluir diferentemente se a falta for das próprias conclusões. Com efeito, se a rejeição do recurso só ocorre faltando a motivação, a extensão desta ‘sanção’ à falta das conclusões consiste num alargamento do
âmbito da norma, ou seja, na criação de um outro fundamento de rejeição. Por outro lado, o dever de convidar o recorrente a apresentar as conclusões antes de rejeitar o recurso corresponde à exigência de um processo equitativo, porquanto o essencial do próprio recurso – as alegações ou a motivação – já se encontram nos autos, apenas faltando a fase conclusiva. Tem, por isso de se concluir que, no caso de um recurso em processo de contra-ordenação – em que valem também as garantias constitucionais do direito de audiência e do direito de defesa – a rejeição do recurso que não contiver as respectivas alegações sem que o recorrente seja convidado a apresentá-las previamente a essa rejeição, afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º10 da Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação da norma constante dos artigos 59º, n.º3 e 63º, n.º1, ambos do Decreto-lei n.º 433/82, de
27 de Outubro, feita na decisão recorrida, é inconstitucional.»
9. Pois bem, o que antecede permite desde já concluir que, também na situação que agora é objecto dos autos o Supremo Tribunal de Justiça terá utilizado uma interpretação normativa do artigo 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal que afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição. Vale aqui, evidentemente, um argumento de maioria de razão relativamente ao anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional, designadamente no já citado Acórdão n.º 319/99. Como, bem, nota o Ministério Público na sua alegação, “se a
(pura e simples) não apresentação de conclusões em processo contra-ordenacional deve determinar – sob pena de inconstitucionalidade – o convite ao suprimento de tal vício, é manifesto que o vício formal menos grave (mera insuficiência, e não inexistência de conclusões) em processo (penal) – em que vigoram maiores e mais amplas garantias de defesa – não pode deixar de levar a idêntico juízo de inconstitucionalidade. Assim, é efectivamente inconstitucional, designadamente por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 da Constituição, a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado.”
9. A argumentação do Acórdão n.º 288/2000 foi reforçada pela ulterior jurisprudência do Tribunal. Com efeito, o argumento analógico tirado dos Acórdãos nºs 193/97 (ATC, 36, 395), 43/99 (ATC, 42, 171) e 417/99 (Diário da República, II série, de 13 de Março de 2000), que consideraram inconstitucional os artigos 412º, n.º1 e 420º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência, passou a poder apoiar-se também na generalização, feita pelo Acórdão n.º 337/2000, Diário da República, I série-A, de 21 de Julho de 2000 a partir dos dois últimos destes acórdãos e ainda do Acórdão n.º 43/2000 (ATC, 46, 803). Do mesmo modo, o argumento por maioria de razão tirado dos Acórdãos n.º 303/99 (ATC, 43, 605) e n.º 319/99 (ATC, 43, 64/), que consideraram inconstitucional a norma que resulta das disposições conjugadas constantes do n.º 3 do artigo 59º e do n.º 1 do artigo 63º, ambas do Decreto-Lei nº433/82, de 27 de Outubro, na dimensão interpretativa segundo a qual a falta de formulação de conclusões na motivação do recurso, por via do qual se intenta impugnar a decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima, implica a rejeição do recurso, sem que o recorrente seja previamente convidado a efectuar tal formulação, passou a poder apoiar-se também na generalização, operada pelo Acórdão n.º 265/2001 de 10 de Julho de 2001, Diário da República, I série–A, de
16 de Julho de 2001, a partir do segundo daqueles acórdãos e ainda dos Acórdãos n.º 509/2000 e 590/2000 (inéditos). Há que confirmar, portanto, a doutrina dos acórdãos-fundamento, cuja fundamentação retém inteira validade. Com efeito, a interpretação do artigo
412º, n.º 2 do Código de Processo Penal no sentido de que impõe a rejeição liminar do recurso do arguido quando faltar a indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c), sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência, implica uma desproporcionada restrição do direito à defesa do arguido, na dimensão do direito ao recurso, consagrado pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição”.
Esta jurisprudência, que mantém inteira validade, é inteiramente transponível para os presentes autos, uma vez que, também aqui, houve lugar a um não conhecimento da impugnação da matéria de facto e à improcedência do recurso. Ora, na perspectiva das garantias de defesa, que é a aqui relevante, é absolutamente indiferente que o ónus que não é cumprido pelo arguido recorrente seja o da não indicação, nas conclusões da alegação do recurso, das menções a que se referem o n.º 2, com a consequente rejeição do recurso, ou das menções a que se referem o n.º 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, com o consequente não conhecimento da matéria e a improcedência do recurso.
III - Decisão.
Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso do arguido nessa parte, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência;
b) em consequência, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 31 de Outubro de 2003
Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Luís Nunes de Almeida