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Proc. n.º 471/97
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção deste Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. O Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo recorreu para este Tribunal Constitucional do Acórdão proferido por aquele Tribunal, de 22 de Maio de 1997, proferido no recurso contencioso interposto por A., identificado com os demais sinais dos autos, o qual recusou, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, a aplicação das normas do art.º 92º, n.º
1 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo DL. n.º 231/93, de 26 de Junho, e do artº 5.º do Estatuto do Militar da Guarda, aprovado pelo DL. n.º 265/93, de 31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos “militares da Guarda”, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no Regulamento de Disciplina Militar e, como consequência de tal interpretação, declarou nulo o despacho concretamente recorrido, traduzido num despacho proferido pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, de 24/7/95, de indeferimento do recurso hierárquico interposto de decisão do Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana, de 30/06/94, que negou provimento à reclamação deduzida pelo recorrente do despacho de 6/6/94, que lhe aplicou a pena de 20 dias de prisão disciplinar agravada.
2. O acórdão recorrido estribou-se, em síntese, na consideração de que emerge do art.º 270º da CRP uma clara destrinça entre os militares e os agentes militarizados, ao falar distintamente das duas categorias. Por outro lado, a lei fundamental limitou a possibilidade da aplicação das penas disciplinares de prisão, a que a alude a previsão da al. c) do n.º 3 do art.º
27º da CRP, apenas aos militares, por razões históricas, de cobrir uma prática existente, condicionando-a, de qualquer modo, à garantia de recurso contencioso para o tribunal competente. Fora desse âmbito pessoal, a pena disciplinar de prisão atentaria contra o princípio consagrado no art.º 27º n.os 1 e 2 da CRP, ou seja, de que ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade a não ser em consequência de sentença condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. E acabou por julgar materialmente inconstitucionais, na senda da jurisprudência que citou, relativa a casos análogos, as normas do art.o 92º, n.º 1 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo DL. n.º 231/93, de 26 de Junho e do art.º 5º do Estatuto do Militar da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo DL. n.º 265/93, de 31 de Julho e por anular o despacho recorrido por lesar o núcleo essencial de um direito fundamental.
3. Pelo despacho de fls. 101, o então Relator ordenou a baixa dos autos ao tribunal a quo para efeitos da eventual aplicação da amnistia decretada pela Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, tendo esse tribunal decidido não ser a amnistia aplicável ao caso dos autos.
4. Nas suas alegações de recurso, neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto concluiu que “as normas constantes do artigo 92º, n.º 1 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho e do artigo 5º do Estatuto do Militar da Guarda, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos militares da Guarda, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no RDM, são organicamente inconstitucionais, por preterição do disposto no art.º 168º, n.º
1, al. b), da Constituição da República Portuguesa, na versão vigente à data da edição daqueles diplomas.
5. Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
B – A fundamentação
6. A questão decidenda
É a de saber se as normas constantes do artigo 92º, n.º 1 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho e do artigo 5º do Estatuto do Militar da Guarda, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos militares da Guarda, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no RDM, são orgânica ou materialmente inconstitucionais.
7. A problemática da constitucionalidade da previsão da medida de prisão disciplinar, constante, igualmente, de outros diplomas legais relativamente aos
«agentes militarizados» de outras forças de segurança, já foi objecto de apreciação por este Tribunal Constitucional. Assim, no Acórdão n.º 103/87, publicado no BMJ n.º 365º, pp. 314 e ss. e 402º, pp. 83 e ss. e, mais recentemente, nos versados nos Acórdãos n.os 725/95 e 119/96, publicados, no DR., II, Série, respectivamente, de 22/03/96 e 07/05/96 e no Acórdão n.º 500/98
(inédito). Em todos eles, e para além de outras adrede postas, sempre esteve presente a questão de saber se a medida de prisão disciplinar imposta a militares das Forças Armadas (com garantia de recurso para o tribunal competente), que foi introduzida no art.º 27º, n.º 3, alínea c), da Constituição da República, na revisão de 1982, e posteriormente sempre mantida em outras alíneas do mesmo artigo, era de aplicar ao pessoal de outros Quadros com funções, mormente de segurança, ditos de forças ou corpos militarizados, como o pessoal do Quadro Militarizado da Marinha (Acórdão 308/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º volume, págs. 97 e segs., e BMJ 402º, págs. 83), aos agentes militarizados da Polícia de Segurança Pública (Acórdão, referido, n.º 103/87) e «aos militares» da Guarda Fiscal, na situação da reserva
(Acórdãos, referidos, n.os 725/95 e 119/96), corpo esse entretanto extinto pelo DL. 230/93, de 26 de Junho e integrado na GNR, onde passou a constituir uma nova unidade operacional designada de Brigada Fiscal.
8. No Acórdão n.º 103/87, o Tribunal, em provimento do pedido efectuado pelo Presidente da Assembleia da República, declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de todas as normas do Regulamento Disciplinar do Pessoal da Polícia de Segurança Pública, aprovado pelo Decreto n.º 40 118, de 6 de Abril de 1955, ou seja, das normas dos artigos 27º, 33º e do art.º 52º, esta na parte em que prevê a aplicação de penas disciplinares sem dependência de processo, salvo enquanto aplicável à pena de admoestação.
No caso apreciado pelo Acórdão n.º 308/90, este Tribunal Constitucional, conhecendo de pedido efectuado pelo Provedor de Justiça, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do art.º
4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 282/76, de 20 de Abril, que dispõe que o pessoal do Quadro de Pessoal Militarizado da Marinha fica sujeito ao foro militar, na parte aplicável a militares, em função das equivalências entre as suas categorias funcionais e os postos militares da Armada, por violação dos artigos
27º e 215º da Constituição. Ou seja, o Tribunal encaminhou-se pela via da inconstitucionalidade material da norma questionada que previa a aplicação daquela pena de prisão disciplinar.
9. Nos demais casos resolvidos nos Acórdãos proferidos por este Tribunal, todos relativos a «militares» da Guarda Fiscal, na situação de reserva, o tribunal decidiu-se pela inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea c) do artigo 167º da versão originária da Constituição, da norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 143/80, de 21 de Maio, enquanto determina a aplicabilidade a cabos e soldados da Guarda Fiscal, na situação de reserva, das penas de prisão e prisão disciplinar agravada nos artigos 27º e 28º do regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 124/77, de 9 de Abril.
10. Ora, cabe antes de mais notar que não será possível sustentar, no caso sub judicio, a inconstitucionalidade orgânica das normas constantes dos art.os 92º, n.º 1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (LOGNR), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, e 5º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
265/93, de 31 de Julho, enquanto determinando a aplicação aos militares da Guarda Nacional Republicana do Regulamento de Disciplina Militar ao abrigo do qual A. foi condenado a pena de prisão disciplinar agravada.
E diz-se que não pode porque, nesta matéria, tais preceitos nada inovaram. Na verdade, a disciplina jurídica que deles emerge pode ser colhida directamente do disposto nos art.os 69º, n.º 1, e 32º, da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro) e do preceituado nos art.os 2º, alínea e), 4º, 5º e 16º da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho. Naquele sentido, e com referência aos militares do serviço efectivo da Guarda Fiscal, mas perfeitamente transponível para o presente contexto, pode ler-se no citado acórdão n.º 119/96:
« De facto, só esta disposição [está a referir-se ao art.º 1º do Decreto-Lei n.º
143/80, de 21 de Maio] torna aplicável aos oficiais, sargentos e praças da Guarda Fiscal, no activo, na reserva e na reforma, o Regulamento de Disciplina Militar, ao passo que o art.º 69º, n.º 1, da Lei n.º 29/82 - ao remeter para o n.º 1 do art.º 32º da mesma Lei - só torna aplicável o Regulamento de Disciplina Militar “aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo [...] na Guarda Fiscal” [...]». Poderá objectar-se que a normatividade que deflui da conjugação do disposto no art.º 62º com o estabelecido no art.º 32º da referida Lei de Defesa Nacional não tem a natureza de um comando imediatamente prescritivo, quanto à aplicação aos militares da GNR do Regulamento de Disciplina Militar e do Código de Justiça Militar, que seja regulador das relações jurídicas e como tal aplicável imediatamente, mas antes simplesmente que externa uma opção político-legislativa quanto ao regime a definir no futuro – uma espécie de norma programática - relativamente à sua sujeição ao regime disciplinar e penal a aprovar posteriormente. Ora, relativamente a esta matéria, há que acentuar, desde logo, que a aplicabilidade, aos ‘militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana’ [sendo que, no caso sub judicio, apenas importa relevar a situação relativamente aos militares dos quadros permanentes em serviço efectivo], do regime a que alude o art.º 32º se apresenta feita no art.º 69º da referida Lei de Defesa Nacional (Lei n.º 29/82) como uma opção político-legislativa tomada a título definitivo, ao contrário do que acontece, no n.º 2 do mesmo artigo, relativamente à Polícia de Segurança Pública. Sendo assim, e porque a sujeição a esse especial regime disciplinar e penal dos militares da GNR era já o regime que vigorava até então, não se vêm razões para se defender que apenas o regime a definir no futuro, de acordo como os procedimentos normativos estabelecidos nesse art.º 32º, passaria a aplicar-se-lhes. De qualquer modo - e mesmo para quem assim pense - não pode deixar de concluir-se que, perante o disposto nos art.os 2º, alínea e), 4º, 5º e 16º da referida Lei n.º 11/89, de 1 de Junho, passou a ser aplicável aos militares da GNR no activo o regime disciplinar já então em vigor para os militares, independentemente da intenção legislativa manifestada no art.º 17º da mesma Lei de vir a ser aprovado um novo ‘Regulamento de Disciplina Militar por lei da Assembleia da República ou, mediante autorização legislativa, por decreto-lei do Governo’. Assim sendo, havendo tanto a Lei n.º 29/82, como a Lei n.º 11/89, sido emitidas pela Assembleia da República e delas resultar ser aplicável aos ‘militares [...] dos quadros permanentes [...] em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana” o Regulamento de Disciplina Militar, não poderá dizer-se que o Governo, que emitiu aqueles diplomas da LOGNR e do EMGNR ao abrigo da competência estabelecida na alínea a) do n.º 1 do artigo 201º da CRP (domínio de competência legislativa concorrente com a Assembleia da República), tenha regulado matéria abrangida na competência exclusiva da Assembleia da República prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 168º da CRP (matéria de “direitos, liberdades e garantias”), na redacção então vigente, pois essa normatividade já tinha sido criada pelo órgão constitucionalmente competente - a Assembleia da República.
