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Proc. 558/03 - 1ª Secção Relator: Cons. Pamplona de Oliveira
Acordam em conferência na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. reclama para a Conferência, de acordo com o n.º 3 do Art. 78º-A da LTC, da decisão do Relator que rejeitou o recurso com o fundamento de neste se não colocar uma questão de constitucionalidade normativa, pois em causa estaria apenas a conformidade da decisão recorrida com determinados princípios constitucionais que o ora Reclamante entendia terem sido - por ela - violados.
Alega o seguinte:
I O S. T. J., por acórdão reclamado e recorrido, havia já rejeitado o recurso no
âmbito do processo n.º 4012/01, para ele interposto, com fundamento na sua intempestividade, interpretação esta julgada inconstitucional “(...) por violação do disposto nos nºs 1 e 4 do art. 20º e do nº1 do art. 32º da Constituição da República, a norma constante do nº1 do artigo 411º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o prazo para interpor recurso da sentença proferida em conferência, ao abrigo do disposto na alínea a), no nº 4 do artigo 419º de mesmo diploma legal, deve ser contado a partir do momento do seu depósito na secretaria e não da respectiva notificação (...)”. Retornados os autos ao S.T.J., foi o recurso uma vez mais rejeitado, desta feita por ser considerado inadmissível face aos arts. 409º e 400º, nº1 e) e f) do C.P.P., com 'vivos reparos' ao acórdão do Tribunal Constitucional. Da maioria dissentiu o Venerando Conselheiro que emitiu a declaração de voto constante do mesmo, pronunciando-se pela admissibilidade do recurso sub judice. Objecto de reclamação, foi o referido acórdão de rejeição do recurso confirmado pelo S. T J ., pelo que do qual se recorreu para este Altíssimo Tribunal, tendo o mesmo sido rejeitado por ser '(...) legalmente inadmissível uma pronúncia do Tribunal Constitucional sobre o mérito da decisão recorrida, pois apenas lhe é atribuído, no citado artigo 70º, nº1 alínea b) da LCT, um controlo normativo
(...).' II O ora reclamante não pode deixar de confessar a sua estranheza face ao fundamento de rejeição sumária do recurso por si interposto para este douto Tribunal. Para o reclamante, bem como para a maioria dos cidadãos, o Tribunal Constitucional é o último bastião da protecção dos direitos, liberdades e garantias, missão que lhe é conferida pela Lei e pela Constituição da República
- 'As decisões do Tribunal Constitucional são obrigatórias para todas as entidades públicas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras autoridades.' - Art, 2º, da LTC. Tamanho poder acarreta naturalmente o pesado ónus de pugnar pela defesa da constitucionalidade em todas as suas vertentes, seja pela fiscalização abstracta, seja pela fiscalização concreta, que ora nos ocupa. A fiscalização concreta da constitucionalidade opera-se por via de recurso interposto para o Tribunal Constitucional com base nos fundamentos enunciados no art. 280º da C.R.P. e no art. 70º da LTC. In casu interessa referir a al. b) do nº1 do art. 280º da C.R.P., ou, o mesmo dizendo, a mesma alínea do mesmo número do art. 70º da LTC: '1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo; (...)'. Ainda que por mero lapso, o não diga expressamente, é este o fundamento do recurso para o Tribunal Constitucional. No entanto, este recurso não foi rejeitado por incumprimento do disposto no art. 75º-A, nº1, lª parte, o que de resto seria passível de sanação nos termos do nº 5 do mesmo preceito; o recurso é rejeitado por ser entendimento do relator não ter o Tribunal Constitucional poderes para sindicar a interpretação que os tribunais fazem aquando da aplicação das leis, ainda que esta aplicação se mostre contrária à Constituição. Com efeito, o relator baseia esta decisão no facto de estar atribuído ao Tribunal Constitucional '(...) apenas (...) no citado artigo 70º n.1 alínea b) da LTC, um controlo normativo.' Com todo o respeito que merece este Tribunal, a interpretação literal preconizada deste preceito tem um efeito assustadoramente esvaziante dos poderes do Tribunal Constitucional e perigosamente aleatório no concernente ao labor dos restantes tribunais. Se as normas produzidas pela Assembleia da República e pelo Governo são passíveis de fiscalização por parte dos tribunais, maxime, por parte deste Tribunal, assim o serão as aplicações feitas dessas normas pelos próprios tribunais. É que são os tribunais, ao tomarem as suas decisões que animam as normas produzidas pelo órgão legislador. Ora, por natureza, a interpretação de uma mesma norma não é homogénea, podendo variar, no âmbito da latitude que lhe permitem os princípios do mínimo de correspondência, demais princípios de Direito e a conformidade com a Constituição. Assim, os tribunais não só não podem aplicar normas contrárias à Constituição, como lhes é vedada uma interpretação normativa que ofenda o texto fundamental, pois de contrário, estar-se-ia a fechar uma porta, mas a abrir uma janela, o que seria a todos os títulos inadmissível.