11. Deste modo, a única questão que se imporá resolver é a de saber se a aplicabilidade aos militares da Guarda Nacional Republicana da pena de prisão disciplinar, constante do Regulamento de Disciplina Militar, atentará contra a garantia fundamental da liberdade de “ninguém poder ser total ou parcialmente privado” dela “a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”, a todos reconhecida nos n.os 1 e 2 do art.º 27º da CRP, ou, se ela se encontra coberta pela excepção contemplada na al. d) do n.º 3 do mesmo artigo.
E a ser assim, a questão redunda em saber se as normas constantes do artigo 92º, n.º 1 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho e do artigo 5.º do Estatuto do Militar da Guarda, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos militares da Guarda, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no RDM e enquanto incorporando a normatividade constante do n.º 1 do art.º 69º da Lei n.º 29/82, no qual se remete para o art.º 32º da mesma lei [e aqui se dispõe que em matéria de justiça e de disciplina “as exigências específicas das Forças Armadas serão reguladas, respectivamente, no Código de Justiça Militar e no Regulamento de Disciplina Militar”], são materialmente inconstitucionais por ofensa ao disposto no n.º 2 do art.º 27º da CRP. Ora, tal só não sucederá se essa norma couber na hipótese a que se refere a excepção prevista na al. c) do n.º 3 do art.º 27º da CRP ou seja, “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar”, entre outros, “no caso de prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente”.
A decisão recorrida, enfrentando expressamente tal questão, deu-lhe uma resposta negativa, na base do entendimento de que o sentido da palavra
“militares” usada na conformação linguística do referido preceito, equivale apenas ao conceito de militares das Forças Armadas, estando dele excluídos quem se encontra em “instituição distinta das Forças Armadas, “embora os seus agentes sejam equiparados a militares para certos efeitos, como sucede com os da extinta Guarda Fiscal ou da Guarda Nacional Republicana”.
Mas uma tal conclusão não pode este Tribunal acolhê-la. Antes de mais cumpre acentuar que a Constituição em ponto algum procede a uma definição do conceito de “militar”. Por outro lado, é de notar que sempre que utiliza o termo “militar”, a Lei Fundamental fá-lo, essencialmente, na perspectiva de salientar a sujeição a um certo estatuto pessoal próprio ou específico por parte de quem se integra nesse ‘tipo’ de pessoas e de relevar, prevalentemente, a sua inserção organizatória. Ou seja, a Constituição refere o conceito sem o adstringir directamente a qualquer função ou atribuições constitucionais. E isso
é assim mesmo em relação às associações de que fala o n.º 4 do art.º 46º da CRP, dado que o substracto directo destas é constituído por pessoas e o que verdadeiramente aí sobressai vinculado funcionalmente ao fim que se pretende evitar é o modo como as mesmas se organizam. Como o é quando fala do “serviço militar”, pois, aqui, o que se acentua é, essencialmente, a obrigatoriedade dos cidadãos portugueses prestarem um serviço e este serviço tem, como é sabido, um certo enquadramento organizatório. Para além do referido art.º 27º, n.º 3, al. c), o termo “militar” é utilizado, na CRP, como acaba de acentuar-se, no n.º 4 do art.º 46º, ao dizer que “não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações que perfilhem a ideologia fascista”, no art.º
270º, introduzido na revisão constitucional de 1982, e em que se dispõe que “a lei pode estabelecer restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, na estrita medida das exigências das suas funções próprias” e, finalmente, no n.º 2 do art.º 276º ao dispor-se que “o serviço militar é obrigatório”.
Mas destes dois últimos preceitos resulta, também, que a Constituição autonomiza o estatuto “militar” ou essa singular forma de organização de pessoas em relação a outras que terão com eles alguns índices de semelhança, como são o dos “agentes militarizados” ou associações “militarizadas ou paramilitares”.
Acentue-se, ainda, que, tendo procedido à definição da função constitucional da Defesa Nacional e das Forças Armadas e, não obstante ter previsto alguns seus aspectos organizatórios, como sejam a previsão da existência do Conselho Superior de Defesa Nacional, a intervenção de todos os Portugueses na defesa da Pátria e a obrigatoriedade do “serviço militar”, a lei básica, como já se referiu, não ligou o conceito “militar” a qualquer específica função ou atribuição constitucional, maxime, às Forças Armadas, mas antes o conexionou com uma certa forma singular de prestar serviço, ou seja, com acentuação da prestação de “serviço militar” ou seja, dentro de certa situação organizatória.
Como se demonstra no referido Acórdão n.º 103/87, a cuja fundamentação aqui se adere, tanto os elementos literais, como os histórico-sistemáticos do art.º 270º da CRP, introduzido, como se disse, na revisão de 1982, apontam no sentido do legislador constituinte ter assumido um conceito “tipológico”, que não “definitório”, de “militares” e “agentes militarizados”, tomando por referente a situação institucional e legal que, em matéria de forças armadas e de força de segurança, então se lhe deparava e onde relevava não tanto um critério do seu “estatuto profissional”, mas sobretudo o critério da sua “situação organizatória”.
Ora, como aí se diz, no domínio das forças de segurança, “tal situação caracterizava-se pela existência de uma pluralidade de forças de segurança - com objectivos, âmbitos territoriais de actuação e estruturas diferenciadas - mas onde o legislador distinguia claramente entre as que, constituindo «corpos especiais de tropas», eram, ainda (quanto à forma que não à função), «forças militares», e outras que simplesmente qualificava como forças ou organismos «militarizados»: no primeiro caso estavam - e, de resto, ainda estão - a Guarda Nacional Republicana e a Guarda Fiscal (v., quanto à primeira, Lei de 3 de Maio de 1911, artigo 1º, e Decreto-Lei n.º 33 905, de 2 de Setembro de 1944, artigos 5º e 9º, e, agora, o Decreto-Lei n.º 333/83, de 14 de Julho, em cujo artigo 1º ela é expressamente qualificada com um «corpo especial de tropas que faz parte das forças militares»; e quanto à segunda, designadamente os Decretos-Leis n.º 143/80, de 21 de Maio, em particular o preâmbulo, e n.º
544/80, de 11 de Novembro, artigo 8º, e o Decreto n.º 80/82, de 22 de Junho, e, agora, o Decreto-Lei n.º 373/85, de 20 de Setembro, em cujo artigo 1º se qualifica a Guarda Fiscal igualmente como um «corpo especial de tropas»; no segundo caso estava, precisamente, a Polícia de Segurança Pública (v. Decreto-Lei n.º 39 497, de 31 de Dezembro de 1953, artigo 1º)”.
Abordando o elemento literal de interpretação, o mesmo acórdão faz notar que “o qualificativo «militarizado» aponta necessariamente para uma realidade que, por definição, ou na essência, não é militar, mas recebe certas características típicas da instituição militar, vindo a assumir uma feição similar à desta; qual seja a área e grau em que tal similitude deve ocorrer para se poder falar de «militarização» não o diz directamente o qualificativo em causa; mas é seguro que ele não convém só às situações (admitindo que a elas ainda possa convir) em que acaba por verificar-se uma mais ou menos completa
«identificação» (estatutária) entre a realidade em causa e a realidade militar, de tal modo que a primeira vem assumir a mesma natureza desta ou a incorporá-la: antes convém desde logo - e convém de modo mais directo - àquelas situações em que a realidade em questão se conserva extrínseca à realidade militar, mantendo a sua natureza substancial originária, e apenas é objecto de um enquadramento legal - mormente um enquadramento «organizatório - que parcialmente a reveste de uma configuração similar à daquela”.
E no que respeita ao elemento sistemático, o mesmo acórdão acaba por ver o desenho dos traços de distinção que deixou referidos no art.º 46º, n.º 4, que tem como “lugar paralelo”. “Na verdade - diz ele - quando aí se proíbe a criação de associações de «tipo militar, militarizadas ou paramilitares», a distinção tripartida feita pelo legislador constitucional não pode senão inculcar que uma instituição «militarizada» é algo que apenas se aproxima, através de determinadas características, da instituição «militar», mas com esta se não identifica, nem sequer é um seu desenvolvimento”.
Saber quais sejam essas características é questão que o art.º 270º da Constituição não o diz directamente, sublinha igualmente tal aresto. E não o dizendo - escreve-se igualmente aí - “são os operadores jurídicos remetidos para a consideração directa da realidade institucional que as Forças Armadas constituem (como instituição militar típica), aí lhes cumprindo recolher as notas significativas susceptíveis de preencherem o conceito constitucional”.
E seguidamente o mesmo Acórdão identifica como notas características que, decerto, avultam na instituição militar:
« - O estrito enquadramento hierárquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos;
- Correspondentemente, a subordinação da actividade da instituição
(e, portanto, da actuação individualizada dos seus membros), não ao princípio geral da direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência;
- O uso de armamento (e armamento com características próprias, de utilização vedada aos cidadãos e aos agentes públicos em geral) no exercício da função e como modo próprio desse exercício;
- O princípio do aquartelamento, ou seja, o agrupamento dos seus agentes em unidades de intervenção ou operacionais dotadas de sede física própria e de um particular esquema de vida interna, unidade a que os respectivos membros ficam em permanência adstritos, com prejuízo, para a generalidade deles, da possibilidade (e do direito) de utilização da residência própria;
- A obrigatoriedade, para os seus membros, do uso de farda ou de uniforme;
- A sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares e, eventualmente, jurídico-penais».
Anote-se, de resto, que esta é, também, a exacta compreensão que o legislador infraconstitucional tem dos índices característicos da condição militar. Na verdade, ao legislar sobre as bases gerais do estatuto da condição militar, diz a referida Lei n.º 11/89, de 1 de Junho:
Art.º 2.º A condição militar caracteriza-se:
a) Pela subordinação ao interesse nacional; b) Pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; c) Pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra; d) Pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei; e) Pela aplicação de um regime disciplinar próprio;
f) Pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais; g) Pela restrição, constitucionalmente prevista, do exercício de alguns direitos e liberdades;
h) Pela adopção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das forças armadas;
i) Pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação».
É de observar que o art.º 16º da mesma lei determina que ela se
“aplica aos militares da Guarda Nacional Republicana”.
12. Ora, tomando inteiramente por bons estes parâmetros, há que convir que todos eles se verificam relativamente à Guarda Nacional Republicana, quer na legislação do tempo (atrás identificada, tal como os seus preceitos mais relevantes) em que foram aditados a al. c) do n.º 3 do art.º 27º e o art.º 270º da CRP, quer na legislação actual [Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, maxime, artigos 1º, 9.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 12º, 13º, 18º, 21º, 22º, 23º,
31º, 32º, 63º a 72º, e Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, maxime, artigos
1º, 2º, 5º, 6º, 7º, 9º, 14º, 16º, 23º e 24º], quer na realidade física existente em cada um desses diferentes momentos. A este propósito basta lembrar as tarefas de índole militar que constantemente são atribuídas à GNR.
Na verdade, à face de tal legislação a Guarda Nacional Republicana sempre foi definida como sendo uma força de segurança constituída por militares organizada num corpo especial de tropas (art.os 1º da LOGNR e 1º a 4º do EMGNR). Uma tal definição adquire, desde logo, a característica verdadeiramente determinante dos militares das Forças Armadas que é a de serem um corpo de tropas, cuja função primordial é a “defesa militar da República”. E se é certo que as atribuições daquele corpo especial de tropas são, predominantemente, funções de autoridade de segurança, de polícia criminal, de polícia fiscal e de controlo da entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros do território nacional, não o deixa, também, de ser que, entre elas, se conta, igualmente, a de colaborar na execução da política de defesa nacional (art.º 2º da LOGNR). Por outro lado, constata-se que essas suas atribuições são levadas a cabo mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas. Assim, os seus membros estão organizados, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos (art.os 24º e 26º do EMGNR e 51º e 90º do EMGNR). O pessoal está distribuído por “Armas” e
“Serviços” e organizado por unidades de comando, de instrução, de brigadas
(unidades territoriais), brigada especial de trânsito, brigada especial fiscal, unidades de reserva, estas constituídas estas por um regimento de cavalaria e um regimento de infantaria (art.os 31º e 63º da LOGNR). A regra de subordinação das suas tropas no desempenho da sua actividade institucional assenta num princípio de comando em cadeia, segundo as diferentes patentes e postos (art.os 24º e 26º do EMGNR e 35º do EMGNR). Os militares da Guarda Nacional Republicana usam, para além de armamento ligeiro, armamento pesado de características militares, como sejam, entre outros, carros de combate, ligeiros e pesados, granadas e metralhadoras ligeiras e pesadas (art.º 21º da LOGNR). Nota-se, ainda, que os militares da GNR, no activo, estão agrupados em unidades de intervenção e unidades operacionais, pela forma acima apontada e toda a sua acção é desenvolvida, essencialmente, a partir dessas sedes de comando (art.os 35º a 62º da LOGNR). Por outro lado, essas unidades estão aquarteladas em locais - quartéis - , e os militares da GNR estão adstritos, em permanência, a eles, cumprindo regras específicas de vida interna, próprias de um corpo de tropas. Finalmente, os seus membros usam farda ou uniforme, cumprindo algumas das suas espécies a mesma funcionalidade dos uniformes das Forças Armadas, como os trajes de combate e assalto (art.os 21º da LOGNR). Por último, os militares da GNR sempre estiveram sujeitos às regras disciplinares do Regulamento de Disciplina Militar, e, no domínio penal, ao Código de Justiça Militar (Lei de 3 de Maio de
1911, Decreto-Lei n.º 33 905, de 2 de Setembro de 1944, Decreto-Lei n.º 333/83, de 14 de Julho e art.os 92º e 93º da LOGNR e 5º do EMGNR).
13. Assim sendo, é de incluir os militares da GNR, no activo, no conceito de militares a que alude a al. c) do n.º 3 do art.º 27º da CRP, ou seja, sob o ponto de vista constitucional, poder-lhes-á ser imposta a pena de prisão disciplinar nos termos do Regulamento de Disciplina Militar, com garantia de recurso para o tribunal competente, estando assim abrangidos pela excepção constitucional ao princípio de que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
E contra tal conclusão não vale, sequer, esgrimir o elemento histórico da inserção deste preceito, a que se agarra o acórdão recorrido, e que
é tratado no referido Acórdão n.º 308/90.
Como, aí, se diz, tal preceito “não constava de nenhum dos projectos de revisão constitucional submetidos à apreciação do Parlamento”.
E continua tal aresto:
“A esta temática referia-se apenas Jorge Miranda no seu projecto pessoal de revisão constitucional (Um projecto de revisão constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, p. 32) ao propor o aditamento de uma alínea com o seguinte teor: «prisão disciplinar imposta a militares, sem prejuízo do recurso para o tribunal competente». Justificando a proposta escrevia que «a prisão disciplinar imposta a militares (artigos 27º e 28º do RDM de 1977) não parece encontrar hoje fundamento no art.º 27º da Constituição, embora tenha sido objecto de uma das estranhas reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem
[artigo 2º, alínea a), da Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro]. É esse fundamento que se pretende formular, com a indispensável garantia de recurso jurisdicional».