III Por acórdão do Tribunal Constitucional de 14 de Fevereiro de 2003, no âmbito deste mesmo processo, foi proferida deliberação no sentido de considerar a interpretação da norma do n.º1 do art. 411º, acolhida pelo S.T.J., como inconstitucional, ao abrigo da al. b) do nº1 do art. 70º da LTC, por violação do art. 32º da C.R.P .: 'Não compete ao Tribunal Constitucional, como é evidente, sindicar decisão recorrida em parâmetros que não sejam os resultantes da subsunção ao concreto caso de norma aplicada ou interpretada de modo constitucionalmente não conforme. (...) e conclui o douto acórdão '(...) julgar inconstitucional (....) a norma constante do nº 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual (....)'. Existem assim, no mesmo processo, duas decisões antagónicas sobre a aplicação da alínea b) do n.º1 do art. 70º da LTC. Pelas razões atrás expendidas entende o recorrente, ora reclamante ser da mais absoluta justiça que o resultado desta reclamação se consubstancie na presunção, por parte deste Tribunal do dever de sindicar uma interpretação normativa inconstitucional levada a efeito pelo S.T.J. Termos em que requer se considere procedente a presente reclamação e seja admitido o recurso que lhe deu lugar.
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal entende, porém, que presente reclamação é “manifestamente improcedente.” E explica:
2 - Na verdade - e face à reiterada jurisprudência deste Tribunal, atinente à inexistência de um triplo grau de jurisdição que assegure um acesso irrestrito, em via de recurso, ao Supremo - é evidente que as normas limitativas desse acesso, questionadas pelo recorrente não violam qualquer preceito ou princípio da Constituição da República Portuguesa (cfr., v.g. os Acórdãos nos
189/01,369/01 e 435/01).
3 - Pelo que a questão suscitada sempre seria de configurar como manifestamente infundada, justificando a rejeição liminar do recurso para o Tribunal Constitucional (e sendo evidente que a este lhe não compete apreciar da correcção da interpretação do direito infraconstitucional, feita pelo tribunal a quo, mas tão somente avaliar se tal interpretação ofende alguma norma ou princípio da Constituição).
Cumpre decidir.
A decisão reclamada assenta nos seguintes fundamentos:
“... Acontece que o recurso previsto na alínea b) do n.1 do artigo 70º da LTC visa essencialmente dirimir uma questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, uma questão sobre a conformidade constitucional de norma jurídica aplicada na decisão recorrida como razão de decidir. Não se trata - e este Tribunal tem insistentemente afirmado este princípio - de apurar de eventual ofensa à Constituição provocada pela decisão recorrida enquanto processo concretizador da solução jurídica da causa, mas da aplicação, nessa solução, de uma norma inconstitucional. De modo que o objecto do recurso consiste na aferição da conformidade constitucional de uma determinada norma efectivamente aplicada na decisão; está fora desse objecto a apreciação do processo ou do raciocínio lógico-jurídico que tenha presidido à aplicação no caso concreto de uma determinada norma, ainda que o resultado surja como desconforme com os princípios ou normas constitucionais. Em suma, este recurso não aprecia decisões jurisdicionais, pois visa exercer apenas um controlo normativo.
A decisão recorrida, na parte que interessa agora considerar, adopta o seguinte julgamento:
“... estamos perante um acórdão daquela Relação que rejeitou o recurso, por manifesta improcedência, pelo que, em termos condenatórios, a Relação confirmou a decisão da 1ª Instância. Trata-se, pois, de uma decisão proferida pela referida Relação, em recurso, da qual só pode recorrer-se para o Supremo Tribunal de Justiça se a mesma não for irrecorrível. É o que dispõe a alínea b) do art. 432 do CPP, remetendo para o disposto no art. 400º do mesmo diploma. No presente caso, apenas o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal. Assim, há que ter em conta o disposto no art. 409º do CPP no que concerne à proibição da reformatio in pejus, segundo a qual, interposto recurso da decisão final somente pelo arguido - que é o caso que ora releva - o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as decisões constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes - v. o n. 1 do referido artigo 409º. Isto significa que a pena aplicável pelo tribunal de recurso - mormente a de prisão (v. o n. 2 daquele art. 409º) - a cada um dos crimes, por cuja a prática o arguido foi condenado, não pode ser superior à pena aplicada pelo tribunal recorrido, a cada um dos mesmos crimes - v. os acórdão deste Supremo Tribunal, de 11-04-2002 ( proc. n.º 150/02- 3ª Secção) e de 27-03-2003 ( procs n.ºs 859/03 e 870/03- 5ª Secção). Ora in casu, a Relação, ao confirmar a decisão da 1ª Instância, aplicou ao arguido, aqui recorrente, por cada um de dois crimes de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º do Código Penal, a pena de três anos de prisão. Assim, por um lado, dado que a pena aplicável, pela via de novo recurso - agora para o S.T.J - a cada um dos referidos crimes não pode exceder as que foram aplicadas pela Relação, face ao disposto no art. 400º, n.º 1 alínea e) do CPP, sendo qualquer delas inferior a cinco anos de prisão e irrelevando, para o efeito, o concurso de infracções, não é admissível o presente recurso, pelo que o mesmo tem de ser rejeitado nos termos dos arts. 414º n. 2 e 420º n. 1 do CPP, sendo certo que este Supremo Tribunal não está vinculado pela decisão que admitiu o recurso - n.º 3º daquele art. 414º. Por outro lado estamos perante um acórdão condenatório da Relação que confirmou a decisão da 1ª Instância, em processo por crimes aos quais, pela via de novo recurso, não pode ser aplicável - a cada um deles - pena de prisão superior às já aplicadas pela Relação, pelo que, face ao disposto no art.º 400º, n.º 1, al. f) do CPP, sendo qualquer delas inferior a oito anos de prisão e irrelevando, para o efeito, o concurso de infracções (de resto, neste caso, a pena aplicável ao concurso tem como limite máximo seis anos de prisão - art. 77º n. 2 do Código Penal), também não é admissível o presente recurso, que, assim, ainda tem de ser rejeitado por este motivo nos termos dos arts 414º, n.º2 e 420º n.º 1 do CPP. “
Desta decisão logo reclamou o Recorrente imputando-lhe nulidade, por, em seu entender, não ter “cobertura legal” a fundamentação do acórdão. A reclamação foi, porém, desatendida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Ora é também uma errada perspectiva do caso que está na génese deste recurso de constitucionalidade.