Em sentido diverso opinavam Barbosa de Melo, J. M. Cardoso da Costa e J. C. Vieira de Andrade (Estudo e projecto de revisão da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 49) quando referiam que «não se excepciona, no n.º 3, a prisão disciplinar prevista no Regulamento de Disciplina Militar por se entender que esta sanção atenta contra os princípios constitucionais, devendo, por essa razão, ser abolida e não garantida como excepção.
Contudo, o legislador da primeira revisão acabou por acolher a proposta de Jorge Miranda ao mesmo tempo que aditou o art.º 270º referente a restrições de direitos de militares e agentes militarizados [outros direitos que não o aqui em causa]”.
Como resulta do que acaba de dizer-se, a intenção do autor do projecto, como dos constituintes (cfr. Diário da Assembleia da República, 2ª Série, n.º 80; 2.º Suplemento, de 21 de Abril de 1982 e 1ª Série, de 11 de Junho de 1982 e de 18 de Junho de 1982) foi a de constitucionalizar uma situação que embora desviante do princípio geral do art.º 27º n.o 2 da CRP - a aplicação de sanções privativas de liberdade por instâncias não judiciais e fundadas em lei não penal, de cuja constitucionalidade se duvidava - foi considerada uma realidade da prática e do regime disciplinar dos militares. Ora, nada autoriza a considerar que o autor do projecto e o legislador constituinte, que acolheu a sua proposta, tenham pretendido restringir a aplicação dessa medida a um “tipo” apenas de militares (o “geral”), como os militares que prestam serviço nas Forças Armadas, e tenham deixado de fora da sua previsão outros “tipos de militares” (“especiais”), como sempre foram tidos pela lei e pela prática os corpos pessoais, no activo, da GNR.
Nesta perspectiva, não se impõe uma tal compreensão do conteúdo do conceito de “militares”, usado no preceito, que o restrinja aos militares das Forças Armadas, dele excluindo os militares da GNR. Militares tanto o são os que prestam serviço activo nas Forças Armadas, como os que o prestam na GNR.
Temos, portanto, de concluir que o preceito cuja constitucionalidade material se questiona não afronta o disposto no 27º, n.os 1 e 2 da CRP, por caber na excepção prevista na al. c) do n.º 3 do mesmo artigo.
C - A decisão
14. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar, orgânica ou materialmente inconstitucionais, “as normas constantes do artigo 92º, n.º 1 da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho e do artigo
5.º do Estatuto do Militar da Guarda, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de
31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos militares da Guarda, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no RDM. b) Revogar a decisão recorrida e ordenar a sua reforma de acordo com o juízo de constitucionalidade emitido.
Lisboa, 29 de Outubro de 2003
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres (vencido nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida no presente Acórdão, por entender que as normas constantes do artigo 92º, nº 1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (aprovada pelo Decreto-Lei nº 265/93, de 31 de Julho) padecem de inconstitucionalidade orgânica. Tais normas, ao tornarem aplicáveis aos militares da Guarda, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no Regulamento de Disciplina Militar, assumem uma opção que, em meu entender e diferentemente do que é considerado no Acórdão, só poderia caber ao legislador parlamentar nos termos do artigo 169º, nº 1, alínea b), da Constituição. Com efeito, a possibilidade de aplicação aos membros da Guarda Nacional Republicana da prisão disciplinar não resulta já directamente do disposto nos artigos 69º, nº 1, e 32º da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas e nos artigos 2º, alínea e), 4º, 5º e 16º da Lei nº 11/89, de 1 de Junho, constituindo, por isso, uma solução normativa inovadora. Fundamento tal afirmação no facto de aquelas normas apenas se limitarem, programaticamente, a definir uma opção sobre o regime a definir no futuro para os elementos da Guarda Nacional Republicana, dando apenas, por conseguinte, uma indicação ao legislador. Não são, efectivamente, normas remissivas (não as orienta uma tal intenção legislativa), sendo apenas orientadoras do próprio legislador. Por outro lado, mesmo que se admitisse que tais normas pretendiam directamente aplicar aos elementos da Guarda Nacional Republicana o Regulamento de Disciplina Militar, não deixaria de ser necessário considerar que a prisão disciplinar não poderia estar abrangida automaticamente, dada a ambivalência daquela Força de Segurança que, tendo embora natureza militar, desempenha funções de polícia. Na verdade, a Constituição prevê a prisão disciplinar como uma das excepções ao princípio previsto no artigo 27º, nº 2, segundo o qual a prisão só pode ser decretada em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. Ora, tal excepção justifica-se pela tradição relacionada com a disciplina das Forças Armadas, tendo sido objecto de controvérsia em sede da Revisão Constitucional de 1982. A origem de tal norma, aplicável aos militares pertencentes às Forças Armadas, que é, como se disse, a da constitucionalização de uma tradição, não permite, sem mais, que se estenda o âmbito de tal autorização excepcional a qualquer corpo especial sem mediação explícita do legislador parlamentar. É o que sucede, repete-se, no caso da Guarda Nacional Republicana que, pelas funções que desempenha fora do âmbito da Defesa Nacional, apresenta semelhanças essenciais com corpos não militarizados como a Polícia de Segurança Pública – semelhanças essas que, aliás, devem ser valoradas à luz do princípio da igualdade.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que as normas constantes do artigo 92.º, n.º 1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (LOGNR), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, e do artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGNR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, na parte em que tornam aplicáveis aos elementos da Guarda Nacional Republicana as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada, previstas no Regulamento de Disciplina Militar, são material e organicamente inconstitucionais, pelas razões a seguir enunciadas:
1. A tese da inconstitucionalidade material, sustentada no acórdão recorrido, que inteiramente sufrago, assenta no entendimento de que quando a alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) excepciona do princípio, enunciado no precedente n.º 2, de que
“ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”, a privação da liberdade no caso de “prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente”, na expressão militares só podem compreender-se os elementos militares das Forças Armadas, em sentido estrito, e já não os membros de “forças militarizadas” (como a GNR, ou como era a Guarda Fiscal) ou de “forças de segurança” (como a Polícia de Segurança Pública – PSP).
Nesse sentido tem decidido, uniformemente, o Supremo Tribunal Administrativo: cf. acórdãos das Subsecções, de 8 de Junho de 1993, processo n.º 31 012 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 428, pág. 385), de 19 de Maio de 1994, processo n.º 32 373 (Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1996, págs. 3955-3973), de 10 de Novembro de 1994, processo n.º 30
993 (Apêndice ao Diário da República, de 18 de Abril de 1997, págs. 7868-7974, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 441, pág. 80), de 22 de Maio de 1997, processo n.º 38 915 (Apêndice ao Diário da República, de 23 de Março de 1996, págs. 3895-3901) – acórdão ora recorrido –, e de 25 de Setembro de 1997, processo n.º 38 658, e nos acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, de 15 de Março de 2001, processo n.º 31 012 (Apêndice ao Diário da República, de 17 de Fevereiro de 2003, págs. 306-311), e de 15 de Maio de 2002, processo n.º 38 658 (Acórdãos Doutrinais, n.º 491, pág. 1477).
Essa tese assenta em elementos de índole histórica, literal e sistemática, que foram desenvolvidos designadamente no citado acórdão de 19 de Maio de 1994, processo n.º 32 373, de que fui relator (e que viria a ser confirmado pelo acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, de
20 de Janeiro de 1998, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 473, pág. 224). Embora no caso estivesse em causa um elemento da Guarda Fiscal, esses argumentos são inteiramente transponíveis para o presente caso, no que à questão da inconstitucionalidade material tange, pelo que se passa a reproduzi-los:
“3.6.1. A questão da inconstitucionalidade material
3.6.1.1. Na sua versão originária, a Constituição de 1976 apenas consentia duas excepções à regra de que ninguém podia ser privado da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança, a saber (artigo 27.º, n.º 3): a) prisão preventiva em flagrante delito ou por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior; e b) prisão ou detenção de pessoa que tenha penetrado irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou expulsão. Face ao teor deste preceito, logo foi entendido que a Constituição tornara ilegítima a prisão por infracções disciplinares que estava prevista na legislação disciplinar militar (neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra,
1978, pág. 94).
Face a essa versão, também este Supremo Tribunal Administrativo considerou que violava o citado preceito constitucional o despacho que homologara pena de prisão disciplinar agravada aplicada a soldados da Guarda Fiscal (acórdão de 28 de Fevereiro de 1980, recurso n.º 10 840, no Apêndice ao Diário da República, de 11 de Abril de 1984, págs. 1044-1048, confirmado pelo acórdão do Tribunal Pleno, de 23 de Janeiro de 1986, no Apêndice ao Diário da República, de 24 de Junho de 1984, págs. 37-41, que julgou inconstitucional a norma do artigo 11.º do Regulamento Disciplinar da Guarda Fiscal, aprovado pelo Decreto n.º 46 969, de 23 de Abril de 1966, na parte em que previa a aplicação da pena disciplinar de prisão a soldados daquela corporação) e as normas do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública (Decreto n.º 40 118, de
6 de Abril de 1955) que previam a aplicação da pena disciplinar de prisão
(acórdão de 24 de Junho de 1982, recurso n.º 16 043, no Apêndice ao Diário da República, de 10 de Dezembro de 1985, págs. 2555-2558, confirmado pelo acórdão do Tribunal Pleno, de 28 de Maio de 1987, no Apêndice ao Diário da República, de
30 de Novembro de 1988, págs. 435-436).
O certo, porém, é que, apesar da falta de suporte constitucional, o Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril, continuou a prever penas disciplinares de prisão, e, por isso, quando, pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, foi aprovada, para ratificação, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma das seis reservas então formuladas tenha sido a de que o artigo 5.º da Convenção não obstaria à prisão disciplinar imposta a militares, em conformidade com o Regulamento de Disciplina Militar. [A Lei n.º 12/87, de 7 de Abril, retirou quatro dessas reservas, mas manteve a ora em causa; sobre a temática dessas reservas, cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV – Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 1988, págs. 211-212, e, por último, António Vitorino, Protecção Constitucional e Protecção Internacional dos Direitos do Homem: Concorrência ou Complementaridade, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1993, págs. 10-13.]
Compreender-se-ia, assim, que, com a aproximação da 1.ª revisão constitucional, a questão da constitucionalização da prisão disciplinar de militares fosse considerada. Porém, nenhum dos projectos de revisão constitucional apresentados na Assembleia pelos diversos grupos parlamentares contemplou a questão, que foi, no entanto, abordada em dois projectos extraparlamentares, tendo-se manifestado duas posições: A. Barbosa de Melo, J. M. Cardoso da Costa e J. C. Vieira de Andrade (Estudo e Projecto de Revisão da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pág. 49) não excepcionavam, no n.º 3 do artigo 27.º, «a prisão disciplinar prevista no Regulamento de Disciplina Militar, por se entender que esta sanção atenta contra os princípios constitucionais, devendo, por essa razão, ser abolida e não garantida como excepção»; ao invés, Jorge Miranda (Um Projecto de Revisão Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, pág. 32) propunha o aditamento ao n.º 3 do artigo 27.º de uma alínea c), assim redigida: «Prisão disciplinar imposta a militares, sem prejuízo do recurso para o tribunal competente», explicando que a prisão disciplinar imposta a militares não parecia encontrar fundamento no artigo 27.º da Constituição, «embora tenha sido objecto de uma das estranhas reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem», sendo esse fundamento que se pretendia formular, com a indispensável garantia de recurso jurisdicional.
Foi esta última a posição que viria a obter acolhimento no texto de revisão proposto pela Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (Diário da Assembleia da República, II Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, II Série, n.º 97, de 28 de Maio de 1982, pág. 1844), com a redacção que viria a ser consagrada para o actual artigo 27.º, n.º 3, alínea c), o qual, relativamente ao texto sugerido por Jorge Miranda, apenas regista a substituição da expressão
«sem prejuízo do recurso para o tribunal competente» pela expressão «com garantia de recurso para o tribunal competente».
A questão que se coloca é a de saber qual o sentido e alcance da expressão militares aí usada: refere-se apenas aos militares das Forças Armadas ou também àqueles elementos de certas forças de segurança, como a Guarda Nacional Republicana e a Guarda Fiscal, a quem a lei ordinária, para diversos efeitos, designadamente disciplinar, equipara a militares?
Afigura-se-nos que a interpretação mais correcta é a primeiramente indicada, por razões de ordem histórica, literal e sistemática, que a seguir se explanarão.
3.6.1.2. Desde logo, os trabalhos parlamentares relativos à aprovação dessa nova alínea são claros na indicação de que se pretendeu exclusivamente resolver uma situação que, apesar de pouco defensável ao nível dos princípios, constituía uma realidade incontornável imposta pela hierarquia das Forças Armadas. Nesse debate registaram-se as seguintes intervenções
(Diário da Assembleia da República, citado, I Série, n.º 101, de 11 de Junho de
1982, págs. 4170-4172):
«O Sr. B. (PS): (...) No que respeita à matéria da alínea c), sabemos que é, em si mesma, controversa.
Todavia, pensamos que é necessário o legislador constitucional ter, nesta sede, um mínimo conhecimento do que é a prática das coisas e a prática da vida e que vale mais assumir essa prática e, portanto, procurar, de certa maneira, pôr-lhe os entraves de controle judicial indispensáveis.
Sabemos que se pratica a prisão disciplinar. Sabemos que ela se pratica, muitas vezes, para não dizer na sua totalidade, em condições que deixam muito a desejar tanto mais que ela é flagrantemente inconstitucional, mas que, até este momento, ninguém ousou pedir a declaração da sua inconstitucionalidade. Sabemos ainda que existe uma reserva apresentada por Portugal, respeitante à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, se não tem exactamente a ver com esta matéria, tem, pelo menos, claramente a ver com a matéria que regula ou diz respeito ao Regulamento da Disciplina Militar.
Por isso, parece-nos, pela nossa parte, inteiramente procedente sancionar do ponto de vista legislativo, pondo entraves a uma determinada prática, obrigando ao recurso para o tribunal competente.
Com isto, enfileiramos com jurisprudência internacional nesta matéria, de que ressaltam alguns dos casos que fizeram escola, como por exemplo, em relação a queixas de soldados suíços e de soldados holandeses, e que levaram precisamente à introdução nesses regimes jurídicos da figura da necessidade do controle ou do recurso para o tribunal competente em matéria de prisão disciplinar.
Pensamos, por isso, que com isto se dá – para nós é extremamente importante – um passo também importante para a democratização real das Forças Armadas, fazendo intervir o tribunal competente, para efeitos de recurso, nos casos da prisão disciplinar.
(...)
O Sr. C. (PCP): (...) Quanto à alínea c), vamos votar contra a proposta da Comissão Eventual que admite a prisão disciplinar imposta a militares, embora com a garantia de recurso para o tribunal competente.
(...)
A nossa posição baseia-se nas seguintes razões: é princípio fundamental que as penas de privação de liberdade só possam ser aplicadas por um juiz. Num Estado de Direito democrático não há penas privativas de liberdade aplicadas por via administrativa.
(...)
É possível manter penas privativas liberdade de natureza disciplinar sem violar esse princípio. Basta, para tanto, conferir aos tribunais militares competência para a aplicação das medidas disciplinares que importem prisão. Aliás, é esta sugestão que consta do artigo 218.°, n.° 3, da proposta da Comissão Eventual, e a essa daremos evidentemente o nosso acordo. Não se trata, portanto, de sermos contra as medidas disciplinares privativas da liberdade no âmbito militar, mas de sermos contra a sua aplicação por via administrativa, que temos por violação qualificada de princípios elementares respeitantes ao estatuto dos cidadãos num Estado democrático.
(...)
E seria estranho que aqueles que tanto condenaram a necessidade do Estado Português estabelecer, nesta matéria, uma reserva à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, se disponham agora a constitucionalizá-la.
O Sr. D. (CDS): (...) Na matéria que se refere à prisão disciplinar imposta a militares, poderia o meu partido subscrever integralmente as judiciosas considerações que foram feita pelo Sr. Deputado B..
Efectivamente, trata-se de, por um lado, garantir à instituição militar os meios necessários à manutenção da disciplina a qual tradicionalmente foi, e continua a ser, um dos pilares desta instituição.
Mas trata-se também, por outro lado, de garantir o necessário controle jurisdicional da forma como essa disciplina é aplicada.
Creio, portanto, que chegamos a uma solução equilibrada e, por isso, iremos votar o texto proposto pela Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
(...)
O Sr. E. (PSD): (...) Louvamo-nos nas considerações que acabam de ser feitas no que toca à alínea c) e, por razões de economia, dispensamo-nos de as repetir. (...)
O Sr. F. (PCP): – Sr. Deputado E., o seu silêncio acerca desta alínea c) deixa-me alguma perplexidade pelo que, já agora, gostaria de ouvir expressamente a sua opinião sobre esta matéria.
Considera compaginável com os valores a que se sacrifica o nosso sistema constitucional democrático a admissão de penas privativas da liberdade aplicáveis por via de hierarquia administrativa?
(...)
O Sr. E. (PSD): – Sr. Deputado, é evidente que nos encontramos perante uma certa situação de limite. É evidente que a alternativa a isto é aquela que foi exposta pelo Sr. Deputado B.; a alternativa a isto é a continuação da realidade agora existente. Ou aceitamos a realidade tal como ela está, reconhecendo que não há neste momento condições para alterar o estado em que as coisas estão, ou então tentamos com as forças possíveis do Direito
...
O Sr. F. (PCP): (...) Por que é que entende que as condições actuais não permitem mudar a situação?
O Orador: – Sr. Deputado, pela razão de um certo juízo de adequação e de realidade. As coisas vêm acontecendo assim há muitos anos e não parece que alguém tenha feito alguma coisa e, mesmo que o tivesse feito, é de discutível
êxito.
Portanto, em vez de lutarmos por objectivos de maximização, lutamos por objectivos razoavelmente adequados.
Agora, se me pergunta no plano dos princípios, eu não posso deixar de estar de acordo.
Mas, em vez de sacrificar tudo na procura utópica de soluções tipicamente puras, salvemos aquilo que é possível em soluções minimamente correctas.
(...)
O Sr. G. (UEDS): (...) diria apenas que nós subscrevemos inteiramente os argumentos avançados pelo Sr. Deputado C. em relação à alínea c). Votaremos contra.
(...)
O Sr. H. (UDP): – (...) Vou, fundamentalmente, restringir-me à alínea c).
Efectivamente, vai-se constitucionalizar a prática que tem sido anticonstitucional nas Forças Armadas. Vai-se continuar a permitir a prisão disciplinar por via administrativa, a qual nunca deveria ter sido permitida em face da Constituição actual.
É, no fundo, dar seguimento ao tão conhecido documento Melo Egídio, isto é, pôr, na Constituição, os militares como cidadãos de segunda e permitir a continuação de todas as arbitrariedades que vêm ao arrepio da democratização das Forças Armadas.
A UDP, que sempre se bateu por ela, estará com certeza contra esta alínea.»
A alínea em causa foi aprovada com votos a favor do PSD, do PS, do CDS, do PPM e da ASDI, votos contra do PCP, da UEDS e da UDP, e abstenção do MDP/CDE. A seguir à votação (Diário citado, n.º 104, de 18 de Junho de 1982, pág. 4285), a única declaração que versou tal alínea foi a seguinte:
«O Sr. I. (MDP/CDE): (...) Quanto à alínea c), a questão da prisão disciplinar imposta a militares, temos dúvidas, e por isso nos abstivemos. De facto, esta, embora errada, é uma situação que na prática se está a realizar sem qualquer cobertura legal ou constitucional, pelo que – e enquanto não for revista toda esta legislação militar – é preferível dar cobertura constitucional a esta situação. Temos, porém, dúvidas quanto a isso, e daí a razão da nossa abstenção.»
Resulta destas intervenções que, no momento histórico em que foi constitucionalizada a prisão disciplinar de militares, embora se entendesse que tal solução era indesejável ao nível dos princípios, por representar uma privação de liberdade imposta por decisão administrativa, possibilidade repudiada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, reconheceu-se que a força da realidade então vigente no seio das Forças Armadas, da instituição militar, impunha essa cedência. Tratando-se de um preceito restritivo de direitos, de natureza claramente excepcional, admitido por razões específicas das Forças Armadas, logo este elemento histórico da interpretação aponta para a rejeição da sua extensão a instituições distintas das Forças Armadas, como a Guarda Fiscal ou a Guarda Nacional Republicana.
3.6.1.3. Este elemento histórico é reforçado por argumentos de
índole literal e sistemática. Com efeito, a Constituição, no seu artigo 270.º, introduzido também na revisão de 1982, veio possibilitar que a lei estabeleça
«restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, na estrita medida das exigências das suas funções próprias», sendo da exclusiva competência da Assembleia da República (reserva absoluta, indelegável no Governo) legislar sobre «restrições ao exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo» (artigo 167.º, alínea p), também introduzida na revisão de 1982, onde constituía a alínea m)).
É, assim, claro que, para a Constituição, militares e agentes militarizados constituem categorias distintas e só para os primeiros se consente a aplicação de medidas disciplinares de prisão.
Ora, o conceito constitucional de militar restringe-se aos militares das Forças Armadas, integrando-se o pessoal da Guarda Fiscal e da Guarda Nacional Republicana (e, segundo alguns, também o da Polícia de Segurança Pública) na categoria de agentes militarizados. A questão já foi analisada, com minúcia, pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 103/87 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 365, págs. 314-392). Aí se referiu que, relativamente
à densificação do conceito de agentes militarizados, haviam sido formuladas, nos debates parlamentares respeitantes à Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas e a pedidos de autorização legislativa para aprovação de novo Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, de modo mais ou menos explícito, três diferentes teses ou posições de princípio:
– segundo a primeira, e mais radical, o artigo 270.º da Constituição reportar-se-ia apenas às Forças Armadas, e a referência nele inserta aos
«agentes militarizados» destinar-se-ia simplesmente a fazer incluir na sua previsão certas categorias residuais de pessoal que, sem serem constituídas por militares em sentido próprio, integram ainda aquelas Forças (citaram-se, nomeadamente, os casos dos picadores do Centro Militar de Educação Física e Desportos, dos cabos-de-mar, dos cabos-de-faróis, e de determinado tipo de pilotos);
– de acordo com uma segunda tese, o preceito constitucional em causa já abrangeria, além das Forças Armadas, certas forças de segurança, mas só aquelas (entre as quais, porém, não se conta a Polícia de Segurança Pública) que tradicionalmente e legalmente recebiam entre nós a qualificação de
«militares» (ou eram, para todos os efeitos, «equiparadas a militares»), como a Guarda Nacional Republicana e a Guarda Fiscal: a elas, precisamente, se aludiria agora na citada referência aos «agentes militarizados»;
– finalmente, de harmonia com um terceiro ponto de vista, na previsão do artigo 270.°, e abrangida por esta última referência, caberia ainda a Polícia de Segurança Pública, visto que, não constituindo embora um corpo militar, todavia apresenta uma estrutura e enquadramento organizacional que fazem dela, caracterizadamente, um corpo «militarizado».
Para o Tribunal Constitucional, devia ser acolhida esta última tese. Não interessa agora apreciar a correcção da qualificação dos agentes da Polícia de Segurança Pública como agentes militarizados, pois apenas importa reter que, para o Tribunal Constitucional, o pessoal da Guarda Fiscal (e também o da Guarda Nacional Republicana) foi integrado nessa categoria constitucional, e não na categoria constitucional de militares.
Tal conclusão baseou-se no entendimento de que a qualificação de
«militarizado» de certo organismo ou de certos agentes depende da verificação da presença de um conjunto significativo de índices típicos da instituição militar
– presença que se entendeu ocorrer na Guarda Fiscal e na Guarda Nacional Republicana –, designadamente: a) O estrito enquadramento hierárquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos; b) A subordinação da actividade da instituição e da actuação individualizada de cada um dos seus membros a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência; c) O uso de armamento com características próprias, de utilização vedada aos cidadãos e aos agentes públicos em geral, no exercício da função e como modo próprio desse exercício; d) O princípio do aquartelamento; e) A obrigatoriedade do uso de farda ou uniforme; f) A sujeição a particulares regras disciplinares e, eventualmente, jurídico-penais.
Por os agentes militarizados constituírem categoria distinta dos militares, considerou-se mais adiante (n.º 23) ser constitucionalmente inadmissível a aplicação a esses agentes das penas de «prisão disciplinar» e de
«prisão disciplinar agravada», por estas, nos termos da Constituição, só poderem ser aplicadas a «militares». Na verdade – prossegue o acórdão referido
–, «a possibilidade da aplicação de tais penas de prisão, em procedimento disciplinar e mediante decisão não jurisdicional, representa uma clara restrição ou limitação ao princípio do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, e, por isso mesmo, o legislador da revisão constitucional julgou necessário ressalvá-la expressamente no imediato n.º 3, alínea c); só que, tendo querido, por essa forma, cobrir constitucionalmente uma realidade legal e uma prática preexistentes, condicionando-as à garantia do recurso contencioso (...) é visível que o fez circunscrevendo estritamente a sua admissibilidade ao domínio da disciplina ‘militar’. Nestas condições – e não podendo, desde logo, perder-se de vista o flagrante contraste entre o âmbito de referência do preceito constitucional agora em causa (‘militares’) e o do artigo 270.º
(‘militares’ e ‘agentes militarizados’) – não se afigura, na verdade, legítimo estender a possibilidade da aplicação de tais penas de ‘prisão disciplinar’, para além desse domínio, a simples ‘agentes militarizados’.»
Após ter julgado inconstitucional o artigo 69.º, n.º 2, da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro), na parte em que, por remissão para o artigo 32.º da mesma Lei, tornava transitoriamente aplicáveis aos agentes militarizados da Polícia de Segurança Pública o Regulamento de Disciplina Militar e o Código de Justiça Militar, e após ter julgado organicamente inconstitucional, por violação do artigo 167.º, alínea m), da Constituição (versão originária), o Decreto-Lei n.º 440/82, de 4 de Novembro, e o Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública por ele aprovado, o que operou a repristinação do Regulamento Disciplinar do Pessoal da Polícia de Segurança Pública aprovado pelo Decreto n.º 40 118, de 6 de Abril de
1955, o Tribunal Constitucional, no aludido acórdão, apreciou a constitucionalidade de diversas normas deste último Regulamento, entre elas as dos artigos 13.°, alínea b), n.° 5, alínea c), n.° 5, alínea d), n.ºs 5 e 8, e alínea e), n.ºs 5 e 8, 19.°, 22.°, 27.°, 33.° e 44.°, respeitantes a penas disciplinares de prisão e de detenção, julgando-as incompatíveis com o artigo
27.° da Constituição, que não consente a aplicação desse tipo de penas a agentes militarizados.
Esta doutrina foi reafirmada no acórdão n.º 308/90 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 402, pág. 83), que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 282/76, de 20 de Abril, que tornava aplicável ao pessoal do Quadro do Pessoal Militarizado da Marinha o Regulamento de Disciplina Militar, e isto porque este Regulamento prevê penas de prisão e de prisão disciplinar agravada, que a Constituição expressivamente apenas considera susceptíveis de aplicação a militares das Forças Armadas e já não a agentes militarizados, quer de forças militarizadas (como a Guarda Fiscal e a Guarda Nacional Republicana) quer das próprias Forças Armadas.
Conclui-se, assim, que, além do elemento histórico, também os elementos literal e sistemático da interpretação apontam para que o conceito de militar usado na alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição se restrinja aos militares das Forças Armadas. Aliás, tratando-se de uma restrição de um direito fundamental, o artigo 18.º da Constituição sempre imporia a adopção de uma interpretação estrita (princípio do carácter restritivo das restrições).
3.6.1.4. Aqui chegados, torna-se claro ser irrelevante que determinadas leis ordinárias estendam aos membros da Guarda Fiscal ou da Guarda Nacional Republicana regimes inicialmente previstos para os militares das Forças Armadas ou mesmo que apelidem aqueles membros de «militares». Do que se tratava era de saber qual o conceito constitucional de militar para efeitos do artigo 27.º, n.º 3, alínea c), da Lei Fundamental, e já se apurou que esse conceito se circunscreve aos militares das Forças Armadas.
Como escreve Francisco Liberal Fernandes («As Forças Armadas e a PSP perante a Liberdade Sindical», em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A. Ferrer Correia, III volume, número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1991, págs. 911-1008, em especial págs.
980-984):
«Porém, apesar de a lei qualificar os membros da GNR e da GF como militares, é sabido que estes organismos não se confundem com as FA, em virtude de se encontrarem adstritos ao cumprimento de funções de segurança interna. Tradicionalmente, aqueles corpos foram sempre classificados forças paramilitares, havendo, por isso, motivos para supor que foi com o significado usual que a expressão forças militarizadas foi transposta para o art. 270.º da CRP.
Também o conceito de militar empregue neste último artigo deverá ser interpretado de acordo com o sentido comum do termo. Com efeito, a actual Lei do Serviço Militar (Lei n.º 30/87, de 7 de Julho), à semelhança da sua congénere anterior (Lei n.º 2135, de 11 de Julho de 1968), abrange apenas os cidadãos que prestam serviço militar nas FA (arts. 2.º e 4.º, n.° 3), mais concretamente no Exército, Marinha ou na Força Aérea (art. 27.º). A noção de militar designa apenas os indivíduos que, no cumprimento das suas obrigações militares, prestam serviço em qualquer daqueles ramos. Por isso, as forças militarizadas não se confundem com as FA, o mesmo se passando com o pessoal que integra umas e outras.
Aliás, é com base nesta definição comum que, por exemplo, o CJM, nos artigos 172.º e 313.º distingue o militar do agente das forças militarizadas, o que vem demonstrar que este diploma recebeu o conceito vulgar de militar, tal como está consagrado na Lei do Serviço Militar. Por seu turno, a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, ao integrar nas FA apenas a Marinha, o Exército e a Força Aérea (art. 21.º, n.° 1), limita-se a dar continuidade à distinção tradicional estabelecida entre forças militares e forças militarizadas, diferenciação que foi confirmada pelo art. 69.º da mesma lei, quando prescreve a aplicação ao pessoal destes últimos organismos de normas originariamente previstas para as FA. A Lei n.º 29/82 comprova assim que o legislador considerou a GNR, a GF e a PSP organismos distintos das FA.
Perante as normas acabadas de referir, tudo indica que o conceito de militar recebido no art. 270.º da CRP seja o proveniente da noção tradicionalmente reconhecida no nosso sistema jurídico. Por conseguinte, a ideia de forças militarizadas há-de compreender o conjunto daqueles organismos de segurança, tais como a GNR e a GF (e, eventualmente, a PSP), que não se integram formalmente nas FA. O facto de lhes ter sido reservada competência específica fez com que, desde sempre, eles constituíssem corpos autónomos e distintos destas últimas, apesar das semelhanças que entre ambos se verificam.
(...)
A existência de leis orgânicas específicas para as forças militarizadas, a preocupação manifesta de classificar expressamente os seus membros do ponto de vista profissional e o facto de a extensão do regime dos militares aos membros da GNR e da GF se processar através de diplomas específicos constituem indícios seguros de que entre estes organismos e as FA não há identidade, verificando-se apenas uma grande semelhança quanto à natureza e modo de organização. Se assim não fosse, as referidas leis orgânicas não passariam de simples normas de organização de determinados sectores das FA, situação que efectivamente não acontece. A designação nominal utilizada pelas diferentes leis para identificar os corpos militarizados e o respectivo pessoal
(forças militares e militares, respectivamente), só por si, não define nem caracteriza o estatuto de uns e outros, nem pode ser entendida como uma fórmula que signifique a negação da autonomia das forças paramilitares face às FA. Por outro lado, o facto de o pessoal das forças militarizadas estar equiparado aos militares em matéria disciplinar e penal não elimina a diferença em causa; aliás, esta extensão das normas originariamente previstas para o sector das FA acaba por confirmar que aqueles agentes não são militares no sentido rigoroso do termo.
Pode assim concluir-se que, do ponto de vista normativo, as forças militarizadas não se confundem com as FA. Não obstante os aspectos comuns que subsistem entre ambas, as primeiras abrangem os organismos de segurança interna, aos quais é reconhecida autonomia e identidade próprias.»
Sobre esta matéria, cf., por último, Alberto Esteves Remédio,
«Forças Armadas e Forças de Segurança – Restrições aos Direitos Fundamentais», em Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas / Editorial Notícias, Lisboa, 1993, págs. 371-395, em especial pág. 393.
3.6.1.5. Em face do exposto, uma vez que o artigo 27.º, n.º 3, alínea c), da Constituição apenas permite a aplicação de penas disciplinares de prisão aos militares das Forças Armadas, tem de concluir-se que as normas do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 143/80, de 21 de Maio («É aplicável à Guarda Fiscal o Regulamento de Disciplina Militar»), do artigo 69.º da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro (Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas), na parte em que declara aplicável aos «militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo» na Guarda Fiscal o disposto no artigo 32.º da mesma Lei, relativo ao Regulamento de Disciplina Militar, e do artigo 12.º, n.º 1, da Lei Orgânica da Guarda Fiscal, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 373/85, de 20 de Setembro («Aos militares da Guarda Fiscal aplicam-se, nos termos da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, (...) o Regulamento de Disciplina Militar (...)») são, nos segmentos em que tornam aplicáveis aos «militares» da Guarda Fiscal as penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada previstas naquele Regulamento, materialmente inconstitucionais, por violação do citado preceito constitucional, pelo que se impõe aos tribunais a recusa da sua aplicação (artigos 207.º da Constituição e
4.º, n.º 3, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).”
O entendimento sufragado neste acórdão e reiterado na uniforme jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo inicialmente citada mantém-se inteiramente válido e foi até reforçado pela posterior evolução constitucional e legislativa.
Na verdade, relativamente ao artigo 270.º da CRP, aditado pela revisão de 1982 e que inicialmente apenas se referia aos “militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo”, o aludido acórdão n.º 103/87 deste Tribunal Constitucional entendeu fazer caber os elementos da Polícia de Segurança Pública (PSP) no conceito de “agentes militarizados”, entendimento que não foi pacífico, merecendo mesmo, como se viu, críticas da doutrina. Pode vislumbrar-se um reconhecimento da razão de ser destas críticas no facto de a revisão constitucional de 1997 ter inserido expressa referência a “agentes dos serviços e das forças de segurança”, com o claro objectivo de abranger os elementos da PSP, o que significaria que não fora correcta a sua qualificação como agentes militarizados. Situação que ainda se tornou mais clara com a revisão constitucional de 2001, que veio permitir – como
é público e notório, tendo em vista a situação da PSP – que aos agentes dos agentes e das forças de segurança não seja admitido o direito à greve, mesmo quando reconhecido o direito de associação sindical.
Surge, assim, hoje em dia como irrefutável que o artigo
270.º prevê três tipos de situações: a dos agentes das forças de segurança (cujo exemplo mais significativo é a dos membros da PSP), a dos agentes militarizados
(em que se devem inserir os elementos da GNR) e a dos militares (conceito que apenas abrange os militares das Forças Armadas, pois é a estes – e apenas a estes – que compete, na execução do serviço militar (artigo 276.º), participar na defesa militar da República, que compete às Forças Armadas (artigo 275.º), tendo a defesa nacional garantir a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas (artigo 273.º), nisto se distinguindo, quer da PSP, quer da GNR, que são forças de segurança interna) – cf. Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João de Brito Fernandes, Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, págs. 560-561.
Esta clarificação constitucional foi secundada pelo legislador ordinário, tendo a Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, que aprovou o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana, revogado as disposições legais que determinavam a aplicação do Regulamento de Disciplina Militar aos elementos da GNR, e eliminado a previsão de penas disciplinares de prisão (nos termos do artigo 27.º do novo Regulamento, as penas disciplinares aplicáveis são as de repreensão escrita, repreensão escrita agravada, suspensão, suspensão agravada, reforma compulsiva e separação de serviço). Segundo o n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 145/99, as penas de faxinas, detenção, prisão disciplinar e prisão disciplinar agravada, mesmo que já aplicadas mas não integralmente cumpridas, serão, com desconto do período já cumprido, convertidas obrigatoriamente de acordo com a tabela constante do artigo seguinte, segundo o qual um dia de prisão disciplinar corresponde a dois dias de suspensão e um dia de prisão disciplinar agravada corresponde a quatro dias de suspensão ou suspensão agravada, consoante o número de dias que resulte da correspondência estabelecida (a suspensão vai de 5 a 120 dias e a suspensão agravada vai de 121 a 240 dias – cf. artigos 30.º e 31.º do novo Regulamento).
Na apresentação da Proposta de Lei n.º 272/VII (Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 4.ª Sessão Legislativa, II Série-A, n.º 57, de 29 de Abril de 1999, págs. 1664-1685), que esteve na origem da Lei n.º 145/99, o Ministro da Administração Interna não deixou de salientar que “O diploma acolhe também o entendimento de recente corrente jurisprudencial do Supremo Tribunal Administrativo, no sentido da inconstitucionalidade das normas que prevêem a aplicação de penas privativas da liberdade em sede disciplinar”
(Diário citado, I Série, n.º 93, de 29 de Maio de 1999, pág. 3333).
Foi, assim, o próprio legislador ordinário que veio reconhecer a inconstitucionalidade da anterior situação, eliminando parcialmente um factor de desarmonia entre a ordem jurídica portuguesa e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que considera inadmissível, por princípio, a imposição, pelas autoridades administrativas, de medidas sancionatórias privativas da liberdade imediatamente exequíveis, como acontecia com a prisão disciplinar, atento o efeito não suspensivo do eventual recurso para um tribunal (cf. Maria José Morais Pires, As Reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 247 e seguintes, em especial págs. 260-261).
2. Para além de materialmente inconstitucionais, as normas questionadas padecem ainda de inconstitucionalidade orgânica.
Sendo incontroverso versarem tais normas matérias relativas a direitos, liberdades e garantias – o próprio direito à liberdade, consagrado no artigo 27.º da CRP –, inseridas na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, o precedente acórdão assenta a sua decisão de não inconstitucionalidade no pretenso carácter não inovatório das normas em causa, cuja estatuição já derivaria quer dos artigos 69.º, n.º 1, e
32.º da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro (Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas), quer dos artigos 2.º, alínea e), 4.º, 5.º e 16.º da Lei n.º 11/89, de
1 de Junho(Bases gerais do estatuto da condição militar).
Acontece que, a meu ver, não é possível vislumbrar nestas disposições a explicitação da regra da imposição de penas disciplinares de prisão a elementos da GNR.
O artigo 69.º, n.º 1, da Lei n.º 29/82 manda aplicar aos
“militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana e na Guarda Fiscal” o disposto nos seus artigos 31.º, 32.º e 33.º, assumindo o artigo 32.º um óbvio carácter programático, enunciando um programa legislativo. O que este preceito diz é que
“as exigências específicas do ordenamento aplicável às Forças Armadas em matéria de justiça e de disciplina serão reguladas, respectivamente, no Código de Justiça Militar e no Regulamento de Disciplina Militar” (n.º 1), que “as bases gerais da disciplina das Forças Armadas serão aprovadas por lei da Assembleia da República” (n.º 2) e que “o Código de Justiça Militar e o Regulamento de Disciplina Militar serão aprovados por lei da Assembleia da República ou, mediante autorização legislativa, por decreto-lei do Governo” (n.º
3). O sentido desta norma é – repete-se – meramente ordenador de legislação futura: iniciada a reformulação do enquadramento jurídico das Defesa Nacional com a publicação da Lei n.º 29/82, esta lei previu, no campo da justiça e da disciplina militares, a aprovação de novos Código e Regulamento, que se devia iniciar com a aprovação pela Assembleia da República de uma lei de bases gerais, a que se seguiria a aprovação, por lei ou decreto-lei autorizado dos novos Código de Justiça Militar e Regulamento de Disciplina Militar. A previsão da aplicabilidade futura destes diplomas, a elaborar, a certos elementos da GNR, constante do artigo 69.º da Lei n.º 29/82, não tem – a meu ver, manifestamente – o mesmo conteúdo prescritivo das normas questionadas nestes autos (artigos 92.º, n.º 1, da LOGNR e 5.º, n.º 1, do EMGNR), em termos que possibilitem qualificar estas normas como não inovatórias.
O mesmo vale para as normas da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho (Bases gerais do estatuto da condição militar), invocadas no precedente acórdão, a saber:
– artigo 2.º, alínea e), que dispõe que a condição militar se caracteriza pela aplicação de um regime disciplinar próprio;
– artigo 4.º, que diz que a subordinação à disciplina militar se baseia no cumprimento das leis e regulamentos respectivos e nos deveres de obediência e do exercício responsável da autoridade;
– artigo 5.º, que prevê que em processo disciplinar são garantidos aos militares os direitos de audiência, defesa, reclamação, recurso e patrocínio;
– artigo 16.º, que dispõe que essa lei se aplica aos militares da GNR e da Guarda Fiscal.
Não resulta directamente de nenhuma destas normas que se consideram aplicáveis aos elementos da GNR as penas de prisão disciplinar previstas no Regulamento de Disciplina Militar de 1977, voltando o artigo 17.º desta lei de bases gerais a prever, programaticamente – tal como o artigo 32.º da Lei n.º 29/82 –, que as bases gerais da disciplina militar serão aprovadas por lei da Assembleia da República e que o (novo) Regulamento de Disciplina Militar será também aprovado por lei ou por decreto-lei autorizado (n.º 1), devendo ser aprovados, no prazo de 6 meses, em desenvolvimento dessa lei, os estatutos respeitantes aos oficiais, sargentos e praças.
Não é possível – salvo o devido respeito por opinião contrária – vislumbrar nessas normas das Leis n.ºs 29/82 e 11/89 a prescrição da aplicação aos elementos da GNR, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, das penas de prisão disciplinar e de prisão disciplinar agravada previstas no Regulamento de Disciplina Militar então vigente, em termos tais que permitissem dizer que as normas questionadas no presente processo nada vieram acrescentar, pelo que careciam da natureza inovatória e, por isso, não padeceriam de inconstitucionalidade orgânica. Pelo contrário, resulta de tudo o exposto que a aplicação ao recorrido da pena de 20 dias de prisão disciplinar agravada só foi possível atenta a concreta estatuição dos artigos 92.º, n.º 1, da LOGNR e 5.º, n.º 1, do EMGNR, diplomas aprovados pelo Governo desprovido de credencial parlamentar e, por isso, enquanto versando matéria pertinente ao direito à liberdade, viciados de inconstitucionalidade orgânica, para além de inconstitucionalidade material.
Por estas razões, votei no sentido do improvimento do recurso e da confirmação do acórdão recorrido.
Mário José de Araújo Torres