Na verdade, o que verdadeiramente o Recorrente visa aqui pôr em causa é o juízo interpretativo e aplicativo das normas das alíneas e) e f) do artigo 400º do Código de Processo Penal efectuado na decisão recorrida, cujo resultado é, em seu entender, ofensivo de um conjunto de direitos que lhe estão garantidos na Constituição, designadamente o direito de acesso à justiça e o direito de recurso.
Deve, no entanto, esclarecer-se que é legalmente inadmissível uma pronúncia do Tribunal Constitucional sobre o mérito da decisão recorrida, pois apenas lhe é atribuído, no citado artigo 70º n. 1 alínea b) da LTC, um controlo normativo.
Esclarecido este ponto, torna-se claro que em causa apenas poderia estar a questão de saber se as normas das alíneas e) e f) do n. 1 do artigo 400º do CPP violam os invocados artigos 20º e 32° da Constituição, na interpretação de que tais normas, nos casos nelas contemplados, impõem a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Mas, para além de verdadeiramente o Recorrente não colocar em causa tal questão,
é abundante a jurisprudência deste Tribunal que aceita que as aludidas normas não ofendem a Constituição, isto é, não limitam inadmissivelmente garantias de defesa em processo penal, quer na óptica do direito ao recurso, ou do acesso ao direito, ou ainda na da garantia de duplo grau de jurisdição; em suma, cumprida a exigência de um duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição.
Não há, em síntese, fundamento suficiente para o prosseguimento do recurso. Em face do exposto, nos termos do n. 1 do artigo 78-A da LTC, decide-se rejeitar o recurso com custas pelo Recorrente.
Acontece que a presente reclamação não tem fundamento. E não tem, desde logo porque a competência do Tribunal Constitucional, nesta matéria, não é a que o Recorrente aponta, mas aquela que lhe está confiada no já citado artigo 70º n. 1 alínea b) da LTC. Isto é: nestes casos, a competência do Tribunal Constitucional reduz-se a um controlo normativo (que eventualmente compreende a interpretação da norma efectuada pela decisão recorrida), mas que não inclui a conformidade do próprio veredicto decisório com normas ou princípios constitucionais.
Todavia, é neste ponto que se situa a discordância do Recorrente face ao despacho reclamado, conforme se ilustra no seguinte raciocínio:
“se as normas produzidas pela Assembleia da República e pelo Governo são passíveis de fiscalização por parte dos tribunais, maxime, por parte deste Tribunal, assim o serão as aplicações feitas dessas normas pelos próprios tribunais”
Isto é, para o Reclamante, também a aplicação das normas e o respectivo resultado decisório devem ser submetidos ao controlo do Tribunal Constitucional, entendimento que, como se disse, contraria o sentido reiteradamente afirmado por este Tribunal da norma do artigo 70º n. 1 alínea b) da LTC.
De todo o modo, as normas que o Recorrente impugna no presente recurso não ofendem a Constituição, conforme também se afirma na decisão reclamada, visto que “não limitam inadmissivelmente garantias de defesa em processo penal, quer na óptica do direito ao recurso, ou do acesso ao direito, ou ainda na da garantia de duplo grau de jurisdição; em suma, cumprida a exigência de um duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição”. Exemplo desta linha jurisprudencial, continuada e pacífica, é o recente Acórdão n. 451/03 (1ª Secção) de 14 de Outubro de 2003.
Em face do exposto, decide-se desatender a reclamação. Custas pelo Reclamante; taxa de justiça 15 UC.
Lisboa, 29 de Outubro de 2003
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos